Uma frase dita pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e reproduzida em charge da revista Veja circula fora de contexto nas redes, para sugerir que o petista teria defendido a volta ao trabalho durante a pandemia de H1N1, mesmo no caso de pessoas contaminadas. O Estadão Verifica confirmou que a página de Veja é verdadeira, mas não existe qualquer relação com a gripe suína. O vírus sequer havia chegado ao Brasil na data da publicação, em 2009. Na realidade, Lula falava sobre a crise econômica causada pela bolha imobiliária nos Estados Unidos.
"Uma gripe, num cabra mofino, ele fica de cama; num cabra macho, ele vai trabalhar e não perde uma hora de serviço" é a frase de Lula destacada pela revista na edição 2106, de 1º de abril de 2009, disponível para assinantes no acervo digital de Veja. A charge foi publicada na seção "Veja essa" (pág. 52), que apresenta frases marcantes da semana, com a legenda: "O presidente Lula, mostrando que crise e vírus se combatem com macheza".
A origem desse comentário é uma entrevista do ex-presidente para a Rádio Jornal, de Pernambuco, em 23 de março de 2009. A transcrição completa está disponível no acervo digital da biblioteca da Presidência da República (acesse aqui o documento). Lula, na verdade, estava comentando sobre os efeitos da crise financeira mundial, causada por uma bolha no setor imobiliário dos Estados Unidos, depois de afirmar que faria investimentos nas obras de transposição do Rio São Francisco porque o País "não tem que ter medo de crise, não tem que se assustar com crise".
"Isso é como uma gripe", compara Lula. "Uma gripe, num cabra mofino, ele fica de cama. Num cabra macho, ele vai trabalhar e não perde uma hora de serviço. É assim que eu quero fazer neste País: mostrar que existe uma crise, que ela é muito grave, que o Obama (Barack Obama, presidente dos Estados Unidos) tem mais problemas do que eu, que os alemães têm mais problemas do que o Brasil, e que nós vamos enfrentar essa crise trabalhando. Quanto mais crise, mais trabalho, quanto mais crise, mais investimentos, porque é assim que nós vamos debelar essa crise causada pela irresponsabilidade do sistema financeiro internacional."
Na época, os principais jornais brasileiros repercutiram esse mesmo trecho, como Estadão, Folha de S. Paulo e O Globo. Nenhuma dessas publicações faz referência ao surto de H1N1, assim como a charge de Veja. Esse novo sentido foi atribuído equivocadamente em uma frase por cima da foto que viraliza agora nas redes.
H1N1 chegou ao Brasil apenas em maio de 2009
A gripe H1N1 -- também chamada de "gripe suína" ou gripe A -- é causada por uma cepa do vírus influenza do tipo A, que foi descoberta em 18 de março de 2009, em um vilarejo do México. Ela é resultado da combinação de segmentos genéticos do vírus humano da gripe, do vírus da gripe aviária e do vírus da gripe suína, que infectaram porcos simultaneamente e depois foram transmitidos a humanos. Os sintomas são semelhantes aos da gripe comum, mas requerem cuidados em caso de febre alta e outros sintomas.
No Brasil, os primeiros quatro casos da doença foram confirmados pelo Ministério da Saúde em 7 de maio -- 41 dias depois da entrevista de Lula para a rádio pernambucana. A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou emergência global de saúde em abril daquele ano, a primeira do século 21, e depois classificou a crise como pandemia em junho. O Brasil teve 54.171 casos confirmados e 2.196 mortes durante a pandemia, que terminou em agosto de 2010, segundo dados oficiais coletados na plataforma Datasus.
O que era a crise mencionada por Lula na entrevista
A crise financeira mencionada pelo ex-presidente Lula teve início em 15 de setembro de 2008, com a falência do banco de investimentos americano Lehman Brothers. A quebra de uma empresa considerada sólida pelo mercado chocou Wall Street e escancarou um problema de inadimplência de empréstimos de alto risco ligados ao mercado imobiliário, as chamadas hipotecas, e que se alastrava da mesma maneira em diversas outras instituições financeiras. A origem do problema estava em títulos avaliados como seguros, mas que estavam repletos de operações de crédito feitas com pessoas de renda não condizente e sem garantias suficientes.
A falta de pagamento gerou rombos bilionários nos bancos, derrubando bolsas de valores em todo o mundo em um efeito dominó e desestabilizando o sistema financeiro. Governos precisaram então tomar medidas para conter uma catástrofe econômica, injetando dinheiro nas companhias, assumindo dívidas e emitindo moeda, por exemplo. Além do desemprego e das perdas econômicas diretas, a crise trouxe como efeitos colaterais a elevação do endividamento público, a desvalorização de moedas e o desequilíbrio no comércio internacional.
Pandemia de covid-19 bate números do H1N1 em praticamente um dia
O Brasil atravessa uma pandemia mais grave hoje do que em 2009. A covid-19 é causada pelo SARS-CoV-2, pertencente a uma família de vírus diferente do influenza, os coronavírus. O primeiro caso no Brasil foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020 e, desde então, houve 278.327 mortes entre 11.483.031 pessoas infectadas pela doença até este domingo, 14.
O número de óbitos no primeiro ano do surto de H1N1 foi superado em apenas dois meses pela covid-19 e, atualmente, os valores são batidos em praticamente um dia. A média móvel, calculada com base nos dados dos últimos sete dias, estava em 1.832 mortes por dia neste domingo. Os dados são do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL em parceria com 27 secretarias estaduais de Saúde.
Uma das explicações para a diferença de impacto das crises sanitárias está nas características dos vírus. Evidências apontam que o novo coronavírus é mais transmissível e apresenta índice de letalidade mais alto do que o influenza pandêmico. Além disso, o surto de 2009 pôde ser rapidamente controlado com a utilização de dois antivirais indicados para a gripe comum e com vacinas que começaram a ser aplicadas em apenas seis meses (os cientistas conseguiram adaptar produtos usados contra outros vírus influenza para garantir a imunidade naquele novo contexto).
Guerra de narrativas políticas impulsiona boato
A peça de desinformação analisada pelo Estadão Verifica descontextualiza a frase de Lula para investir na narrativa de que o ex-presidente entra em contradição quando critica a postura adotada hoje pelo presidente Jair Bolsonaro. Os dois são possíveis adversário político nas eleições presidenciais de 2022, depois que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin decidiu anular as condenações do petista na Lava Jato, tornando-o apto para a disputa. Lula criticou a atuação de Bolsonaro na pandemia em discurso a apoiadores na semana passada.
Bolsonaro minimizou a gravidade da pandemia em diversas ocasiões, como quando chamou a doença de "gripezinha" e a crise de saúde de "fantasia" e "histeria". O presidente também é abertamente contrário ao isolamento social e ao fechamento temporário de serviços não essenciais, medidas defendidas por especialistas para conter a disseminação do vírus, e insiste em um suposto "tratamento precoce", que não encontra respaldo nos principais órgãos mundiais de saúde.
Além da postagem enganosa desmentida nesta checagem, uma outra declaração de Lula costuma ser usada nas redes para criticar o governo na época do surto de H1N1. Trata-se de uma entrevista do ex-presidente a um programa de rádio em que duvida do alcance da doença, cinco dias após a chegada do vírus no Brasil, em 12 de maio de 2009: "Essa gripe (H1N1) não é do tamanho que parecia que ia ser, porque se vendeu uma gripe que já tinha tomado conta do mundo inteiro". A fala foi rebatida por um porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS), Gregory Hartl, que considerava ser cedo para dizer se a doença não se espalharia de forma mais intensa. O Brasil tinha oito casos confirmados e 22 suspeitos naquele momento.
A reportagem buscou esclarecimentos com a assessoria do ex-presidente, mas não teve retorno. O espaço continua aberto para manifestação.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.