Estudo retratado não prova eficácia da hidroxicloroquina contra covid-19


Pesquisa que atribuiu cerca de 17 mil mortes ao medicamento foi retirada da revista ‘Biomedicine & Pharmacotherapy’; especialistas afirmam que retratação não altera a conclusão sobre a ineficácia do remédio

Por Maria Eduarda Nascimento
Atualização:

O que estão compartilhando: que médicos contrários ao “tratamento precoce” da covid-19 foram erroneamente induzidos a acreditar que a hidroxicloroquina leva pacientes à morte. O autor da postagem cita estudo que foi retirado da revista Biomedicine & Pharmacotherapy depois que as conclusões da pesquisa foram consideradas não confiáveis. O trabalho científico buscou estimar a mortalidade atribuída ao uso de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados durante a primeira onda da pandemia de covid-19.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto, pois a hidroxicloroquina permanece ineficaz para tratar a covid-19 em qualquer fase da doença. O uso é contraindicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). À reportagem, o Ministério da Saúde destacou que é extremamente complexo e de difícil realização conduzir um estudo que possa estabelecer um vínculo causal, ou seja, mostrar evidências suficientes de que um determinado tratamento foi a causa do óbito. Embora faltem evidências de que a hidroxicloroquina esteja associada a um excesso de mortes durante a primeira onda da pandemia, especialistas consultados pelo Verifica ressaltaram que a falsa promessa de eficácia da medicação colocou vidas em risco ao atrasar o acesso a tratamentos comprovadamente eficazes.

O Verifica entrou em contato com o autor da postagem, que afirmou que em nenhum momento seu comentário indicava que a hidroxicloroquina é eficaz ou ineficaz.

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Contraindicada pelo Ministério da Saúde e OMS, hidroxicloroquina não possui eficácia no tratamento contra a covid-19 Foto: LQFEx/Ministério da Defesa

Saiba mais: o estudo retratado é intitulado “Mortes induzidas pelo uso compassivo de hidroxicloroquina durante a primeira onda de covid-19: uma estimativa” (traduzido do inglês para o português) e foi publicado na revista Biomedicine & Pharmacotherapy em janeiro deste ano. Em uma postagem publicada no Instagram, o artigo retirado é usado para sugerir que seriam fabricações as narrativas contra o uso da hidroxicloroquina. Porém, ainda que o trabalho científico tenha sido retirado da revista, a retratação não deve ser interpretada como sinal de eficácia do medicamento.

De acordo com a médica imunologista Fernanda Grassi, que é pesquisadora do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), a discussão em torno da hidroxicloroquina foi resolvida em 2020, quando estudos mostraram a ineficácia do medicamento no tratamento contra a covid. No mesmo ano, a OMS suspendeu em definitivo os testes com a hidroxicloroquina no ensaio clínico global Solidariedade, pois o remédio não apresentou benefícios contra a covid-19. A iniciativa, lançada pela OMS, reuniu voluntários em dezenas de países para avaliar a eficácia de medicamentos no tratamento da doença.

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A hidroxicloroquina é indicada para o tratamento de doenças como artrite reumatoide, lúpus e malária. A contraindicação do medicamento para a covid-19 consiste no fato de ele não ter eficiência antiviral, ou seja, não ter efeito sobre o vírus. “Os estudos [com hidroxicloroquina] feitos no início da pandemia, inclusive com ivermectina, eram realizados in vitro, fora de um organismo vivo, com uma concentração muito elevada, que se fosse transposto para o ser humano seria uma concentração muito tóxica”, explicou a imunologista. “O tratamento nas doses terapêuticas que normalmente usamos em clínica não tem efeito antiviral”.

Conforme explicou a infectologista Eveline Pipolo Mila, professora associada do Departamento de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é consenso na medicina que há maior risco de eventos adversos em pacientes com covid-19 que utilizaram hidroxicloroquina, quando se compara com pacientes que não utilizaram o medicamento. Os cientistas chegaram a essa conclusão após a realização de estudos de ensaio clínico randomizado e meta-análises, os tipos de estudos com maior nível de evidência científica.

“Vários estudos (aqui e aqui) demonstraram maior risco de eventos adversos em pacientes com covid-19 que utilizaram hidroxicloroquina, além de não ter demonstrado maior eficácia clínica, quando comparado ao tratamento de suporte. Ou seja, não há nenhuma indicação do uso de hidroxicloroquina em pacientes com covid-19″, afirmou Eveline.

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Por que o estudo foi retratado?

Conduzido por pesquisadores da França e do Canadá, o estudo retratado em agosto deste ano tinha como objetivo estimar a mortalidade atribuída ao uso compassivo da hidroxicloroquina no contexto da covid-19. Isso foi antes da publicação de ensaios clínicos randomizados controlados confiáveis, isto é, estudos onde pessoas são escolhidas aleatoriamente para receber o tratamento ou um placebo para verificar a eficácia e segurança do tratamento.

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Os pesquisadores fizeram uma meta-análise, um método estatístico que combina resultados de estudos diferentes sobre o mesmo tema para obter uma visão mais precisa e confiável sobre um tratamento ou intervenção médica. Eles então estimaram que o uso de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados com covid-19 durante a primeira onda da pandemia teria levado 16.990 pessoas a óbito. Esse número estaria relacionado a mortes ocorridas nos Estados Unidos, Espanha, Itália, Bélgica, França e Turquia, os seis países que tiveram dados analisados na pesquisa.

Conforme informa a página da revista Biomedicine & Pharmacotherapy, o trabalho científico foi retratado devido a dois problemas; o primeiro, a confiabilidade e escolha dos dados. Segundo o site, “o conjunto de dados belga em particular foi considerado não confiável, com base em estimativas”. A segunda questão é a “suposição de que todos os pacientes que entraram na clínica estavam sendo tratados da mesma forma farmacologicamente estava incorreta”.

Segundo a imunologista e pesquisadora da Fiocruz Bahia, para que uma meta-análise seja confiável, os estudos considerados na análise precisam ser bem conduzidos. Grassi pontuou que conduzir estudos para avaliar mortalidade é algo muito difícil. “Se morreu mais ou não, é muito difícil saber, porque teria que conduzir um estudo longitudinal”, disse. “Seria necessário dar hidroxicloroquina para uma parcela da população e para a outra não, seguindo um determinado tempo para ver quem ia morrer, tudo isso randomizado, duplo-cego. Então não existe, não tem nem interesse, porque rapidamente a gente viu que [a hidroxicloroquina] não funcionava”.

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O estudo duplo-cego, mencionado por Grassi, é um método de pesquisa científica utilizado nas últimas fases de estudo de novas terapias ou medicamentos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), ele é realizado para que os estudos não tenham viés, interferência consciente, ou inconsciente. Isso tanto do pesquisador, quanto do paciente que se voluntariou para participar da pesquisa.

Nos estudos duplo-cego, os voluntários são divididos em dois grupos, um que recebe o novo fármaco e o outro que recebe uma substância sem eficácia terapêutica inócua, chamada de placebo. Neste caso, o pesquisador e o paciente não sabem o que cada um está recebendo.

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Promessa de eficácia da HCQ colocou vidas em risco

De acordo com o infectologista Alexandre Naime, que é coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a hidroxicloroquina não muda o desfecho de pacientes com covid-19, mas a falta de percepção de risco sim. Ao Verifica, Naime contou que embora nenhum estudo tenha quantificado o número de pessoas que chegaram tardiamente à hospitalização por acreditarem que estavam sendo tratadas com hidroxicloroquina, ele observou essa situação em vários pacientes.

“Pessoalmente, atendi vários pacientes que já chegavam para a hospitalização e estavam há dias com falta de ar achando que estavam sendo tratados porque estavam tomando hidroxicloroquina, isso é uma coisa imensurável”, disse o infectologista.

Assim como Naime, a imunologista Fernanda Grassi acredita que a hidroxicloroquina piorou o estado de saúde de pacientes com covid-19 de maneira indireta. “As pessoas tomavam ivermectina, hidroxicloroquina e acreditavam que estavam imunes, que estavam protegidas e não faziam o isolamento. Mas a gente não tem prova disso, e é muito difícil de realizar um estudo com esse desenho”, disse.

À reportagem, o Ministério da Saúde informou que efeitos indiretos, como o retardo no uso de tratamentos recomendados, ou possíveis eventos adversos com o uso da hidroxicloroquina, “é um ponto de grande preocupação sempre que é adotado um tratamento não recomendado”.

Em relação ao estudo retratado, a pasta disse ser importante destacar que o trabalho científico não abordava a eficácia do uso de hidroxicloroquina, e sim eventual associação com a causa de óbitos. “A retratação deste artigo, portanto, não deve ser interpretada como sinal de eficácia do tratamento. São avaliações distintas e devem ser interpretadas com cautela”.

Outro lado

Após a publicação do texto, o farmacêutico Caio Salvino, autor da postagem verificada, afirmou que em nenhum momento seu comentário indicava que a hidroxicloroquina é eficaz ou ineficaz. Embora Salvino não tenha feito uma declaração sobre a eficácia do medicamento, comentários como: “Sabemos que a hidroxicloroquina é super segura. O problema é que, com o uso, não haveria pandemia, nem vacinas” e “Eu não sou picada, tive covid de forma leve e tomei cloroquina e ivermectina”, sugerem que a crítica ao estudo retratado pode ter sido interpretada por alguns leitores como uma possibilidade de eficácia do medicamento.

O que estão compartilhando: que médicos contrários ao “tratamento precoce” da covid-19 foram erroneamente induzidos a acreditar que a hidroxicloroquina leva pacientes à morte. O autor da postagem cita estudo que foi retirado da revista Biomedicine & Pharmacotherapy depois que as conclusões da pesquisa foram consideradas não confiáveis. O trabalho científico buscou estimar a mortalidade atribuída ao uso de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados durante a primeira onda da pandemia de covid-19.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto, pois a hidroxicloroquina permanece ineficaz para tratar a covid-19 em qualquer fase da doença. O uso é contraindicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). À reportagem, o Ministério da Saúde destacou que é extremamente complexo e de difícil realização conduzir um estudo que possa estabelecer um vínculo causal, ou seja, mostrar evidências suficientes de que um determinado tratamento foi a causa do óbito. Embora faltem evidências de que a hidroxicloroquina esteja associada a um excesso de mortes durante a primeira onda da pandemia, especialistas consultados pelo Verifica ressaltaram que a falsa promessa de eficácia da medicação colocou vidas em risco ao atrasar o acesso a tratamentos comprovadamente eficazes.

O Verifica entrou em contato com o autor da postagem, que afirmou que em nenhum momento seu comentário indicava que a hidroxicloroquina é eficaz ou ineficaz.

Contraindicada pelo Ministério da Saúde e OMS, hidroxicloroquina não possui eficácia no tratamento contra a covid-19 Foto: LQFEx/Ministério da Defesa

Saiba mais: o estudo retratado é intitulado “Mortes induzidas pelo uso compassivo de hidroxicloroquina durante a primeira onda de covid-19: uma estimativa” (traduzido do inglês para o português) e foi publicado na revista Biomedicine & Pharmacotherapy em janeiro deste ano. Em uma postagem publicada no Instagram, o artigo retirado é usado para sugerir que seriam fabricações as narrativas contra o uso da hidroxicloroquina. Porém, ainda que o trabalho científico tenha sido retirado da revista, a retratação não deve ser interpretada como sinal de eficácia do medicamento.

De acordo com a médica imunologista Fernanda Grassi, que é pesquisadora do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), a discussão em torno da hidroxicloroquina foi resolvida em 2020, quando estudos mostraram a ineficácia do medicamento no tratamento contra a covid. No mesmo ano, a OMS suspendeu em definitivo os testes com a hidroxicloroquina no ensaio clínico global Solidariedade, pois o remédio não apresentou benefícios contra a covid-19. A iniciativa, lançada pela OMS, reuniu voluntários em dezenas de países para avaliar a eficácia de medicamentos no tratamento da doença.

A hidroxicloroquina é indicada para o tratamento de doenças como artrite reumatoide, lúpus e malária. A contraindicação do medicamento para a covid-19 consiste no fato de ele não ter eficiência antiviral, ou seja, não ter efeito sobre o vírus. “Os estudos [com hidroxicloroquina] feitos no início da pandemia, inclusive com ivermectina, eram realizados in vitro, fora de um organismo vivo, com uma concentração muito elevada, que se fosse transposto para o ser humano seria uma concentração muito tóxica”, explicou a imunologista. “O tratamento nas doses terapêuticas que normalmente usamos em clínica não tem efeito antiviral”.

Conforme explicou a infectologista Eveline Pipolo Mila, professora associada do Departamento de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é consenso na medicina que há maior risco de eventos adversos em pacientes com covid-19 que utilizaram hidroxicloroquina, quando se compara com pacientes que não utilizaram o medicamento. Os cientistas chegaram a essa conclusão após a realização de estudos de ensaio clínico randomizado e meta-análises, os tipos de estudos com maior nível de evidência científica.

“Vários estudos (aqui e aqui) demonstraram maior risco de eventos adversos em pacientes com covid-19 que utilizaram hidroxicloroquina, além de não ter demonstrado maior eficácia clínica, quando comparado ao tratamento de suporte. Ou seja, não há nenhuma indicação do uso de hidroxicloroquina em pacientes com covid-19″, afirmou Eveline.

Por que o estudo foi retratado?

Conduzido por pesquisadores da França e do Canadá, o estudo retratado em agosto deste ano tinha como objetivo estimar a mortalidade atribuída ao uso compassivo da hidroxicloroquina no contexto da covid-19. Isso foi antes da publicação de ensaios clínicos randomizados controlados confiáveis, isto é, estudos onde pessoas são escolhidas aleatoriamente para receber o tratamento ou um placebo para verificar a eficácia e segurança do tratamento.

Os pesquisadores fizeram uma meta-análise, um método estatístico que combina resultados de estudos diferentes sobre o mesmo tema para obter uma visão mais precisa e confiável sobre um tratamento ou intervenção médica. Eles então estimaram que o uso de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados com covid-19 durante a primeira onda da pandemia teria levado 16.990 pessoas a óbito. Esse número estaria relacionado a mortes ocorridas nos Estados Unidos, Espanha, Itália, Bélgica, França e Turquia, os seis países que tiveram dados analisados na pesquisa.

Conforme informa a página da revista Biomedicine & Pharmacotherapy, o trabalho científico foi retratado devido a dois problemas; o primeiro, a confiabilidade e escolha dos dados. Segundo o site, “o conjunto de dados belga em particular foi considerado não confiável, com base em estimativas”. A segunda questão é a “suposição de que todos os pacientes que entraram na clínica estavam sendo tratados da mesma forma farmacologicamente estava incorreta”.

Segundo a imunologista e pesquisadora da Fiocruz Bahia, para que uma meta-análise seja confiável, os estudos considerados na análise precisam ser bem conduzidos. Grassi pontuou que conduzir estudos para avaliar mortalidade é algo muito difícil. “Se morreu mais ou não, é muito difícil saber, porque teria que conduzir um estudo longitudinal”, disse. “Seria necessário dar hidroxicloroquina para uma parcela da população e para a outra não, seguindo um determinado tempo para ver quem ia morrer, tudo isso randomizado, duplo-cego. Então não existe, não tem nem interesse, porque rapidamente a gente viu que [a hidroxicloroquina] não funcionava”.

O estudo duplo-cego, mencionado por Grassi, é um método de pesquisa científica utilizado nas últimas fases de estudo de novas terapias ou medicamentos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), ele é realizado para que os estudos não tenham viés, interferência consciente, ou inconsciente. Isso tanto do pesquisador, quanto do paciente que se voluntariou para participar da pesquisa.

Nos estudos duplo-cego, os voluntários são divididos em dois grupos, um que recebe o novo fármaco e o outro que recebe uma substância sem eficácia terapêutica inócua, chamada de placebo. Neste caso, o pesquisador e o paciente não sabem o que cada um está recebendo.

Promessa de eficácia da HCQ colocou vidas em risco

De acordo com o infectologista Alexandre Naime, que é coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a hidroxicloroquina não muda o desfecho de pacientes com covid-19, mas a falta de percepção de risco sim. Ao Verifica, Naime contou que embora nenhum estudo tenha quantificado o número de pessoas que chegaram tardiamente à hospitalização por acreditarem que estavam sendo tratadas com hidroxicloroquina, ele observou essa situação em vários pacientes.

“Pessoalmente, atendi vários pacientes que já chegavam para a hospitalização e estavam há dias com falta de ar achando que estavam sendo tratados porque estavam tomando hidroxicloroquina, isso é uma coisa imensurável”, disse o infectologista.

Assim como Naime, a imunologista Fernanda Grassi acredita que a hidroxicloroquina piorou o estado de saúde de pacientes com covid-19 de maneira indireta. “As pessoas tomavam ivermectina, hidroxicloroquina e acreditavam que estavam imunes, que estavam protegidas e não faziam o isolamento. Mas a gente não tem prova disso, e é muito difícil de realizar um estudo com esse desenho”, disse.

À reportagem, o Ministério da Saúde informou que efeitos indiretos, como o retardo no uso de tratamentos recomendados, ou possíveis eventos adversos com o uso da hidroxicloroquina, “é um ponto de grande preocupação sempre que é adotado um tratamento não recomendado”.

Em relação ao estudo retratado, a pasta disse ser importante destacar que o trabalho científico não abordava a eficácia do uso de hidroxicloroquina, e sim eventual associação com a causa de óbitos. “A retratação deste artigo, portanto, não deve ser interpretada como sinal de eficácia do tratamento. São avaliações distintas e devem ser interpretadas com cautela”.

Outro lado

Após a publicação do texto, o farmacêutico Caio Salvino, autor da postagem verificada, afirmou que em nenhum momento seu comentário indicava que a hidroxicloroquina é eficaz ou ineficaz. Embora Salvino não tenha feito uma declaração sobre a eficácia do medicamento, comentários como: “Sabemos que a hidroxicloroquina é super segura. O problema é que, com o uso, não haveria pandemia, nem vacinas” e “Eu não sou picada, tive covid de forma leve e tomei cloroquina e ivermectina”, sugerem que a crítica ao estudo retratado pode ter sido interpretada por alguns leitores como uma possibilidade de eficácia do medicamento.

O que estão compartilhando: que médicos contrários ao “tratamento precoce” da covid-19 foram erroneamente induzidos a acreditar que a hidroxicloroquina leva pacientes à morte. O autor da postagem cita estudo que foi retirado da revista Biomedicine & Pharmacotherapy depois que as conclusões da pesquisa foram consideradas não confiáveis. O trabalho científico buscou estimar a mortalidade atribuída ao uso de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados durante a primeira onda da pandemia de covid-19.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto, pois a hidroxicloroquina permanece ineficaz para tratar a covid-19 em qualquer fase da doença. O uso é contraindicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). À reportagem, o Ministério da Saúde destacou que é extremamente complexo e de difícil realização conduzir um estudo que possa estabelecer um vínculo causal, ou seja, mostrar evidências suficientes de que um determinado tratamento foi a causa do óbito. Embora faltem evidências de que a hidroxicloroquina esteja associada a um excesso de mortes durante a primeira onda da pandemia, especialistas consultados pelo Verifica ressaltaram que a falsa promessa de eficácia da medicação colocou vidas em risco ao atrasar o acesso a tratamentos comprovadamente eficazes.

O Verifica entrou em contato com o autor da postagem, que afirmou que em nenhum momento seu comentário indicava que a hidroxicloroquina é eficaz ou ineficaz.

Contraindicada pelo Ministério da Saúde e OMS, hidroxicloroquina não possui eficácia no tratamento contra a covid-19 Foto: LQFEx/Ministério da Defesa

Saiba mais: o estudo retratado é intitulado “Mortes induzidas pelo uso compassivo de hidroxicloroquina durante a primeira onda de covid-19: uma estimativa” (traduzido do inglês para o português) e foi publicado na revista Biomedicine & Pharmacotherapy em janeiro deste ano. Em uma postagem publicada no Instagram, o artigo retirado é usado para sugerir que seriam fabricações as narrativas contra o uso da hidroxicloroquina. Porém, ainda que o trabalho científico tenha sido retirado da revista, a retratação não deve ser interpretada como sinal de eficácia do medicamento.

De acordo com a médica imunologista Fernanda Grassi, que é pesquisadora do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), a discussão em torno da hidroxicloroquina foi resolvida em 2020, quando estudos mostraram a ineficácia do medicamento no tratamento contra a covid. No mesmo ano, a OMS suspendeu em definitivo os testes com a hidroxicloroquina no ensaio clínico global Solidariedade, pois o remédio não apresentou benefícios contra a covid-19. A iniciativa, lançada pela OMS, reuniu voluntários em dezenas de países para avaliar a eficácia de medicamentos no tratamento da doença.

A hidroxicloroquina é indicada para o tratamento de doenças como artrite reumatoide, lúpus e malária. A contraindicação do medicamento para a covid-19 consiste no fato de ele não ter eficiência antiviral, ou seja, não ter efeito sobre o vírus. “Os estudos [com hidroxicloroquina] feitos no início da pandemia, inclusive com ivermectina, eram realizados in vitro, fora de um organismo vivo, com uma concentração muito elevada, que se fosse transposto para o ser humano seria uma concentração muito tóxica”, explicou a imunologista. “O tratamento nas doses terapêuticas que normalmente usamos em clínica não tem efeito antiviral”.

Conforme explicou a infectologista Eveline Pipolo Mila, professora associada do Departamento de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é consenso na medicina que há maior risco de eventos adversos em pacientes com covid-19 que utilizaram hidroxicloroquina, quando se compara com pacientes que não utilizaram o medicamento. Os cientistas chegaram a essa conclusão após a realização de estudos de ensaio clínico randomizado e meta-análises, os tipos de estudos com maior nível de evidência científica.

“Vários estudos (aqui e aqui) demonstraram maior risco de eventos adversos em pacientes com covid-19 que utilizaram hidroxicloroquina, além de não ter demonstrado maior eficácia clínica, quando comparado ao tratamento de suporte. Ou seja, não há nenhuma indicação do uso de hidroxicloroquina em pacientes com covid-19″, afirmou Eveline.

Por que o estudo foi retratado?

Conduzido por pesquisadores da França e do Canadá, o estudo retratado em agosto deste ano tinha como objetivo estimar a mortalidade atribuída ao uso compassivo da hidroxicloroquina no contexto da covid-19. Isso foi antes da publicação de ensaios clínicos randomizados controlados confiáveis, isto é, estudos onde pessoas são escolhidas aleatoriamente para receber o tratamento ou um placebo para verificar a eficácia e segurança do tratamento.

Os pesquisadores fizeram uma meta-análise, um método estatístico que combina resultados de estudos diferentes sobre o mesmo tema para obter uma visão mais precisa e confiável sobre um tratamento ou intervenção médica. Eles então estimaram que o uso de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados com covid-19 durante a primeira onda da pandemia teria levado 16.990 pessoas a óbito. Esse número estaria relacionado a mortes ocorridas nos Estados Unidos, Espanha, Itália, Bélgica, França e Turquia, os seis países que tiveram dados analisados na pesquisa.

Conforme informa a página da revista Biomedicine & Pharmacotherapy, o trabalho científico foi retratado devido a dois problemas; o primeiro, a confiabilidade e escolha dos dados. Segundo o site, “o conjunto de dados belga em particular foi considerado não confiável, com base em estimativas”. A segunda questão é a “suposição de que todos os pacientes que entraram na clínica estavam sendo tratados da mesma forma farmacologicamente estava incorreta”.

Segundo a imunologista e pesquisadora da Fiocruz Bahia, para que uma meta-análise seja confiável, os estudos considerados na análise precisam ser bem conduzidos. Grassi pontuou que conduzir estudos para avaliar mortalidade é algo muito difícil. “Se morreu mais ou não, é muito difícil saber, porque teria que conduzir um estudo longitudinal”, disse. “Seria necessário dar hidroxicloroquina para uma parcela da população e para a outra não, seguindo um determinado tempo para ver quem ia morrer, tudo isso randomizado, duplo-cego. Então não existe, não tem nem interesse, porque rapidamente a gente viu que [a hidroxicloroquina] não funcionava”.

O estudo duplo-cego, mencionado por Grassi, é um método de pesquisa científica utilizado nas últimas fases de estudo de novas terapias ou medicamentos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), ele é realizado para que os estudos não tenham viés, interferência consciente, ou inconsciente. Isso tanto do pesquisador, quanto do paciente que se voluntariou para participar da pesquisa.

Nos estudos duplo-cego, os voluntários são divididos em dois grupos, um que recebe o novo fármaco e o outro que recebe uma substância sem eficácia terapêutica inócua, chamada de placebo. Neste caso, o pesquisador e o paciente não sabem o que cada um está recebendo.

Promessa de eficácia da HCQ colocou vidas em risco

De acordo com o infectologista Alexandre Naime, que é coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a hidroxicloroquina não muda o desfecho de pacientes com covid-19, mas a falta de percepção de risco sim. Ao Verifica, Naime contou que embora nenhum estudo tenha quantificado o número de pessoas que chegaram tardiamente à hospitalização por acreditarem que estavam sendo tratadas com hidroxicloroquina, ele observou essa situação em vários pacientes.

“Pessoalmente, atendi vários pacientes que já chegavam para a hospitalização e estavam há dias com falta de ar achando que estavam sendo tratados porque estavam tomando hidroxicloroquina, isso é uma coisa imensurável”, disse o infectologista.

Assim como Naime, a imunologista Fernanda Grassi acredita que a hidroxicloroquina piorou o estado de saúde de pacientes com covid-19 de maneira indireta. “As pessoas tomavam ivermectina, hidroxicloroquina e acreditavam que estavam imunes, que estavam protegidas e não faziam o isolamento. Mas a gente não tem prova disso, e é muito difícil de realizar um estudo com esse desenho”, disse.

À reportagem, o Ministério da Saúde informou que efeitos indiretos, como o retardo no uso de tratamentos recomendados, ou possíveis eventos adversos com o uso da hidroxicloroquina, “é um ponto de grande preocupação sempre que é adotado um tratamento não recomendado”.

Em relação ao estudo retratado, a pasta disse ser importante destacar que o trabalho científico não abordava a eficácia do uso de hidroxicloroquina, e sim eventual associação com a causa de óbitos. “A retratação deste artigo, portanto, não deve ser interpretada como sinal de eficácia do tratamento. São avaliações distintas e devem ser interpretadas com cautela”.

Outro lado

Após a publicação do texto, o farmacêutico Caio Salvino, autor da postagem verificada, afirmou que em nenhum momento seu comentário indicava que a hidroxicloroquina é eficaz ou ineficaz. Embora Salvino não tenha feito uma declaração sobre a eficácia do medicamento, comentários como: “Sabemos que a hidroxicloroquina é super segura. O problema é que, com o uso, não haveria pandemia, nem vacinas” e “Eu não sou picada, tive covid de forma leve e tomei cloroquina e ivermectina”, sugerem que a crítica ao estudo retratado pode ter sido interpretada por alguns leitores como uma possibilidade de eficácia do medicamento.

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