No Brasil, a desinformação sobre a pandemia é institucional: vem principalmente do presidente, de outras autoridades do governo e dos aliados políticos de Jair Bolsonaro. Nos últimos 15 meses, eles utilizaram redes sociais e a estrutura de comunicação do governo para boicotar sistematicamente orientações de especialistas sobre medicamentos, distanciamento social, uso de máscaras e até mesmo a importância das vacinas. Ao fazê-lo, criaram confusão e encorajaram o relaxamento das medidas de prevenção, criando um ambiente propício ao aumento de contágios pelo coronavírus e mortes.
Movido pela estratégia de "imunidade do rebanho", Bolsonaro baseou a sua comunicação sobre a pandemia na promoção de medicamentos de "tratamento precoce", como hidroxicloroquina, cloroquina e ivermectina, e nos ataques às medidas de isolamento promovidas em Estados e municípios - consideradas uma ameaça ao projecto político do bolsonarismo devido aos seus efeitos na atividade econômica. O discurso oficial era o de que a covid-19 poderia ser combatida com remédios seguros e baratos, e que as medidas de isolamento não funcionariam e causariam mais danos do que o próprio vírus. "O Brasil não pode parar" tornou-se o slogan de uma campanha do governo no início da crise, em março de 2020, justamente quando vários países mantinham a população em casa para evitar a propagação do coronavírus.
E o que acontece quando a desinformação vem do governo? Além do presidente da República, o próprio Ministério da Saúde e outros organismos e agentes públicos distribuíram conteúdos enganosos em redes sociais, comunicados e documentos oficiais. Estas ações tiveram impacto direto na tragédia no Brasil, um dos 10 países com maior risco de morte por covid, de acordo com estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Neste momento, em junho de 2021, o país busca um respiro depois de ter passado por uma situação de colapso sanitário na segunda onda da pandemia. O número de mortes já superou 470 mil, com cerca de 2 mil entrando nesta estatística a cada dia. Pouco mais de 10% da população já recebeu duas doses de vacinas contra o coronavírus, e há sinais preocupantes de uma possível terceira onda de contágios.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado investiga a resposta federal à pandemia para, entre outros pontos, tentar medir o impacto da desinformação sobre tratamentos ineficazes no país. A comissão compilou mais de 200 episódios em que Bolsonaro propagou discursos negacionistas.
O presidente adotou postura negacionista em todas as fases da pandemia: disse que a doença não se propagaria no Brasil e que não seria grave, defendeu o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, atacou medidas de isolamento adotadas por governos e prefeituras e, por fim, desincentivou a vacinação. Não se trata apenas de atitudes emocionais, ideológicas e de menosprezo a pressupostos científicos.
Um grupo de pesquisadores e defensores dos direitos humanos que analisou todas as medidas tomadas pelo governo durante a pandemia concluiu que havia uma estratégia deliberada de propagação do vírus (abaixo), para que a população atingisse a chamada imunidade do rebanho, ou seja, a superação da pandemia pela via "natural". A teoria é que, se não fossem tomadas medidas e uma proporção significativa da população fosse contaminada, as pessoas criariam anticorpos e o vírus deixaria de circular.
Nenhum país, porém, conseguiu sair da crise desta forma, e aqueles que inicialmente pensaram em fazê-lo, como Israel e Reino Unido, recuaram rapidamente. Em diversas ocasiões, Bolsonaro disse que a melhor vacina é o próprio vírus. Afirmou também várias vezes que seria "inevitável" que 70% da população fosse infectada.
O fracasso da estratégia de imunidade de rebanho tornou-se evidente quando a pandemia completou um ano no Brasil, e a aceleração dos casos e das mortes levou governadores e prefeitos a adotarem novas medidas para restringir a mobilidade. Sob pressão, no final de março, Bolsonaro mudou o discurso sobre vacinas: deixou de semear dúvidas sobre a sua eficácia e segurança e passou a afirmar que as defendeu "sempre", o que é outra falsidade.
Bolsonaro, o influenciador da cloroquina
Nas redes sociais, cada elemento de desinformação que o presidente inseriu no debate público encontrou em seus simpatizantes um público enorme disposto a amplificá-lo. De março de 2020 a maio de 2021, dos 100 posts no Facebook com mais interações sobre cloroquina em português, Bolsonaro foi o autor de 42, ou quatro em cada dez. Desde o início da pandemia, os posts que ele publicou sobre o medicamento que se tornou símbolo de desinformação sobre a pandemia no Brasil tiveram 11 milhões de interações e 1,7 milhão de compartilhamentos, de acordo com uma análise realizada com a ferramenta CrowdTangle. Mesmo considerando as publicações sobre o assunto em outras línguas, o presidente brasileiro aparece no topo do ranking de engajamento, à frente do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump (1,1 milhões de interações) e da própria Organização Mundial de Saúde (503 mil).
No mundo político, o debate sobre a cloroquina foi dominado pelos bolsonaristas. As páginas de parlamentares brasileiros no Facebook publicaram quase 4,5 mil textos com os termos "cloroquina" e "hidroxicloroquina" desde março de 2020. Estes posts geraram mais de 43 milhões de interações. Entre os 100 posts mais populares da lista, apenas um era de um integrante da oposição e três de um deputado independente; os outros 96 provinham de governistas.
Algo semelhante aconteceu no Twitter: os deputados governistas Osmar Terra, Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli foram os parlamentares que mais interações geraram ao publicar informações falsas sobre a covid-19 em 2020, de acordo com estudo publicado pela agência de checagem Aos Fatos. Dos mil tweets sobre o novo coronavírus com mais interações publicados por deputados e senadores entre 11 de Março e 15 de Dezembro, 299 tinham alguma alegação falsa ou imprecisa, e 104 se referiam a medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19. Os tweets com desinformação tiveram 3,3 milhões de interações (retweets e likes), 31% do total de 10,4 milhões na amostra analisada.
A hidroxicloroquina e a cloroquina são dois medicamentos utilizados contra a malária e doenças autoimunes. No início da pandemia, se esperava que poderiam servir como tratamento contra o coronavírus. Contudo, após dezenas de estudos clínicos, a conclusão é que eles não são eficazes na prevenção ou tratamento da doença. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda fortemente que não sejam utilizados contra covid-19.
A cloroquina foi "vendida" na propaganda bolsonarista como um "tratamento precoce" contra covid. De acordo com essa leitura da crise, bastaria tomar o medicamento, juntamente com alguns outros, para evitar a doença ou se curar dela. A aposta, apesar da falta de evidências científicas sérias que a apoiassem, foi abraçada por parte importante dos médicos e da população.
Uma pesquisa de opinião publicada no dia 20 de maio pelo instituto Datafolha revelou que 23% dos brasileiros disseram ter recorrido ao "tratamento precoce" durante a pandemia. Aqui a influência do presidente é evidente: de acordo com a pesquisa, entre aqueles que se declaram eleitores de Bolsonaro, o tratamento precoce foi usado por 37%, o dobro da taxa registrada entre aqueles que pretendem votar no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022.
O post do presidente sobre cloroquina que atingiu o maior alcance no Facebook foi publicado quando ele próprio teve covid, em julho de 2020. Na ocasião, ele escreveu: "Aos que torcem contra a hidroxicloroquina, mas não apresentam alternativas, lamento informar que estou muito bem com seu uso e, com a graça de Deus, viverei ainda por muito tempo". Foram 101 mil compartilhamentos.
A primeira postagem que o presidente fez sobre a droga foi em 26 de março de 2020, quando anunciou que tinha eliminado o imposto de importação de cloroquina. Ele continua a recomendar o uso do remédio até hoje, e chegou a atribuir o colapso da saúde em Manaus, em janeiro deste ano, à falta de tratamento precoce com a droga. Em 20 de maio, Bolsonaro disse ter retomado recentemente o consumo de cloroquina, "antes mesmo de procurar o médico". "Olha só o que exemplo estou dando: tomei aquele remédio porque estava com sintoma", afirmou. "Tomei, fiz exame, não estava (doente). Mas, por precaução, tomei." Apesar de se referir claramente à cloroquina, o presidente não disse o nome da droga. "Não vou falar o nome para não cair a live", afirmou. "Aquele negócio que o pessoal usa para combater a malária, eu usei lá atrás e no dia seguinte estava bom." Isso se deve ao fato de o Facebook, no início de abril, ter apagado um vídeo em que Bolsonaro espalhou falsidades sobre os efeitos da cloroquina - segundo a rede social, o conteúdo violou as normas da plataforma.
O presidente foi também um dos políticos brasileiros que geraram mais interações ao fazer postagens sobre outros medicamentos sem eficácia comprovada contra covid-19: ivermectina (157 mil interações); azitromicina (750 mil) e nitazoxanida (231 mil).
Entre as evidências de que a desinformação tem impacto na pandemia está um estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de Cambridge, realizado em 2020. A análise conclui que os discursos de Bolsonaro com críticas às medidas de isolamento geraram maior mobilidade entre os seus seguidores - ou seja, eles ficaram mais expostos ao risco de infecção. Imediatamente após os pronunciamentos em que Bolsonaro atacou as restrições de mobilidade, a mobilidade aumentou mais nas cidades onde ele teve mais votos nas eleições de 2018. O deslocamento foi avaliado tendo em conta a geolocalização de celulares. Para efeitos de comparação, após os discursos que não criticaram o distanciamento, não se verificou qualquer mudança significativa na mobilidade. Ou seja, de acordo com o estudo, pode ser constatado um efeito direto do discurso negacionista de Bolsonaro sobre as decisões tomadas pelas pessoas.
Em novembro 2020, outro estudo baseado (abaixo) em dados da base colaborativa de checagens sobre coronavírus da International Fact-Checking Network (IFCN) apontou que Brasil e Índia estavam isolados de outros países em relação a tendências de desinformação. Apenas aqui o debate em torno da eficácia de cloroquina e ivermectina permaneceu em alta ao longo da pandemia. Os autores da análise apontam que disputas políticas internas podem ter motivado campanhas de desinformação no País, com governadores de estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia sendo alvos frequentes da boataria das redes.
As consequências da desinformação
O discurso polarizador e negacionista de Bolsonaro politizou a pandemia desde o início no Brasil. "A desinformação sobre a covid-19 foi enquadrada principalmente como um assunto político-partidário, deixando a questão da saúde pública em segundo plano", escreveram os autores do relatório Desinformação, Redes Sociais e Covid-19 no Brasil (abaixo), publicado no início de maio de 2021 por pesquisadores de duas universidades federais no Brasil. "Isto significa que as questões relacionadas com a mitigação da pandemia, sua gravidade e mesmo vacinas são discutidas como um assunto político, no qual é preciso adotar 'um lado', e não como uma questão de saúde pública, em que todos devem cooperar. Como consequência, as ações de controle da propagação do vírus (como medidas de distanciamento e o uso de máscaras) são entendidas como acões ideológicas, sendo rejeitadas por alguns grupos mais radicais. Este contexto também favorece que a desinformação sobre covid-19 circule nas redes de desinformação política já estabelecidas nas mídias sociais, que são particularmente polarizadas."
Desinformação, redes sociais e covid
Tai Nalon, diretora executiva da agência de checagem Aos Fatos, afirma que a desinformação tutelada pelo governo é perigosa por ser manifestada por autoridades com poder de criar políticas públicas. "O problema vai além do boato por WhatsApp: no Brasil, políticos usam informações falsas que geram engajamento nas redes para sustentar projetos de lei e decretos, como se, ao conferir caráter oficial à mentira, ela se tornasse automaticamente verdade."
"O País está muito fora da curva nesse uso da desinformação como uma coisa política", afirma Natália Leal, diretora de conteúdo da Agência Lupa. "Desde 2013, tudo vira uma polarização política bizarra no Brasil. Tem uma pandemia com 470 mil mortos e as pessoas ainda estão discutindo o tratamento precoce da cloroquina, porque o Bolsonaro disse que funciona. Isso é muito perigoso, estamos tratando de saúde pública."
Para a Lupa, o país já experimentou seis ondas de desinformação sobre Covid-19. Todas essas ondas encontraram respaldo em dúvidas ou mesmo afirmações que são incentivadas pela gestão Bolsonaro. Em janeiro de 2020, antes mesmo do primeiro caso confirmado no país, a primeira onda indicava que o vírus havia sido criado de propósito em laboratório, informação que já foi desmentida várias vezes. A segunda onda apontava produtos domésticos, como vinagre e alho, que seriam eficientes para prevenir a contaminação. Uma das ondas mais fortes e duradouras surgiu em abril, com a defesa do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, como cloroquina e hidroxicloroquina. A quarta e a quinta ondas estão relacionadas, a partir de origens diferentes, a uma tentativa de desqualificar a gravidade da pandemia: uma mostrando supostos caixões vazios e hospitais em clima de tranquilidade, denunciando uma suposta farsa, e a outra comparando números de registros de óbitos que apontariam para uma situação de normalidade. A sexta onda começou na metade de 2020, com desinformação sobre as vacinas, usando todo o tipo de manipulação de dados para questionar supostos interesses escusos na fabricação e perigos inexistentes.
Informações falsas também influenciaram a tomada de decisões de governos locais no enfrentamento à pandemia. Prefeitos de diversas cidades brasileiras estimularam a distribuição de "kits covid", com remédios sem eficácia comprovada contra a doença: além de cloroquina, azitromicina, zinco e vitamina C. Em Manaus, cidade no Norte do País que viu o estoque de oxigênio dos hospitais acabar em janeiro, o Ministério da Saúde lançou um aplicativo para estimular a adoção de um "tratamento precoce", sem respaldo científico, com cloroquina. Obviamente isso não impediu uma catástrofe na capital do Amazonas: em janeiro e fevereiro deste ano morreram mais de 4.000 pessoas de covid - mil a mais do que em todo o ano de 2020.
"É muito perigoso ter uma posição de desprezo pela ciência no cargo máximo da Presidência da República porque isso vai escalonar para comandos menores", aponta Natália. "Temos um ambiente político muito influenciado pela desinformação. Muitos dos prefeitos e até governadores, embora em uma medida menor, seguiram orientações do governo porque estão muito preocupados com o impacto político, não o impacto de saúde".
Os primórdios
Para entender a dinâmica da desinformação bolsonarista, é útil voltar aos primeiros dias da pandemia e observar como essa questão de saúde pública foi politizada. Em março de 2020, quando as mortes provocadas pelo novo coronavírus no Brasil ainda não chegavam a 50, Bolsonaro usou uma cadeia nacional de rádio e televisão para comparar a covid-19 a uma "gripezinha". Ele defendeu que as pessoas não se isolassem e que a vida continuasse normalmente, em um momento em que governadores anunciavam as primeiras medidas de quarentena para controlar a disseminação da doença.
Naquele momento, alguns governantes municipais e estaduais decidiram adotar a estratégia de lockdown, inspirados em exemplos da Ásia e da Europa, e foram duramente criticados pelo presidente da República, que tentou reverter a decisão. O caso foi parar na Justiça, e o Supremo Tribunal Federal (STF) deixou claro que os políticos locais tinham direito de tomar medidas mais restritivas em caso de calamidade sanitária. Mesmo sem poder impedir a interrupção de serviços não essenciais, Bolsonaro continuou criticando as medidas que buscavam o distanciamento social.
Como contraponto ao lockdown, Bolsonaro passou a disseminar nas redes sociais a defesa do "isolamento vertical". A ideia seria confinar em casa apenas pessoas idosas e/ou com comorbidades que pudessem agravar a doença. Assim, o comércio, as escolas e o transporte público poderiam ser mantidos em funcionamento. A medida nunca encontrou respaldo nas autoridades sanitárias, que apontam para os riscos da contaminação no ambiente residencial e destacam que pessoas jovens e saudáveis também podem ter casos graves de covid-19.
Em 8 de abril de 2000, com mais de 100 óbitos confirmados pela doença, representantes de agências de checagem brasileiras publicaram uma carta conjunta para pedir que autoridades parassem de distorcer fatos sobre a covid-19. No mesmo dia, porém, Bolsonaro fez novo pronunciamento em rede nacional de televisão para divulgar um remédio sem eficácia comprovada contra a covid-19, a hidroxicloroquina. Em maio, em meio a uma troca de ministros, o Ministério da Saúde passou a orientar a prescrição de cloroquina desde os primeiros sintomas da doença. Deputados governistas também engrossam o coro a favor do uso da medicação.
Depois de circular sem máscara em eventos públicos e promover aglomerações de seguidores, Bolsonaro foi diagnosticado com covid-19 em julho de 2020. Sua esposa, Michele, também se contaminou na mesma época. O fato de não terem desenvolvido a forma grave da doença foi usado como "prova" de que o novo coronavírus não era tão perigoso e de que a cloroquina era eficaz..
Desafios para os checadores
No ano passado, o fundador do site de checagens E-Farsas, Gilmar Lopes, sentiu na própria família o impacto da desinformação sobre coronavírus: seu pai teve de ser internado após contrair a doença. O jornalista lamenta que o pai tenha visto um "mau exemplo" nos governantes. "Se Bolsonaro aparece sem máscara, faz aglomeração, desmerece a doença, isso dá força pra outras pessoas abrirem mão desses cuidados", diz Lopes.
O E-Farsas desmente boatos online desde 2002, mas Gilmar diz não se lembrar de outra ocasião em que houvesse tanta mistura entre desinformação sobre saúde e política. "Agora, sempre colocam um componente político. Se você é contra um remédio, você é comunista."
O editor do Boatos.org, Edgard Matsuki, lembra que, antes da pandemia, as checagens sobre saúde publicadas no site costumavam desmentir a promoção de "curas milagrosas". O Boatos.org está no ar desde 2013. "Agora durante a covid-19, infelizmente há muitos boatos que tem mais a intenção de reforçar a visão de um político de estimação do que mesmo falar em cura", comenta.
Durante a pandemia, os checadores passaram a colecionar exemplos de informações falsas sobre saúde compartilhadas por políticos. "Essas pessoas são influenciadores na internet, e qualquer informação que passa por eles ganha muito eco", afirma Matsuki. "A dificuldade é o nosso desmentido ter o mesmo alcance que eles; muitas vezes a gente não consegue. Nossa estrutura é pequena e nosso alcance não se compara ao de pessoas influentes."
Como as informações enganosas compartilhadas por autoridades públicas repercutem mais rapidamente online, os checadores da agência AFP buscam ter a melhor reatividade possível quando lidam com esse tipo de conteúdo. Em meio à pandemia, a rapidez pode ser um desafio, uma vez que o conhecimento sobre a covid-19 tem se construído com o tempo.
O trabalho dos checadores é muito difícil quando, de um lado, há falsas certezas, e, do outro, só se pode responder com as evidências disponíveis, que muitas vezes não são perfeitas ou definitivas. "Ao final de 2020, o presidente Bolsonaro voltou a falar da ivermectina", diz Elodie Martinez, coordenadora na AFP. "É uma checagem complicada para a gente, porque ainda não há provas, resultados seguros sobre a eficácia desse tratamento. É bem delicado, não podemos falar que funciona nem que não funciona. Assim, procuramos a maior quantidade possível de especialistas e tentamos atualizar o tempo todo as pesquisas científicas que possam existir."
A Agência Lupa também teve de adaptar sua metodologia para conseguir contornar a dificuldade em conseguir dados sobre a covid-19. "A Lupa não costumava usar especialistas como fonte primária de informação", lembra Natália Leal, diretora de conteúdo da agência. "Mas, quando a gente deparou com uma doença pouco conhecida, mudamos as perspectivas."
O Projeto Comprova, uma coalizão que reúne 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros, checa conteúdos duvidosos que circulam nas redes sociais desde as eleições de 2018. Durante a pandemia, a iniciativa se mobilizou para desmentir boatos sobre o novo coronavírus. O Comprova ampliou o escopo do projeto para incluir postagens feitas por políticos, que antes não eram checados. Recentemente, a coalizão mostrou que é enganoso um tuíte em que Bolsonaro diz que o uso de ivermectina ajudou a controlar a pandemia na África.
O editor do Comprova, Sérgio Lüdtke, diz que os checadores têm enfrentado mais dificuldade para conseguir dados e respostas de autoridades sobre os temas investigados. "Quando a gente deveria estar buscando mais transparência de todos os atores envolvidos com a covid, principalmente em um momento crítico como agora, o que a gente vê é que há uma certa retração, um cuidado na liberação de dados que são buscados neste tópico."
Em junho de 2020, em resposta à decisão do governo federal de restringir a divulgação de números de casos e óbitos da covid-19, os veículos O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo, Extra, G1 e UOL formaram uma parceria para apurar os dados de maneira independente.
Transparência: quando não se pode confiar nos dados oficiais
A Open Knowledge Brasil (OKBR), braço nacional da organização internacional, é também conhecida como Rede pelo Conhecimento Livre e acompanha, desde o início da pandemia, o cenário da divulgação governamental dos dados brasileiros sobre covid-19, cobrando mais transparência, acesso e adequação a padrões científicos. Fernanda Campagnucci, diretora executiva da OKBR, aponta uma série de problemas nas declarações dadas por autoridades no país. "É uma situação muito perniciosa para a democracia." Ela lembra que o ponto de partida é de que a autoridade tenha fé pública, ou seja, tenha credibilidade institucional já reconhecida pela população. Em contrapartida, espera-se que o agente público aja de boa-fé, com o melhor conhecimento e atestando a veracidade dos dados que apresenta. "Mas temos autoridades que estão descaradamente faltando com a verdade", disse.
Fernanda Campagnucci reforça que há várias formas de desinformação, como os discursos que contrariam os fatos, sem compromisso com a verdade ou mesmo que omitem aspectos fundamentais. Ela cita como exemplo o foco do governo federal em falar no número de pessoas que tiveram a doença e sobreviveram, deixando de dar atenção aos dados sobre mortos. "O governo não está exatamente mentindo, mas está distorcendo e acaba desinformando", aponta. A diretora executiva comenta que o volume de dados ocultados, inverídicos ou distorcidos foi crescendo a ponto de criar dificuldades quase intransponíveis para que a imprensa checasse tudo. "O governo muda as versões com muita velocidade e sem compromisso até com o que falaram anteriormente. A sociedade não tem a mesma capacidade de se contrapor." Para ela, as atitudes de Bolsonaro se encaixam no conceito de necropolítica, caracterizada pelo pouco apreço pela vida.
Efeitos
Se há evidências de que a desinformação sobre a Covid-19 difundida pelos políticos leva a população a relaxar nos cuidados sanitários, editor do Comprova, Sérgio Lüdtke, aponta que há outra consequência, de longo prazo, de desacreditar a imprensa. "Esse é um efeito muito danoso", disse Lüdtke. "As pessoas deixam de acreditar e portanto deixam de acessar os veículos de informação -- que fazem um trabalho que às vezes é falho, mas é o melhor que se pode ter de informação e por onde a ciência se expressa de uma forma mais popular."
O dano secundário de perda de credibilidade da imprensa vai permanecer até depois da vacina, na opinião de Lüdtke, e pode ser permanente. "Estamos criando um modelo de consumo de informação que se baseia em interpretações erradas da realidade, em informações que circulam sem a devida apuração. Isso pode causar danos futuros em outras áreas, provavelmente na política."
O editor do Comprova diz acreditar que a melhor vacina para desinformação é a boa informação, apurada com rigor jornalístico. Para isso, o jornalismo precisa se mostrar mais transparente e conseguir apoio da sociedade, afirma ele. "Muitas vezes, o jornalismo é falho, é muito declaratório e acaba colaborando com campanhas de desinformação. Mas é a melhor alternativa quanto à desinformação."
Elodie Martinez, da AFP, destaca a importância da colaboração de plataformas de redes sociais na promoção de checagens. "O Brasil é particular no sentido de ter muitas pessoas se informando só por redes sociais", aponta ela. "É bem importante chegar a essas pessoas. Sabemos que as checagens não são tão interessantes quanto a desinformação para muitas pessoas, pois a desinformação procura despertar emoções como raiva e tristeza."
Natália Leal, da Lupa, diz que é preciso pensar em soluções mais estruturais para o problema da desinformação no Brasil. "O jornalismo é muito importante, mas não vamos salvar o mundo da desinformação só fazendo checagem. Só dizer que uma coisa é falsa ou verdadeira é enxugar gelo."
Natália adiciona que é necessário discutir o ambiente informacional desde a escola e investir em educação para formar cidadãos melhores. "A solução educacional é sempre o que me parece mais razoável, embora seja uma medida de médio e longo prazo", afirma. "Não vamos conseguir resolver agora."
Este texto faz parte de "Los desinformantes", uma série de reportagens sobre os diferentes atores que afetaram o cenário da desinformaração durante a pandemia. O trabalho foi produzido pelo Estadão Verifica em colaboração com a LatamChequea, rede de checadores de fatos da América Latina que é coordenada pelo Chequeado. A edição teve participação do jornalista argentino Hugo Alconada Mon.