Não é verdade que um relatório científico tenha mostrado que a vacina da Pfizer contra a covid-19 pode causar Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas. Esse boato circula nos Estados Unidos desde o início do ano e foi desmentido por três agências de checagens e o jornal USA Today. Estudos clínicos rigorosos demonstraram a eficácia e a segurança do imunizante, e não há registro de que o produto cause qualquer efeito colateral do tipo.
Leitores do Estadão Verifica encaminharam essa sugestão de checagem pelo WhatsApp do blog: (11) 97683-7490. O conteúdo falso foi postado originalmente, em inglês, pela página de extrema-direita "National Life". O mesmo link é encaminhado pelo aplicativo de mensagens no Brasil, acompanhado pelo título traduzido.
Na peça de desinformação, a página alega que um "novo e chocante relatório" descobriu que a vacina contra a covid-19 produzida pela Pfizer "pode apresentar efeitos de saúde desconhecidos antes, incluindo ALS (esclerose lateral amiotrófica), Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas". O título da postagem vai além e afirma que um estudo "confirmou" a associação. Nada disso é verdade.
O estudo é, na verdade, uma tese falha e sem base científica compartilhada por um médico e ativista anti-vacina chamado John Barthelow Classen. O fato é apontado pelas agências de checagem norte-americanas Politifact,Snopes e Health Feedback e por uma reportagem do jornal USA Today.
Classen teve o seu artigo publicado na "Microbiology & Infectious Diseases" -- uma revista online de qualidade duvidosa, mantida por uma plataforma de acesso aberto (SciVision) que é suspeita de atuar como uma editora predatória nos Estados Unidos. O termo se refere a publicações oportunistas que têm como principal objetivo lucrar com os acadêmicos, oferecendo critérios frouxos de entrada e revisões pouco confiáveis ou mesmo inexistentes. Em troca, pedem o pagamento de taxas aos autores ou cobram pela impressão e pelo envio dos materiais.
A cobrança de taxas ou de assinaturas também existe entre revistas renomadas. A diferença é que elas contam com conselhos editoriais formados por cientistas reconhecidos na área e estabelecem critérios rigorosos de acesso. Dessa forma, é a qualidade da revisão por pares -- e não a facilidade em ter a pesquisa publicada -- que confere prestígio ao veículo de divulgação científica e alimenta a procura de pesquisadores sérios e interessados em gerar impacto positivo com os seus trabalhos.
Pesquisa é 'mera especulação'
De acordo com as fontes americanas, o artigo de Classen é uma mera especulação, levantada a partir de uma análise das sequências de RNA mensageiro (uma espécie de molde com informações genéticas de uma parte do vírus) contidas na vacina da Pfizer. O Estadão Verifica observou que a pesquisa descreve as etapas de análise em apenas três parágrafos, sem informar sequer o programa utilizado. Não foram divulgados os dados brutos, nem comparações e ilustrações sobre a suposta descoberta.
Como explicou o blog em outras checagens, as vacinas da Pfizer e da Moderna utilizam uma tecnologia chamada de RNA mensageiro (mRNA). O material é uma espécie de receita para que as células do organismo produzam uma proteína do SARS-CoV-2, chamada spike ou proteína S. A mensagem é lida por estruturas que ficam localizadas fora do núcleo das células e se degrada rapidamente. Essas proteínas acabam treinando o sistema imunológico a combater o vírus depois.
É a primeira vez que esse tipo de vacina está sendo usada em larga escala no mundo, mas a tecnologia de mRNA é estudada há mais de duas décadas e também já foi usada, em caráter experimental, para combater câncer, zika e outras doenças. Os Estados Unidos foram um dos primeiros países do mundo a autorizar o uso emergencial da vacina da Pfizer, com a qual o governo brasileiro firmou contrato de 100 milhões de doses. O primeiro lote chegou no final de abril e já está sendo aplicado nas capitais.
O autor do artigo enganoso alega que alguns trechos do RNA mensageiro contido na vacina da Pfizer poderiam induzir proteínas conhecidas pelas siglas TDP-43 e FUS a se deformarem, levando ao aparecimento de doenças neurológicas degenerativas. Ele também sustenta que proteínas codificadas e que geram a resposta imune após a vacinação teriam o potencial de liberar zinco, o que também supostamente poderia aumentar o risco do aparecimento de príons, um agente infeccioso que consiste em proteínas anormais que se espalham e provocam a morte de células do sistema nervoso central. A conclusão de Classen é que a vacina da Pfizer pode resultar em doenças como ALS, demência frontotemporal, Alzheimer, Creutzfeldt-Jakob e Kuru.
Especialistas, no entanto, apontam uma série de falhas no artigo e entendem que o médico e ativista anti-vacina promove uma relação insustentável com essas patologias. Jesús Requena, professor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, afirmou ao Health Feedback que o artigo é "uma especulação completamente enganosa e sem base científica, que não contém nenhuma evidência experimental". Requena aponta ainda que o artigo distorce uma de suas referências bibliográficas e apresenta insinuações ideológicas como a de que vacinas podem ser armas biológicas, tese que não traz uma única citação e jamais deveria fazer parte de um trabalho científico.
Ao site Snopes, o virologista da Universidade Tulane, dos Estados Unidos, Robert Garry ressaltou que o artigo não oferece uma análise estatística que mostre que a formação de príons ocorre com mais frequência por conta da situação relatada com a vacina. "O corpo está cheio de RNA. O Dr. Classen não demonstrou, por nenhum esforço de imaginação, que as sequências da vacina da Pfizer são especiais ou inesperadas além de qualquer coisa que ocorra puramente por acaso."
O USA Today consultou a virologista da Universidade Georgetown Angela Rasmussen, que também criticou a metodologia e as conclusões do artigo. Para ela, a pesquisa "não tem peso científico nenhum". O jornal também reproduz comentários do professor da Escola de Medicina da Universidade do Estado de Wayne David Gorski, no blog Science-Based Medicine: "O que temos aqui é muita especulação, com a descoberta de uma conexão obscura baseada em uma metodologia não explicada e que não está nem perto do nível de rigor científico necessário para ser convincente."
A prática também mostra que as preocupações do artigo não fazem sentido. No final de fevereiro, a agência Politifact, mantida pela The Poynter Institute, questionou o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) a respeito de registros de efeitos colaterais relacionados à vacina da Pfizer. "O VAERS (sistema de comunicação de efeitos colaterais de vacinas do governo) não recebeu relatos de doenças de príons, Alzheimer ou esclerose lateral amiotrófica (ALS) após a vacinação de covid-19", respondeu a porta-voz Martha Sharan.
A página oficial do CDC permanece sem mencionar qualquer efeito colateral grave entre os possíveis sintomas da vacina da Pfizer até o momento. Nos Estados Unidos, 40% da população já está vacinada com pelo menos uma dose dos imunizantes autorizados: Pfizer, Moderna e Janssen.
Vacinas são eficazes e seguras
Antes de serem disponibilizadas para a população, todas as vacinas contra a covid-19 passam obrigatoriamente por uma série de testes até a aprovação pelos órgãos de vigilância sanitária dos respectivos países. O processo envolve estudos de laboratório, testes em animais e depois ensaios clínicos em seres humanos, geralmente em três etapas distintas, com milhares de voluntários. Os dados são conferidos pelas autoridades de saúde e precisam comprovar a sua eficácia e segurança.
No caso das vacinas de RNA aprovadas nos Estados Unidos, 15.210 voluntários receberam o produto da Moderna e 21.720 pessoas, a vacina da Pfizer, considerando apenas a etapa final de ensaios clínicos. Esses participantes foram monitorados, em média, por mais dois meses após a aplicação da segunda dose. As reações adversas mais comuns foram dores no braço, febre, cansaço, dores de cabeça e dores musculares, sintomas semelhantes aos causados por outras vacinas. Não foram registrados eventos inesperados. Os resultados foram publicados na revista científica The New England Journal of Medicine em dezembro.
Mesmo depois de aprovadas, cientistas e autoridades de saúde continuam acompanhando a aplicação das vacinas em larga escala para detectar possíveis efeitos adversos. Essa etapa é chamada de fase quatro ou de farmacovigilância. As autoridades de saúde monitoram qualquer padrão de evento adverso grave nos grupos de vacinados e podem interromper a aplicação por precaução, totalmente ou em determinados grupos.