Um celular apoiado num vaso de planta sobre a mesa e outro, nas mãos de alguém que registra a cena, são as ferramentas de trabalho. Sem mostrar o rosto, um homem ensina seus espectadores a acessar o Google, buscar pelo Diário Oficial da União (DOU) e digitar um número chamado no vídeo de “código de pesquisa”. O número nada mais é do que a matrícula de um servidor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). O resultado que aparece na tela do celular é uma portaria de 30 de dezembro de 2022, assinada pelo então ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, cedendo o servidor para trabalhar na Câmara dos Deputados.
A portaria, no entanto, só foi publicada no DOU em 2 de janeiro de 2023, o que, para o autor do vídeo, é uma prova cabal – publicada no Diário Oficial da União e tudo – de que Augusto Heleno é o verdadeiro presidente do Brasil, e não Lula, que sequer teria tomado posse no dia 1º. E ele não está sozinho nesta conclusão, por mais absurda que seja, já que Lula foi empossado, e o general Augusto Heleno, exonerado em 31 de dezembro. Um vídeo com este conteúdo acumula mais de 1 milhão de visualizações no TikTok e há dezenas de postagens com argumento igual a este circulando no Twitter, Facebook, Instagram e WhatsApp. Essas publicações quase sempre vêm com um convite: “Não acredita? Vai no Diário Oficial”.
Desde a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência, em 30 de outubro do ano passado, se multiplicam nas redes sociais os conteúdos que usam o Diário Oficial como suposta prova de teorias conspiratórias das mais variadas: desde a instituição de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para que as Forças Armadas assumam o controle do País até a determinação de novas eleições, via ato institucional decretado por Jair Bolsonaro. De novembro para cá, o Estadão Verifica e o Projeto Comprova desmentiram quase uma dezena de conteúdos mentirosos que diziam ter o Diário Oficial como fonte.
Nada se sustenta: seja porque as publicações no Diário não dizem absolutamente nada do que os autores dos vídeos virais afirmam, seja porque o sentido foi distorcido a fim de se encaixar no discurso que o autor do conteúdo quer passar adiante. Especialistas em desinformação já perceberam a tendência nas redes e até apontam semelhanças com outras estratégias usadas por quem usa a internet para disseminar mentiras.
A pesquisadora Taís Seibt, doutora em Comunicação, jornalista nas agências Fiquem Sabendo e Afonte e professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), aponta preocupação em relação ao uso do Diário Oficial como fonte de desinformação.
“As consequências da criação de falsas versões do Diário podem ser mais amplas. Há o risco de se criar um ambiente de desconfiança que comprometa a credibilidade da fonte original, o que teria impactos graves no ecossistema informativo e na democracia de modo geral”, disse. “A integridade das fontes oficiais, que está inclusive garantida pela Lei de Acesso à Informação, é uma salvaguarda para o funcionamento das instituições democráticas. É preciso prestar atenção nesse movimento”.
Semelhanças com outras estratégias de desinformação
O uso específico do Diário Oficial em peças de desinformação pode ser uma novidade, aponta Taís Seibt, mas há semelhanças com outros formatos de conteúdos comumente usados pra enganar. “Se fosse categorizar esse tipo de desinformação, eu diria que ela representa o tipo ‘conteúdo impostor’, quando fontes genuínas são imitadas para dar credibilidade a uma inverdade”, diz. Este é um dos sete tipos mais comuns de desinformação estudados pela pesquisadora Claire Wardle, co-fundadora da First Draft, organização criada para lidar com a desinformação pelo mundo.
Seibt aponta que o uso do Diário é uma estratégia para usar a credibilidade da publicação oficial para tentar oferecer uma suposta “prova”. Conhecido por reunir publicações de atos oficiais do governo, o Diário Oficial da União existe desde 1862. É lá que são publicadas leis, portarias, resoluções, decretos, editais e tudo o mais que o governo precise tornar público. Assim como o governo federal tem um Diário Oficial, os Estados, Municípios e o Poder Judiciário também possuem suas publicações com o mesmo tipo de conteúdo.
Usar imagens da imprensa oficial em publicações mentirosas é uma maneira de afirmar que há uma fonte para aquela informação falsa e eliminar questionamentos. “É uma nova roupagem de uma estratégia já bem consolidada. Mas não deixa de ser preocupante o falseamento de fontes oficiais, como o Diário Oficial, para criar mais desinformação”, completa a pesquisadora.
Para o também jornalista Ivan Paganotti, doutor em Ciências da Comunicação e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo, há por trás da estratégia um desejo de provar que bolsonaristas ainda atuam no governo federal – por exemplo, citando publicações do começo de 2023 com despachos de dezembro de 2022, como é o caso do vídeo sobre a portaria de Augusto Heleno, ou descontextualizando o conteúdo de portarias.
“Isso pode acontecer por imperícia – alguém pode estar lendo o DOU sem saber como ele funciona ou confundindo os temas, encontra essas publicações e chega a conclusões incorretas”, explica. “Também pode ocorrer ou por má-fé – quando há intenção maliciosa de enganar, sabendo que as informações estão incorretas, mas usando esses argumentos para tentar convencer outros”.
Paganotti enxerga semelhanças com o cenário que se desenhou no Brasil e em outros países, durante a pandemia. “Muitos citavam esses documentos publicados em fontes oficiais – revistas científicas ou documentos da OMS – de forma descontextualizada, levando a conclusões absurdas sobre eficácia de tratamentos alternativos, como a cloroquina, ou riscos das vacinas”, afirma.
Coronavírus
Diário usado para compor um cenário
Em geral, os conteúdos que usam o artifício do Diário Oficial para provar uma tese não mostram detalhadamente o que está escrito nos textos publicados. Assim, a suposta prova acaba servindo apenas para compor um cenário. Mesmo assim, segundo os pesquisadores, não há qualquer preocupação dos autores do conteúdo desinformativo em acabarem desmascarados por alguém que decida realmente ir até o Diário conferir o que diz determinada publicação. Isso porque o público é, geralmente, predisposto a acreditar no que afirmam as postagens enganosas.
“Quem acredita em teorias da conspiração absurdas como essas procura informações que confirmem suas crenças anteriores, não estão procurando informações ponderadas e críticas”, diz Paganotti. “Por definição, os conspiracionistas acham que informações que contestam suas crenças são formas de acobertar os fatos ‘verdadeiros’ que só eles percebem, e por isso é difícil de compreenderem seus erros, insistindo na negação da realidade”.
Teorias da conspiração
Para o professor, ainda há uma barreira de acesso: muitas pessoas que consomem desinformação têm pacotes de dados ilimitados apenas para redes sociais, o que não permite acessar outros sites, por exemplo.
Taís Seibt acredita que, pelo ritmo rasteiro e apressado de consumo de informação na web, dificilmente o usuário que compartilhou algo sem ler vai se dar ao trabalho de checar seu conteúdo. “O fato de (um conteúdo) ser facilmente desmentido não é uma preocupação. Falsear fontes como o Diário Oficial pode ser uma estratégia pensada para contrapor principalmente a imprensa, na lógica de ‘isso eles não mostram’ ou ‘estão mentindo para você’”, pontua.
Como funciona o Diário Oficial?
Os atos oficiais do governo brasileiro são publicados no Diário Oficial da União desde 1862. Inicialmente impresso, o Diário se tornou 100% online em 2017. Qualquer pessoa pode acessar tanto a edição do dia como edições anteriores. As publicações são feitas em formato de texto, matéria por matéria, mas também é possível consultar o diário na íntegra ou por seções, em formato PDF, diagramado.
Além de acessar o Diário pelo site, também é possível consultá-lo por meio de um aplicativo. A publicação costuma ser dividida em três seções: a primeira reúne atos normativos de interesse geral (leis, decretos, resoluções, instruções normativas, portarias e outros); a segunda contém atos de pessoal da administração pública federal (portarias de nomeação, exoneração, aposentadoria e outros atos relativos a servidores da administração); e a última reúne contratos públicos, editais, avisos e comunicados diversos, balanços de empresas, entre outros. Também existem edições extras, quando há matérias de grande importância, e suplementos com anexos, por exemplo.
De acordo com o coordenador de Publicação do Diário Oficial da União, Alexandre Miranda Machado, são perfeitamente comuns situações como a portaria do general Augusto Heleno, assinada em 30 de dezembro de 2022 – uma sexta-feira – e publicada apenas em 2 de janeiro de 2023. “Não há um limite de tempo para publicação de um ato após sua assinatura”, explica. “No caso dos atos do general Heleno, por exemplo, a portaria foi assinada em 30 de dezembro de 2022, transmitida no mesmo dia 30, uma sexta-feira, e publicada no dia 2 de janeiro de 2023, segunda-feira. Isso é perfeitamente comum”, diz.
Nem sempre há edições do Diário Oficial no final de semana, mas pode haver edições extras, como aconteceu no dia 31 de dezembro deste ano – com exonerações de ex-ministros – e no dia 1º, com atos normativos do novo governo. “Uma edição extra pode ser publicada em qualquer dia e horário, em caso de urgência justificada. Quem avalia e autoriza é a Subchefia para Assuntos Jurídicos SG/PR, mediante pedido encaminhado por e-mail com as devidas justificativas, inclusive os impactos possíveis em caso de não publicação na mesma data”, completa Machado.
Segundo ele, um conteúdo desinformativo que circulou recentemente envolvendo o Diário Oficial foi o questionamento do resultado das eleições, porque a diplomação do presidente Lula não foi publicada no DOU. “Em resposta, informamos que os cargos eletivos não são publicados no DOU, pois não são nomeados ou designados por autoridade, mas sim eleitos pelo povo”, afirma.