O que estão compartilhando: que beber água quente antes de dormir e usar “truque do ozônio” combatem a acidose inflamatória, raiz dos problemas de saúde das pessoas.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Segundo especialistas, não há qualquer comprovação científica para as recomendações feitas no vídeo. Além disso, a acidose não é a “raiz da falta de saúde” das pessoas, e sim um sintoma de doenças raras ou de fases muito graves de doenças mais comuns, como diabetes e insuficiência renal – e pode ser letal se não tratada corretamente.
Saiba mais: O conteúdo foi publicado no Facebook por um usuário que utiliza a imagem do médico e escritor Lair Ribeiro – que já teve conteúdos checados outras vezes pelo Estadão Verifica e apontados como falsos ou enganosos por prometerem soluções milagrosas para problemas de saúde.
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O vídeo investigado alega que beber água quente à noite faz com que as pessoas fiquem saudáveis novamente e afirma que uma terapia chamada de “truque do ozônio” é capaz de combater facilmente aquilo que ele chama de “raiz da nossa falta de saúde”: a acidose inflamatória.
A responsável por publicar o vídeo no Facebook apagou a publicação. Já o escritor Lair Ribeiro foi procurado para informar se é o autor do conteúdo e se posicionar a respeito dele, mas não respondeu até a publicação desta verificação.
O que é acidose?
Acidose é o acúmulo de ácido no sangue ou em algum fluido corporal, e pode ser causada por várias situações, explica o endocrinologista Fábio Moura, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). A acidose pode ser metabólica ou respiratória, mas não necessariamente “inflamatória”, como diz o vídeo investigado.
“A gente pode classificar como acidose metabólica quando esse acúmulo de ácido é decorrente, por exemplo, de uma hiperglicemia, a famosa cetoacidose diabética. E essa acidose pode ser respiratória, quando o organismo não consegue expelir adequadamente o CO² e começa a acumular”, afirma.
A nefrologista Verônica Costa, da equipe médica da Prefeitura Municipal de Paraupebas (PA) acrescenta que a acidose não é uma doença, e sim um sintoma de outras condições mais graves. “Ela pode ser causada por excesso de produção de ácidos, como ocorre quando há diabetes muito descontrolado, alcoolismo, infeções graves, ruptura do tecido muscular esquelético ou raras doenças congênitas. Também pode ser causada por excesso de perda de bicarbonato pelos rins ou pelo intestino ou não excreção de ácidos, como no caso da insuficiência renal”, explica.
Segundo Fábio Moura, uma infecção ou inflamação pode levar a um quadro de acidose, mas pensar em acidose crônica provocada por uma alteração no estilo de vida é bastante questionável do ponto de vista científico. O nefrologista José Moura Neto, presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) ainda chama a atenção de que a acidose não é algo tão comum a ponto de ser considerada a “raiz dos problemas de saúde das pessoas”, diferentemente do que afirma o vídeo viral.
“A dieta pode interferir nesse equilíbrio [dos níveis de ácido no sangue], porém quando em condições extremas. Por exemplo, uma dieta com quantidades excessivas de proteínas pode causar acidose. Entretanto, a grande maioria das pessoas não apresenta acidose. Este é um distúrbio associado a condições específicas e só deve ser tratado quando diagnosticado, através de exames específicos e associação com o quadro clínico”, diz.
E ele alerta: “A utilização de medidas (medicamentosas ou não) de forma preventiva ou indevida pode desencadear outro desequilíbrio nos níveis de ácidos do sangue, chamado alcalose”. A também nefrologista Verônica Costa lembra que este quadro pode ser ainda mais letal e irreversível do que a acidose.
Ozônio e água quente não tratam acidose
Para a nefrologista Verônica Costa, não há nenhum fundamento científico no uso de água quente ou ozônio para tratamento da acidose, e acreditar em conteúdos que prometem soluções milagrosas pode ser um risco sério. “A acidose não é uma doença, mas um sintoma. A maioria das condições [a que ela está ligada] são muito sérias, graves e letais, se não tratadas corretamente. Não é um sintoma comum. Ele aparece em doenças muito raras ou fases muito graves de doenças mais comuns, como o diabetes descontrolado e a insuficiência renal mais avançada”, diz.
Uma observação feita pelo endocrinologista Fábio Moura é que o termo “acidose” é tratado no vídeo de maneira vaga. Não há um tratamento universal que sirva para a acidose, porque o combate é feito a partir do tratamento daquilo que levou à acidose. Não é o caso da ozonioterapia, nem de um suposto “truque do ozônio”, esclarece. “Ozonioterapia tem indicação em prática odontológica. Ozonioterapia clínica, usada como tratamento médico, é terapia experimental em qualquer lugar do mundo”, afirma.
Diferentemente do que afirma a narração do vídeo, não é verdade que “vários estudos confirmaram que a terapia era eficaz para muitas pessoas”. Pelo contrário: “Todos os órgãos reguladores dizem que ozonioterapia é tratamento experimental, as evidências científicas são muito fracas para a gente recomendar. Existe uma plausibilidade biológica, ou seja, pode ser que funcione, mas quando a gente vai pegar a evidência científica, o dado é muito escasso”, completa Moura.
Sobre a água quente, a falta de evidência é ainda maior. “Essa coisa de beber água quente pra tratar acidose é uma coisa totalmente sem base científica, é totalmente empírico, é achismo. Se você for revisar a literatura médica procurando pesquisa científica mostrando isso, você vai ver que não tem nenhum respaldo científico”, diz Moura.
Acidose tem tratamento bem estabelecido e outras práticas podem agravar o quadro
Para o presidente da SBN, José Moura Neto, o tratamento para correção da acidose é bem estabelecido e efetivo. “Consiste na reposição de bicarbonato de sódio, para reestabelecer o equilíbrio ácido-básico no sangue, e no controle da causa dessa acidose (suspender possíveis medicações associadas, hidratação, controle da glicemia, cessar o etilismo, compensar a doença renal crônica, compensar a doença pulmonar…). Qualquer outro tratamento fora dessa linha deve ser evitado, pois pode agravar a condição de saúde do paciente”, diz.
Ele acrescenta que o uso de medicamentos ou práticas que não passaram por um processo regulamentado coloca em risco a saúde e a vida do paciente, e podem agravar o quadro. “Todo tratamento precisa ser regulamentado. Para isso, há uma rigorosa fiscalização que acompanha as diversas fases de estudo do tratamento (medicamento ou recomendação), incluindo testes em laboratório, em animais e, só posteriormente, em um número controlado de pacientes, a fim de garantir sua eficácia e segurança antes de liberar o uso para a população geral. O uso de medicamentos ou práticas que não tenham passado por essas etapas regulatórias é ilegal e coloca em risco não só a saúde, como a vida do paciente”, diz.