Uma nota técnica publicada pelo Ministério da Saúde na última quarta-feira, 28, estabelecia que não deveria haver um limite temporal para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. O Código Penal brasileiro também não estabelece um limite de tempo. A nota técnica anulava uma decisão do governo anterior que impunha o limite temporal de 21 semanas e 6 dias. A medida causou a reação entre políticos e influenciadores de oposição. Após a repercussão, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, suspendeu o texto alegando que ele não passou por consultoria jurídica e nem por todas as esferas necessárias da pasta.
O governo pouco explicou sobre o assunto e o caso gerou uma onda de desinformação, deixando muita gente confusa. Afinal, o governo Lula mudou a legislação sobre aborto? O Estadão Verifica explica a seguir.
O que diz a nota publicada e anulada em seguida pelo Ministério da Saúde?
A nota técnica é assinada pelas secretarias de Atenção Primária à Saúde e de Atenção Especializada à Saúde. Ela anulava duas recomendações de 2022, do governo Jair Bolsonaro, que instruíam profissionais de saúde a não interromperem gestações a partir das 22 semanas.
O texto publicado no governo Lula diz que não cabe aos serviços de saúde limitar a interpretação de direitos. Argumenta que o artigo 128 do Código Penal (confira aqui) não estabelece um limite temporal para o aborto legalizado nos casos previstos por lei (se não houver outro meio de salvar a vida da gestante e em caso de gravidez resultante de estupro).
O documento ressalta que o STF ampliou a possibilidade de interrupção da gravidez no caso de feto anencéfalo. Na ocasião, a Corte também não estabeleceu um limite temporal para interrupção da gestação.
Há, ainda, um destaque para o fato de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define, na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), que o aborto induzido não tem relação com o tempo gestacional, peso fetal e tampouco “viabilidade fetal”, ou seja, a capacidade de um feto sobreviver fora do útero.
A nota técnica defendia que a garantia do direito à interrupção da gravidez nas condições previstas em lei em qualquer tempo gestacional é a recomendação baseada nas evidências científicas mais recentes, tanto da OMS, quanto da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO).
O documento entendia, ainda, que configura ato de tortura/violência física e/ou psicológica, tratamento desumano e/ou degradante a obrigação de a gestante manter a gravidez em qualquer das hipóteses garantidoras do direito ao abortamento.
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Um posicionamento semelhante foi adotado pelo Ministério da Saúde no ano passado, em ofício enviado ao STF no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 989. A Corte analisa pedido de entidades da sociedade civil para que seja determinada a adoção de providências para assegurar a realização do aborto nas hipóteses permitidas no Código Penal e no caso de gestação de fetos anencéfalos.
A nota técnica agora anulada foi editada após uma recomendação conjunta ser assinada pela Defensoria Pública da União e defensorias de 16 Estados. O documento solicitava que fosse promovida a ampliação da oferta e a qualificação dos serviços de aborto legal no País, além da publicação de um manual técnico com normas atualizadas.
As instituições signatárias destacaram os efeitos danosos da desinformação e a ausência de orientações como causadora de insegurança para os profissionais de saúde que atuam nos serviços que garantem o direito ao aborto nos permissivos legais. O Estadão Verifica solicitou à DPU o acesso à nota conjunta, mas não teve resposta.
O que dizia a Nota Técnica e o Manual de 2022?
Em 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro, foi lançada a segunda edição do manual “Atenção Técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”. O documento não está mais disponível na Biblioteca Virtual em Saúde, mas pode ser consultado em uma página do jornal Gazeta do Povo (confira aqui).
A cartilha causou polêmica ao defender que sempre que houver “viabilidade fetal” deve ser assegurada toda a tecnologia médica disponível para permitir a chance de sobrevivência após o nascimento. Também diz que não há sentido clínico na realização de abortamento legal em gestações que ultrapassem 22 semanas. Uma versão anterior desse material afirmava que “todo aborto é crime”.
Tanto a cartilha, quanto a nota técnica de 2022 que deu origem a ela, foram publicadas após uma recomendação do Ministério Público Federal para regulamentação do uso do cloreto de potássio (KCl) nos procedimentos de abortamento legal no Brasil. O órgão queria que fosse proibido o uso da substância sem anestésico em fetos, alegando possível sofrimento.
Em janeiro de 2023, logo após o governo Lula assumir, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que revogou a cartilha “por não estar alinhada com a atual orientação sobre direitos sexuais e reprodutivos” da pasta. A decisão está informada na página de divulgação do manual.
Por motivos não explicados pelo Ministério da Saúde quando procurado pela reportagem, a nota técnica publicada nesta semana – e em seguida cancelada – anulava uma segunda vez essa cartilha e a nota técnica de 2022 que deu origem a ela.
O que diz o Ministério da Saúde?
Ao explicar a anulação da nota publicada nesta semana, o Ministério da Saúde informou que o tema será tratado pela ministra junto à Advocacia-Geral da União (AGU) e ao STF, no âmbito da ADPF 989. A pasta não entrou em detalhes sobre a publicação do conteúdo e por que ele ocorreu nesse momento. Informou, apenas, que a ministra só soube da publicação na quinta-feira, 29, enquanto cumpria agenda em Boa Vista (RR).
O que está em jogo no STF?
Atualmente, o STF analisa pedido para a adoção de providências para assegurar a realização do aborto nas hipóteses permitidas no Código Penal e no caso de gestação de fetos anencéfalos. As entidades que deram entrada no pedido alegam que a proteção dada às mulheres e às meninas vítimas de estupro que precisem interromper a gestação é insuficiente e caracteriza uma segunda violência, desta vez por parte do Estado.
A ação é assinada pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pela Associação Rede Unida, que integram a “Frente pela Vida”. Elas reconhecem que o tema é sensível, mas sustentam que a legislação brasileira é clara ao afirmar o dever do estado de assegurar o aborto nesses casos.
O pedido foi feito após a publicação, em 2022, do manual orientando que os profissionais da saúde só realizem o procedimento até a idade gestacional de 22 semanas. A última movimentação do processo ocorreu em dezembro de 2023.
O STF também julga, em outra a ação, a descriminalização do aborto até a 12ª semana.
Qual o entendimento jurídico sobre interrupção legal de gravidez?
Conforme a especialista em direito médico Marinella Afonso de Almeida, do escritório Marzagão e Balaró Advogados, “aborto legal” é um nome utilizado para o procedimento de interrupção de gestação autorizado pela legislação brasileira e que deve ser oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Ela também destaca que o artigo 128 do Código Penal não estabelece um limite temporal para a realização de abortos e nem mesmo o STF, quando autorizou a interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo, fixou qualquer limite de idade gestacional.
“A confusão parece ocorrer pelo termo utilizado como sendo ‘aborto legal’. Abortamento, por definição (da OMS), é a interrupção da gravidez até a 20ª-22ª semana e com produto da concepção pesando menos que 500g. Ocorre que a lei não fixou limite de idade gestacional para a interrupção de gestação, de modo que é permitida a interrupção também a partir da 22ª semana, mas essa interrupção por definição não seria considerada aborto”, explica.
De acordo com ela, a nota técnica de 2022 adotava a recomendação de que o aborto legal deveria ser realizado até a 22ª semana de gestação e, em razão dessa recomendação, algumas mulheres que se enquadravam na hipótese de interrupção legal da gravidez tinham o seu direito violado.
Como exemplo, a advogada cita o caso de repercussão nacional em que uma menina de 11 anos, vítima de um estupro, teve o aborto negado pela Justiça de Santa Catarina porque estava com 22 semanas e dois dias de gestação. Após interferência do Ministério Público Federal, o procedimento foi realizado.
A professora de Direito Constitucional Carolina Cyrillo, da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), reforça não existir nenhuma lei que fale em tempo para interrupção da gestação nos casos não punidos como aborto. Assim, mesmo a nota técnica de 2022 deveria ser entendida como uma recomendação naquele momento, não como uma determinação. “Nota técnica não tem força de lei. Os casos de interrupção de gestação não puníveis como crime de aborto estão na lei e só uma lei pode dispor sobre esse direito. A lei não fala em prazo e nota técnica pode ter caráter persuasivo, mas não força de lei”, observa.
Ela diz que, na prática, há problemas no momento de conceder o direito à mulher. “Em tese, o sistema deve acolher como saúde e não como justiça ou polícia, mas existe confusão entre essas instâncias, o que dificulta o acolhimento das vítimas que precisam fazer o uso do seu direito de interromper a gestação de forma legal e segura.”
No ambiente ideal, explica Marinella, uma gestação decorrente de violência sexual pode ser relatada pela vítima à equipe médica sem necessidade de apresentar boletim de ocorrência, por exemplo. “Todos os documentos necessários serão preenchidos no próprio hospital. Essa paciente geralmente é atendida por uma equipe multidisciplinar, com médico, assistente social e psicólogo que irão acolhê-la e orientá-la sobre a permissão legal de interrupção da gestação, caso seja confirmada”.
Na hipótese de gestação de risco e anencefalia, se faz necessário um laudo médico que comprove a situação. Para anencefalia, pode ser exigido um exame de ultrassonografia com o diagnóstico.