O que estão compartilhando: que, em um estudo de Harvard realizado em 2020, pessoas que comeram apenas carne durante seis meses praticamente abandonaram o tratamento contra diabetes, perderam gordura, ganharam massa muscular e tiveram melhora nas condições de pele.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: não é bem assim. A pesquisa foi feita por meio de formulários encaminhados em grupos de dieta carnívora nas redes sociais. As respostas são autodeclaradas e não passaram por nenhum tipo de averiguação médica. Além disso, parte dos usuários continuaram consumindo outros tipos de alimentos no período. Os próprios autores admitem que se trata de uma amostra possivelmente enviesada e que o estudo não é capaz de comprovar qualquer benefício da dieta, apenas de aferir a percepção daquele público sobre o assunto.
Saiba mais: o vídeo analisado nesta checagem teve mais de 1,4 milhão de visualizações no TikTok desde o dia 2 de julho e circula em outras redes sociais, como o Instagram.
“Se você comesse somente carne durante seis meses, nem uma folha de alface, nem nenhum outro tipo de alimento, o que vai acontecer com o seu corpo?”, alega o autor do vídeo, citando um estudo de Harvard de 2020 com 2.029 pessoas. Ele, então, enumera os supostos ganhos de saúde, como abandono do tratamento entre diabéticos, perda de gordura corporal e melhora nas condições de pele.
Ainda que o perfil não tenha divulgado qual seria exatamente o estudo em questão ou a íntegra do documento, o Estadão Verifica encontrou uma pesquisa que se encaixa na descrição. Ela é intitulada Behavioral Characteristics and Self-Reported Health Status among 2029 Adults Consuming a Carnivore Diet (Características comportamentais e estado de saúde autodeclarados entre 2.029 adultos que consomem uma dieta carnívora, em tradução livre).
Descrição do estudo
O estudo é de autoria de quatro pesquisadores: Belinda S. Lennerz, Jacob T. Mey, Owen H. Henn e David S. Ludwig. Dois deles aparecem filiados à Escola de Saúde de Harvard no Pubmed, e os demais ao Boston Children’s Hospital e ao Pennington Biomedical Research Center. O estudo foi publicado na revista Current Developments in Nutrition, em dezembro de 2021, e indexado em sites como Science Direct.
Os pesquisadores relatam que enviaram um formulário online em comunidades de Facebook, Instagram, Reddit e Twitter que simpatizam com a dieta carnívora — World Carnivore Tribe e Zerocarb, por exemplo. Eles receberam 2.738 respostas válidas entre os dias 30 de março e 24 de junho de 2020, durante a pandemia de covid-19.
O questionário envolvia uma série de perguntas a respeito da frequência de consumo de alimentos, condições de saúde e dados demográficos. Excluindo resultados duplicados, pessoas que alegaram ter menos de 18 anos, menos de seis meses na dieta e respostas incompletas, restaram 2.029 envios.
Maioria diz ter comido outros tipos de alimento
Ainda que o autor do vídeo checado diga que os participantes não comeram “nem uma ervilha” fora da dieta, não é o que a pesquisa mostra. Em um quadro sobre o consumo de alimentos, os autores informam que 67% dos participantes disseram ter aberto exceções. Entre as respostas, 31% disseram ter comido verduras, 11% legumes e 34% frutas. Metade deles declarou beber café diariamente.
Não houve avaliação médica dos participantes
O estudo se baseia em relatos de usuários de redes sociais que dizem seguir a dieta carnívora em diferentes níveis. O artigo aponta claramente que nenhuma pessoa passou por uma avaliação médica antes, durante ou depois de aderirem à moda. Elas simplesmente responderam um formulário dizendo se melhoraram ou pioraram determinadas condições de saúde no período. O único dado de identificação coletado foi o e-mail.
Ou seja, os supostos benefícios alardeados no vídeo do Instagram se baseiam inteiramente em relatos na internet.
Não há como saber, por exemplo, se as pessoas que disseram ter melhorado a diabetes realmente foram diagnosticadas com a doença, porque não foi exigido laudo médico. Segundo o compilado de respostas, 69 de 82 pessoas (84%) disseram ter interrompido a medicação oral e 27 de 42 pessoas (64%) a aplicação de insulina. Além da falta de comprovação dos pacientes, a amostra é pouco expressiva para se tirar qualquer conclusão a respeito.
Na parte de doenças de pele, o estudo reúne as respostas em um campo descrito como “dermatológico”, com 92% de percepção de melhora entre 690 pessoas. O questionário não menciona dados especificamente para acne, estrias, celulite e psoríase. E a ausência de acompanhamento novamente coloca em dúvida qualquer benefício alegado.
Por fim, a respeito do porcentual de gordura corporal, o campo que mais se aproxima no quadro é o de “obesidade/sobrepeso”. Do total de 928 respostas dos adeptos da dieta carnívora nas redes sociais supostamente nessa condição, 52% disseram ter resolvido o problema e 41% que melhoraram os índices. A evolução da massa muscular não foi indagada no formulário.
Os próprios autores alertam sobre os resultados
Na parte das conclusões sobre o estudo, os quatro autores admitem que o estudo apresenta uma série de limitações e que os resultados “devem ser interpretados com cautela”.
“Nosso questionário aferiu a percepção dos indivíduos que seguem uma dieta carnívora e não analisou objetivamente o andamento da dieta, o estado dos nutrientes e os desfechos relacionados com a saúde”, escrevem os autores.
“Esses dados autodeclarados estão sujeitos a apresentarem viés, especialmente no que se refere a informações de antes da dieta”, acrescentam eles, em referência à presença dos usuários em comunidades simpáticas ao assunto e outros fatores que podem afetar a saúde de forma geral.
Outra possibilidade levantada é que pessoas que tiveram reações adversas podem ter abandonado a dieta em menos de seis meses, momento escolhido arbitrariamente como data de corte do estudo.
Escola de Harvard não recomenda a prática
Em 17 de fevereiro deste ano, o médico Robert H. Shmerling, antigo chefe clínico da divisão de reumatologia do Beth Israel Deaconess Medical Center (BIDMC) e membro do corpo docente da Escola de Saúde de Harvard, escreveu um texto no blog da instituição de ensino abordando os achados da pesquisa.
Ele reforça que os relatos de usuários de redes sociais podem servir como ponto de partida para análises mais aprofundadas sobre o comportamento das pessoas, mas não trazem uma contribuição decisiva no que se refere aos impactos da dieta carnívora na saúde.
“O fato de esse estudo ter sido feito por meio de dados autodeclarados em questionário nas redes sociais deve imediatamente nos fazer desconfiar dos resultados”, escreve Shmerling. “Recomendamos que as pessoas não tirem nenhuma conclusão a respeito da eficácia da dieta carnívora até que novas pesquisas sejam conduzidas.”
O texto também direciona para um novo artigo no blog da Escola de Saúde de Harvard, com o título Most People Shouldn’t try the Carnivore Diet (A maioria das pessoas não deveria tentar a dieta carnívora, em tradução livre).
A publicação afirma que estudos anteriores indicaram que esse tipo de dieta somente à base de carnes pode levar a um baixo consumo de fibras e possivelmente ao aumento do colesterol e pressão alta. Outro risco a ser avaliado é o de problemas no fígado por conta do consumo elevado de sódio, ou mesmo de câncer, relacionado a alguns alimentos como embutidos. O texto recomenda uma dieta diversificada, incluindo carboidratos saudáveis como frutas e verduras.
“As evidências mais fortes mostram comer uma dieta rica em alimentos de origem vegetal, como frutas e vegetais, juntamente com uma quantidade moderada de carne vermelha magra e não processada, aves e peixes é bom para a nossa saúde”, afirma a pesquisadora do Instituto de Atividade Física e Nutrição da Universidade de Deakin, Katherine Livingstone, em outra análise para o The Conversation.
Outro lado
O Estadão Verifica entrou em contato com o perfil que divulgou o vídeo no Tiktok, Rodolfo Gebin, por e-mail, nesta quarta-feira, 12 de julho. Ele afirmou que todos os resultados comentados no vídeo “foram publicados no estudo e nos artigos co-escritos pelos pesquisadores” e que, “independentemente da sua análise metodológica do estudo, meu papel é divulgar a publicação e comentá-la da maneira que eu achar interessante fazer, e claro, sem trazer qualquer tipo de fake news, conforme fui acusado”.
“Quanto ao meu vídeo, eu jamais falei para as pessoas comerem somente carne, nenhum vídeo meu tem fins de intervenção nutricional ou de medicação, e sim educativos, democratizando a ciência para quem tem interesse em conhecer o que se é publicado por aí. Sempre advirto aos meus seguidores que o conteúdo do canal é educativo, e que qualquer intervenção dietética precisa passar pelo profissional de saúde”, disse.
Como lidar com esse tipo de postagem: conteúdos enganosos na internet por vezes mencionam supostos estudos científicos para reforçar seu argumento a respeito de um tema. Fique atento, pois os resultados podem ter sido distorcidos ou o artigo pode não ter uma metodologia precisa o suficiente para concluir algo.
Essa tática foi bastante comum na pandemia, de modo a prometer curas milagrosas e estimular o uso de remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19, por exemplo. Desconfie de materiais na internet que prometem resultados fora da realidade. Também é importante procurar orientação médica antes de adotar uma dieta restritiva.