Em meio à maior crise climática que já atingiu o Rio Grande do Sul, se multiplicam nas redes sociais postagens que acusam o Exército de não ajudar civis nos municípios afetados e até mesmo de rejeitar pedidos de socorro. Os exemplos incluem vídeos descontextualizados, que mostram soldados olhando seus celulares ou comendo lanches. Esses posts não levam em conta que reportagens publicadas pela imprensa e imagens divulgadas pelas próprias equipes de resgate mostram que militares estão atuando em salvamentos desde o início da crise.
Nos comentários das postagens, os agentes do Exército são chamados de “melancias”, ou seja, verdes por fora e vermelhos por dentro. É um termo pejorativo que ganhou impulso entre bolsonaristas quando militares não ajudaram a impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A operação do Exército em solo gaúcho, batizada de Taquari 2, tem participação de 14 mil militares e o apoio de botes, helicópteros, blindados e viaturas. Ao Verifica, o comando da operação afirmou que as ações dos soldados incluem resgates de famílias e animais, distribuição de alimentos e donativos e limpeza e desobstrução de vias. O Estadão destacou alguns desses serviços em reportagens, como a que mostrou o resgate de um bebê de um telhado na cidade de Lajeado e a remoção do cavalo Caramelo de um telhado em Canoas. Os militares participam do resgate de vítimas no RS desde o dia 30 de abril.
Nas redes sociais, o Exército divulga cenas da tropa salvando civis e animais. O site da corporação atualiza diariamente os números de balanço da operação Taquari 2.
Para o comandante do Exército, Tomás Paiva, a disseminação de notícias falsas durante o trabalho no RS é um desafio. Em entrevista à colunista do Estadão Monica Gugliano, Paiva disse que os boatos colocam em xeque o trabalho realizado por militares, criando descrença e confusão. “A desinformação é o que mais tem prejudicado nosso trabalho”, disse. “Ela impede a sinergia que é fundamental para as ações que são imprescindíveis neste momento nos órgãos governamentais.”
O editor-chefe do Projeto Comprova, Sérgio Lüdtke, trabalha em parceria com diversos veículos de comunicação, entre eles o Estadão, para produzir checagens de conteúdos suspeitos que circulam sobre a crise climática. “Um dos aspectos dessa onda de desinformação que envolve a tragédia no Sul é o seu caráter insurgente, de questionamento não só do papel do Estado e de outras instituições, como a imprensa, mas também da própria existência dessas instituições, como se uma sociedade complexa como a nossa e a democracia pudessem existir sem esses organismos estruturantes”, afirmou, em entrevista ao Estadão Verifica.
Postagens virais questionam atuação do Exército no Sul
Um exemplo do tipo de conteúdo que circula nas redes é um vídeo que mostra caminhões parados sobre uma área alagada. O caso ocorreu em Porto Alegre, na avenida Ernesto Neugebauer. O áudio do vídeo afirma que quatro caminhões do Exército estariam voltando do local, por não ter “coragem de entrar na água”. Diz ainda que os militares deixaram o local sem levar ninguém para “as áreas de escape”. As republicações desse conteúdo acusam o Exército de se recusar a transportar os afetados pelos alagamentos, enquanto jipeiros e voluntários sem aparatos estariam realizando salvamentos.
Sobre esse caso, o Exército comunicou ao Verifica que “no momento em que os caminhões aparecem no vídeo estava sendo realizado um reconhecimento para manobrá-los, visando buscar um grupo de militares que já se encontrava resgatando famílias dentro de casas alagadas”. A corporação afirma que, após o resgate, as famílias foram embarcadas nos veículos oficiais, mas que isso foi omitido nos vídeos. O Verifica não conseguiu contato com a pessoa que gravou o vídeo.
Outra postagem viral mostra um homem discutindo com um militar que dirige um caminhão. Enquanto isso, pessoas ajudam uma idosa a sair de uma área alagada. A legenda afirma que o Exército “se negou a ajudar, ignorando o pedido, mesmo com o caminhão parado às margens da BR-290 em Eldorado do Sul”. Ao final da sequência de imagens, o caminhão militar deixa o local. Sobre esse vídeo, o Exército comunicou que as viaturas do órgão estão sendo utilizadas em diversas missões de resgates e transportes. “No vídeo em questão, não fica claro o diálogo travado entre o militar e o popular. Observa-se apenas que a senhora já havia sido resgatada por populares, aparentemente em segurança.” O Verifica também não conseguiu contato com a pessoa que gravou o vídeo.
Por que oficiais do Exército estão sendo chamados de ‘melancias’?
Nas postagens que afirmam que os gaúchos estariam prestando resgate e sobrevivendo sozinhos, é comum encontrar comentários chamando militares de “melancias”. Para a professora Yasmin Curzi, da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV), esse apelido tem sido usado em uma estratégia de desinformação e polarização ideológica.
Chamar oficiais de “melancias” sugere uma associação ao comunismo ou à esquerda política, pois eles seriam vermelhos por dentro. Na explicação da professora, a insinuação é que os soldados são traidores ou infiltrados com agendas políticas contrárias aos interesses do Exército ou da direita política. “Esse tipo de rótulo reforça a divisão entre ‘nós’ e ‘eles’, questionando a lealdade dos oficiais e alimentando a narrativa de que há elementos dentro das instituições que não são confiáveis”, explicou a professora da FGV. “Isso se torna ainda mais relevante em momentos de descontentamento com o militarismo, especialmente após a recusa de alguns setores militares em apoiar tentativas de golpe ou ações extremistas”, completou.
O uso do termo “melancia” se tornou comum após as eleições presidenciais de 2022, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) acamparam em frente a quartéis pedindo uma intervenção militar. Quem usava uniforme e mostrava não apoiar a ideia antidemocrática de golpe era classificado como “melancia”.
Sérgio Lüdtke opina que há provavelmente um clima de revanche entre as pessoas que esperavam o apoio do Exército nos atos golpistas, mas também há um componente de ataque às instituições. “Talvez estejamos vendo uma tentativa de reedição de 2013 ou o preparo de candidaturas que assumam um discurso antissistêmico.”
Por que fakes viralizam tanto durante tragédias?
Na explicação de Yasmin Curzi, há uma infraestrutura da desinformação que se aproveita da vulnerabilidade emocional e da incerteza das pessoas durante tragédias para promover interesses políticos de grupos específicos e aplicar golpes e fraudes. “Em desastres socioambientais, informações falsas sobre a intensidade dos eventos, as medidas de segurança ou as causas podem gerar pânico ou confiança imprudente, complicando as respostas de emergência e favorecendo atores mal intencionados”, observou. “Essa desinformação dificulta a conscientização pública e a ação coletiva necessária para enfrentar uma das maiores ameaças à sustentabilidade planetária, como estamos vendo no RS.”
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Provocar emoções fortes é outro fator relevante para a viralização desse tipo de conteúdo. “Publicações que criticam o governo e enaltecem figuras vistas como ‘heróis’ individuais tocam em emoções profundas, como a raiva, a indignação, entre outros”, explicou Curzi. “Isso incentiva o compartilhamento impulsivo e, consequentemente, a maior recomendação deste tipo de conteúdo pelas próprias plataformas, já que os algoritmos priorizam conteúdos que recebem mais curtidas, comentários e compartilhamentos, independentemente da veracidade, aumentando a visibilidade dessas publicações.”
Lüdtke aponta que é muito difícil chamar pessoas à razão quando a condição é de comoção em meio a uma tragédia. Em casos assim, o jornalista explica que a emoção se impõe e abre as portas para a desinformação. “Além disso, a condição precária dos municípios faz com que muita coisa pareça verossímil”, acrescentou.
Mesmo em momentos de crise, há caminhos para não acreditar em desinformação tão facilmente. Lüdtke propõe: “E se você ligasse o ceticismo e perguntasse, onde estão as imagens? Não havia ninguém com um celular na mão que pudesse registrar isso? Essas pessoas que estão divulgando essa história estavam mesmo naquele lugar e naquela hora? Você os conhece? Confia neles? Algum veículo de comunicação está confirmando a história? São perguntas que um cético saudável faria antes de acreditar ou compartilhar o relato”.