Conteúdo analisado: Vídeo da candidata ao Senado Damares Alves (Republicanos), ex-ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro (PL), em que ela acusa a gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de "motivar" adolescentes e jovens a usar drogas. No vídeo, publicado no YouTube, Damares lê conteúdo de cartilha que trata sobre o uso de entorpecentes e, ao fundo, aparecem imagens de trechos destacados da publicação. Há também uma inserção de fotos de Lula, candidato à Presidência da República, com um fundo preto e as inscrições: "Governo Lula ensinava em cartilha como os jovens deveriam usar crack." A ex-ministra diz que essa era a política de prevenção ao uso de álcool e drogas na administração petista.
Comprova Explica: O vídeo de Damares Alves colocou em debate a prevenção ao uso de álcool e outras drogas durante as administrações do PT. No vídeo, a ex-ministra afirma que, no governo Lula, adolescentes e jovens eram ensinados a utilizar entorpecentes. O discurso saiu do YouTube e ganhou as redes sociais, com discussões sobre a política adotada na gestão petista.
A cartilha apresentada pela ex-ministra de fato foi produzida pelo Ministério da Saúde, à época sob o comando do ministro José Gomes Temporão, no governo Lula, mas tinha como foco serviços de saúde que acolhem usuários de drogas e dependentes químicos. Seu objetivo era auxiliar os profissionais dedicados a lidar com pessoas que se recusam a abandonar o uso de entorpecentes, mas que desejam evitar outros problemas correlacionados, como doenças transmissíveis, por exemplo. Ações neste sentido constituem a chamada política de redução de danos.
Com a repercussão do caso, o Comprova decidiu explicar o que significa a política de redução de danos divulgada por Damares e que havia sido implementada nos governos do PT.
Cartilha apresentada por Damares Alves era distribuída entre profissionais de saúde
Os trechos da cartilha lidos por Damares Alves fazem parte do álbum seriado "Prevenção às IST, HIV/Aids e Hepatites entre pessoas que usam álcool e outras drogas", segundo Maria Angélica de Castro Comis, psicóloga e integrante da organização Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (Reduc).
A especialista informa ao Comprova que o material foi veiculado em 2008 e era destinado a profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) que atuavam junto aos usuários e dependentes químicos.
Conforme informou o Ministério da Saúde em nota técnica de janeiro de 2019, ao responder a um requerimento do então deputado federal Miguel Martini, que era do PHS naquele período, foram produzidos 10 mil álbuns seriados ao custo de R$ 32.200 (R$ 3,22 cada) e, na época, 1.356 ainda estavam em estoque. A distribuição foi feita por mala direta aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), aos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) e aos Serviços de Atenção Especializada em HIV/Aids (SAE).
Acompanhava o material uma orientação expressa para que fossem utilizados exclusivamente por profissionais de saúde e organizações da sociedade civil para o trabalho dirigido às pessoas que usam álcool e outras drogas, em serviços específicos e em campo. O Comprova teve acesso ao documento via Lei de Acesso à Informação, fornecido pela Câmara dos Deputados.
O álbum compunha um kit lançado em 10 de outubro de 2008 que incluía cartão para qualquer usuário de substâncias psicoativas, com espaço para anotação do endereço do serviço de referência, e cartaz com informações referentes à redução de danos.
O objetivo do material era servir de apoio ao trabalho dos profissionais de saúde e dos agentes que atuam com redução de danos na abordagem dos usuários de álcool e outras drogas. "O conjunto de materiais foi concebido para contribuir na melhoria do acolhimento das pessoas que usam álcool e outras drogas dentro do sistema de saúde e para combater o preconceito, o estigma e a discriminação", informa a nota técnica.
Segundo o documento, o acolhimento de qualidade possibilita a promoção da saúde, estrutura vínculos de confiança, fortalece a autoestima, estimula o usuário a cuidar de si. "Para quem usa álcool e outras drogas, isso pode significar redução de vulnerabilidade, prevenção de doenças, diminuição/interrupção do consumo de substâncias psicoativas", conclui o texto.
Doutora em Saúde Coletiva e pesquisadora do Grupo de Estudos em Álcool e Outras Drogas da Universidade Federal de Pernambuco (GEAD/UFPE), Rossana Rameh acrescenta que a cartilha visava atingir usuários de drogas pesadas, inclusive injetáveis, e o segmento específico de profissionais que lidam com esse público. "Não é uma tela para ser distribuída na escolinha ou em qualquer serviço de saúde", afirma. "Era criado e feito para usuários de drogas, pessoas que dizem 'eu uso e não quero parar, não tenho condições de parar, quero usar sem me ferrar tanto, o que eu faço?'", diz.
O que é a política de redução de danos
Rossana Rameh ressalta que a redução de danos é uma política feita diretamente com o usuário de drogas e considera que a sociedade nunca esteve e nunca estará livre das drogas. Assim, afirma, a perspectiva levada em conta é que as pessoas vão continuar usando drogas independentemente de o governo manter ou não uma política proibicionista.
A especialista diz, ainda, que a redução de danos é um conjunto de estratégias e intervenções que visam cuidar das pessoas que usam drogas, inclusive incentivando-as a parar de usá-las, se esse for o desejo delas. Essa política, continua Rossana, não nega abstinência, mas também considera que algumas pessoas não vão desejar parar ou não poderão parar de imediato. "Isso é uma coisa mais complexa, mas que a gente precisa dizer que algumas pessoas vão usar drogas na vida".
Para Maria Angélica de Castro Comis, a redução de danos é uma política que busca melhorar a qualidade de vida das pessoas, principalmente aquelas que usam drogas, além de prevenir as infecções sexualmente transmissíveis. "A redução de danos tem como objetivo modificar o padrão de uso de drogas, reduzir os agravos de saúde e sociais das pessoas mais vulneráveis, como usuárias de drogas, profissionais do sexo, pessoas em situação de rua, entre outros", diz.
A psicóloga reforça que a redução de danos não tem como principal objetivo levar o usuário à abstinência, mas sim incentivar o cuidado. "A redução de danos pode ser um caminho para a abstinência, mas por ser uma política com baixa exigência muitas vezes é arbitrariamente acusada de apologia ao uso de drogas", afirma Maria Angélica.
Wander Wilson Júnior, doutor em Ciências Sociais e pesquisador de drogas, saúde mental e redução de danos, afirma o mesmo. Segundo ele, a redução de danos não se trata de incitar ou não o uso de entorpecentes, mas falar francamente sobre o que é o uso e lidar com uma realidade concreta que é a existência de usuários.
"Essa erradicação e esse mundo sem drogas é uma utopia que nunca se cumpre, nunca vai se cumprir, e inclusive isso tem um papel em manter o que se chama de guerras às drogas, esse fracasso que nunca se cumpre, se mantém sempre como promessa e a resposta para essa promessa é sempre mais encarceramento, sempre menos conversa franca", argumenta.
O especialista explica que a redução de danos é uma política pública de saúde, bem como uma tentativa ética de cuidado com as pessoas que usam drogas. "Você vai ver o usuário como uma pessoa que usa drogas, e se ele tiver sofrimento relacionado ao uso de drogas e o uso for considerado problemático, seja ele diagnosticado como dependência ou não, você vai montar, junto com essa pessoa, possibilidades de cuidado para produzir uma vida que vale a pena ser vivida", afirma.
Ele destaca, porém, que este processo é feito de forma conjunta. "Você não vai impor uma forma de cuidado e uma moral de cima para baixo para essa pessoa, mas vai construir junto com ela", diz: "Algumas pessoas não vão querer parar de usar drogas, outras vão colocar isso como uma meta e irão demorar algum tempo, terão suas dificuldades, e você não vai colocar a abstinência de drogas como uma exigência de cuidado com essa pessoa".
Histórico da estratégia de redução de danos
Wander Wilson Júnior resgata a história da estratégia de redução de danos retornando ao ano de 1926, quando um relatório inglês chamado Rolleston tentou formalizar a prática, a partir da experiência de soldados em guerra.
Muitos combatentes voltaram ao seu país dependentes de opioides (morfina) e alguns deles não conseguiam parar de utilizá-los, mesmo querendo, o que atrapalhava a vida que levavam.
"Se formalizou uma possibilidade clínico-terapêutica de se ter uma prescrição médica de opioides com doses manejáveis para que a pessoa continuasse consumindo opioides, mas mantendo a sua vida, a sua rotina corriqueira, de forma produtiva".
No Brasil, aponta Wander Wilson Júnior, o ano de 1989 foi um marco importante quando a Prefeitura de Santos, no litoral de São Paulo, tentou implementar uma política de distribuição de seringas descartáveis na região portuária, considerando a alta incidência de infecção por HIV decorrente do consumo de cocaína injetável. "Mas essa política teve que retroceder baseada numa pressão moral que envolvia mídia, religião e a sociedade de modo geral", afirma.
Em março de 1997, São Paulo aprovou a primeira Lei Estadual de Redução de Danos (9.758/97). Sete anos depois, em outubro de 2004, a Portaria 2.197 integra a Redução de Danos ao SUS e as ações são regulamentadas pelo Ministério da Saúde pela Portaria 1028, de julho de 2005. No mesmo ano, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas a Política Nacional Sobre Drogas, com um capítulo destinado à redução de danos. Já em 2006, foi sancionada a Lei 11.343, que excluiu a pena de prisão para usuários de substâncias ilícitas.
O Comprova procurou o Ministério da Saúde questionando sobre as políticas públicas desenvolvidas em relação à redução de danos atualmente, mas não recebeu resposta.
Política de redução de danos em outros países
A política de redução de danos não é uma exclusividade do Brasil. Vários países implementaram a estratégia, visando minimizar os impactos do uso de drogas. Maria Angélica afirma que a medida é amplamente adotada em países como Canadá, Alemanha, Suíça, Austrália, Estados Unidos, Holanda, Espanha, Portugal e França. Nesses locais, segundo ela, as políticas de redução de danos estão articuladas a outras políticas públicas de saúde, assistência social, habitacional, segurança pública e trabalho. "Muitos desses países têm espaços de uso seguro de drogas, que evitam mortes por overdose e são articulados com serviços para desintoxicação", afirma.
Para Rossana Rameh, a utilização de salas seguras, como ocorre na Suíça e Espanha, por exemplo, está longe de ocorrer no Brasil. "Aqui é algo extremamente impensável nos dias atuais, no sentido do moralismo, do medo", diz.
A pesquisadora observa que, no Brasil, fala-se muito em guerra às drogas, mas ela avalia que essa guerra é mais voltada aos usuários. "E tem um foco. Essa guerra tem cor e classe social. O Uruguai, com toda a sua política de regulação do uso da cannabis, traz uma regulamentação que facilita o controle dessa substância e do usuário. Há um mapeamento dessas pessoas de forma muito tranquila, sem julgamento e perseguição, mas com a possibilidade de essas pessoas não se colocarem mais em risco e em violência porque estão comprando uma substância numa boca de fumo, por exemplo."
Wander Wilson pontua que as abordagens nos diversos países que adotam as estratégias podem ser diferentes, pensando no território e nas especificidades de cada lugar, mas estão frequentemente articuladas com outras políticas, estabelecendo uma rede de cuidado.
Por que explicamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos sobre a pandemia, eleições presidenciais e políticas públicas do governo federal que viralizaram nas redes sociais. A ferramenta Comprova Explica é utilizada para a divulgação de informações a partir de conteúdos que viralizam e causam confusão. A redução de danos é uma estratégia de saúde pública que busca controlar consequências adversas ao consumo de psicoativos - lícitos ou ilícitos -- sem, necessariamente, interromper esse uso. A estratégia não deve ser confundida com apologia ao consumo.
Alcance da publicação: Até o dia 12 de agosto, o vídeo da Damares Alves alcançou mais de 10,7 mil visualizações no YouTube.
Outras publicações sobre o tema: O vídeo da ex-ministra repercutiu na imprensa profissional nesta semana (Veja, Correio Braziliense), mas este não é o único tema relacionado a Lula recentemente. O Comprova já demonstrou em outras verificações que o ex-presidente não disse que vai implantar a ditadura no Brasil, nem há registros de declarações de Lula para eliminar o agronegócio da Terra. Há dois anos, o G1 apontou que era fake a alegação de que governos do PT haviam criado "bolsa usuário" para viciados em drogas.