O que estão compartilhando: que uma lei recém-assinada pelo governador do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, autoriza as escolas a fazer transição hormonal de gênero em crianças sem informar aos seus pais.
O Estadão Verifica checou e concluiu que: é falso. A Lei nº 1955 da assembleia estadual da Califórnia, assinada pelo governador Gavin Newsom no último dia 15 de julho, autoriza apenas as escolas a mudar o tratamento ou “pronome de gênero” (ele ou ela, dele ou dela) pelo qual o estudante é identificado, caso o próprio aluno faça essa solicitação. A lei prevê que as escolas só podem informar essa solicitação do estudante a terceiros — incluindo seus pais ou outros responsáveis — mediante autorização do estudante. A lei não autoriza as escolas a fazer nenhum tipo de tratamento hormonal ou qualquer outro procedimento médico para transição de gênero.
A alegação falsa foi compartilhada em vídeo do deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO). O Estadão Verifica entrou em contato com ele, mas não teve resposta.
Saiba mais: A nova lei californiana inclui a previsão de que o Departamento Estadual de Educação da Califórnia (órgão equivalente às secretarias estaduais de educação brasileiras) “desenvolva ou atualize” recursos e estratégias “para apoiar os pais, guardiões legais e famílias de estudantes LGBTQ”. Mas o dispositivo da nova lei que vem causando mais discussão é a regra que requer a autorização dos estudantes para que informações sobre a sua orientação de gênero sejam partilhadas com terceiros, incluindo pais e responsáveis.
De acordo com a imprensa americana, essa inovação legal foi uma resposta ao fato de que várias escolas e distritos da Califórnia vinham aplicando a regra de notificação obrigatória aos pais, independentemente de autorização dos estudantes.
Apoiadores da lei e especialistas ouvidos pela imprensa dos EUA esclarecem que a norma de não compartilhamento de informações sem autorização dos estudantes se baseia numa aplicação do princípio do direito individual à privacidade. É também citada como justificativa para a nova regra o fato de que crianças e adolescentes podem sofrer punições e violência em seu ambiente familiar ou doméstico se optarem por mudar seus pronomes de tratamento.
Do outro lado da controvérsia, os críticos da nova lei rebatem essas justificativas, afirmando, por exemplo, que a notificação obrigatória de solicitação de mudança de “tratamento de gênero” deve ser mantida por fazer parte do direito dos pais de serem informados sobre a vida escolar dos filhos e da relação de confiança entre as escolas e as famílias dos estudantes.
A controvérsia entre o que prevalece nesses casos — se o direito à privacidade dos estudantes ou o direito dos pais de saber tudo que se passa na vida escolar dos filhos — foi levada aos tribunais por um distrito educacional do sul da Califórnia, que entrou com uma ação judicial contra o governador Newsom por ele ter aprovado a nova lei.
No Brasil, não há uma lei sobre o tema, mas legislação afirma os direitos à privacidade e à proteção de crianças e adolescentes
Consultado pelo Estadão Verifica, o advogado e promotor de Justiça Luiz Antonio Miguel Ferreira esclarece que não há no Brasil uma lei que defina se, nesses casos, as escolas são obrigadas a notificar os pais ou se só podem informá-los com autorização do estudante. Conselheiro da Fundação Abrinq e associado ao Todos pela Educação, Ferreira avalia que a lei da Califórnia pode ser considerada compatível com os direitos constitucionais à intimidade e privacidade, expressos no artigo 5º da Constituição Federal brasileira.
A proteção genérica da privacidade de qualquer pessoa — incluindo crianças e adolescentes —, segundo o advogado, é reforçada, no caso em questão, por dispositivos específicos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ele destaca trechos dos artigos 5º e 18 do estatuto, que dizem que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” e “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
Em relação ao direito ao tratamento conforme a identidade de gênero definida pelo próprio indivíduo, Ferreira cita como exemplo de norma em vigor no Brasil uma resolução administrativa de 2014, do Estado de São Paulo, que proíbe “atos atentatórios ou discriminatórios contra transexuais ou travestis” nas escolas públicas. A mesma resolução assegura o direito “à escolha de nome social, nos atos e procedimentos realizados no âmbito das escolas, que deverá ser usual na forma de tratamento e respeitado por toda a comunidade escolar”.