Conteúdo investigado: Em áudio atribuído ao “médico do Lucas Leiva”, homem alega que a aposentadoria do jogador do Grêmio aconteceu por um problema cardíaco causado pela vacina contra a covid-19. Posts nas redes sociais também relacionam o problema ao imunizante.
Onde foi publicado: WhatsApp, TikTok, Instagram e Twitter.
Conclusão do Comprova: É falso que o médico de Lucas Leiva, ex-jogador de futebol do Grêmio que se aposentou devido a um problema cardíaco, tenha gravado um áudio atribuindo a condição do atleta às vacinas contra a covid-19. Posts nas redes sociais também fazem essa falsa relação, utilizando foto que o atleta postou em junho de 2021, quando tomou a primeira dose. Tanto o ex-jogador quanto o médico do clube, Márcio Dornelles, desmentiram a informação em suas redes sociais.
Atleta de 36 anos, Lucas anunciou a aposentadoria do futebol em 17 de março devido a uma fibrose cicatricial do miocárdio. Em coletiva de imprensa, o médico do Grêmio, Márcio Dornelles, disse que o problema provavelmente derivou de uma miocardite — que é uma inflamação no músculo cardíaco com múltiplas causas, mas geralmente resultado de uma infecção no organismo. Ele não falou em evento adverso de vacina em nenhum momento da conversa com os jornalistas.
Ao Comprova, Dornelles ressaltou que o atleta não teve nenhuma alteração cardíaca constatada nos exames realizados em junho do ano passado, quando o clube gaúcho contratou o volante. A condição só viria a ser descoberta em dezembro, na bateria de exames de pré-temporada. Nesse intervalo, Lucas não recebeu nenhuma dose da vacina.
A miocardite já foi descrita, de fato, como um evento adverso extremamente raro das vacinas contra a covid-19, em especial as que usam plataformas de RNA mensageiro, como a Comirnaty, da Pfizer. Mas, ao fazer uma relação com o caso de Lucas, o conteúdo espalha desinformação.
De acordo com nota técnica do Ministério da Saúde, a incidência de miocardite como reação adversa das vacinas contra a covid-19 ocorre na ordem de 0,029 eventos para cada 100 mil doses aplicadas no Brasil, ou um caso a cada 3,4 milhões de doses. A maioria dos pacientes apresenta sintomas leves, dentro de duas semanas, e se recupera. Autoridades de saúde e especialistas ressaltam que os benefícios são maiores do que os riscos do medicamento.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O áudio circula no WhatsApp com o aviso “encaminhada com frequência”, sinalização que indica a alta viralização do conteúdo. Post no Twitter ligando o caso de Lucas à vacina foi visualizado mais de 630 mil vezes até 22 de março. No TikTok, publicação semelhante teve cerca de mil compartilhamentos, e, no Instagram, chegou a 4,2 mil interações.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com as contas que divulgaram o conteúdo por mensagens diretas nas redes sociais, mas não obteve resposta. O autor do áudio não pôde ser identificado.
Como verificamos: O primeiro passo foi buscar reportagens sobre a aposentadoria de Lucas Leiva. Uma delas, do UOL, detalha o problema cardíaco do atleta. Em seguida, entramos em contato com a assessoria de imprensa do Grêmio, por mensagem no WhatsApp, e acompanhamos as redes sociais do atleta e da equipe médica envolvida em seu caso.
Também pesquisamos informações sobre a relação da vacina com a miocardite. Foi encontrado, por exemplo, um alerta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre relatório da FDA, órgão de saúde dos Estados Unidos, que aborda casos de miocardite em pessoas imunizadas com vacinas da Pfizer e da Moderna. O Ministério da Saúde também atualizou uma nota técnica no ano passado a respeito do assunto.
Na tentativa de descobrir se o áudio viral do WhatsApp era de alguém da equipe médica do atleta, a reportagem pesquisou vídeos no YouTube com Dornelles e outros integrantes da equipe e comparou com a voz do áudio. Já na primeira audição foi possível verificar que não eram as mesmas vozes. Nesta terça-feira, 21 de março, Lucas e o médico do Grêmio postaram stories no Instagram desmentindo o boato.
O caso
O meio-campista do Grêmio Lucas Leiva anunciou a aposentadoria em 17 de março informando que os exames realizados no começo do mês indicaram que ele não poderia continuar a carreira. O atleta foi diagnosticado com fibrose cicatricial do miocárdio em dezembro, durante os procedimentos de pré-temporada no clube gaúcho. Ele havia retornado ao Grêmio em junho do ano passado, quando não havia nenhuma anomalia cardíaca constatada.
O anúncio ocorreu em uma coletiva de imprensa convocada pelo Grêmio, da qual participaram os médicos do clube Márcio Dornelles e Paulo Rabaldo. Além deles, os consultores da área de cardiologia Ricardo Stein e Leandro Zimerman prestaram apoio no caso do atleta, segundo relato da diretoria.
Desde o diagnóstico, Lucas ficou afastado dos treinamentos. Os médicos constataram que uma zona do coração não estava contraindo de forma adequada, o que era resultado de uma fibrose. O mais provável é que o problema tenha resultado de uma miocardite — uma inflamação no coração — mesmo que sem apresentar sintomas.
A miocardite pode surgir por múltiplas causas, mas ocorre principalmente por conta de infecção por um vírus. Diversos outros agentes, como bactérias e protozoários, podem desencadear o processo. A maioria das pessoas recupera o músculo normalmente, mas há casos em que as fibras acabam sendo substituídas por tecidos mais rígidos que se assemelham a cicatrizes e apresentam capacidade de contração reduzida.
Além de prejudicar o rendimento físico, a condição pode causar arritmias graves e parada cardíaca diante do esforço mais intenso. Lucas não apresentou evolução no quadro nos últimos meses e foi aconselhado a interromper a carreira para não correr riscos de desenvolver uma situação mais grave.
Áudio de WhatsApp
Após o anúncio, um áudio atribuído ao “médico do Lucas Leiva” começou a circular no WhatsApp espalhando a tese insustentável de que o problema teria sido causado pela vacina contra a covid-19.
“O cara fica com uma sequela para sempre e é um efeito pós-vacinação”, alega o autor da gravação, que não pôde ser identificado pelo Comprova. Ele também espalha a ideia de que o atleta tinha uma “saúde monstruosa” e que “não tem cabimento nenhum” receber o imunizante nessa situação.
Parte dos conteúdos trazia a foto de Lucas recebendo uma das doses da vacina em 26 de junho de 2021. “Sensação única! São quase 2 anos que estamos lutando contra esse vírus e eu realmente acredito que uma forma de vencê-lo é se vacinando”, escreveu o atleta, quando ainda era jogador da Lazio, da Itália.
No entanto, não é de nenhum dos médicos citados na coletiva do Grêmio a autoria do áudio. Basta comparar a voz do homem com a de Dornelles, Rabaldo, Stein e Zimerman em diferentes entrevistas disponibilizadas no YouTube.
Na terça-feira, 21 de março, tanto Lucas quanto Dornelles postaram stories no Instagram desmentindo a informação. “Tem um áudio que está rolando no WhatsApp e estou aqui para desmentir a veracidade deste áudio. Não é o médico do Grêmio. Então, queria deixar isso bem claro até porque estão expondo situações muito desagradáveis”, gravou o atleta.
“Não possuo qualquer relação com o conteúdo difundido”, escreveu o médico do Grêmio em uma nota de esclarecimento. “O conteúdo difundido pelo autor do áudio não possui nenhuma relação com o caso. Ao contrário, (as informações) são falsas e espalham desinformação ao grande público através da rede social e apps”. Ele anunciou que tomaria as “medidas cabíveis” em busca da identificação dos envolvidos.
O Comprova conversou com Dornelles e Zimerman por telefone. O médico do Grêmio garantiu que não havia qualquer relação do caso com a vacina de covid-19 e que não existe uma conexão temporal entre esses fatos, considerando que Lucas não tomou nenhuma dose do imunizante no ano passado.
O médico cardiologista Leandro Zimerman, do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, disse que não viu nenhuma evidência relacionando a condição de Lucas ao fato de ter recebido a vacina. “Definitivamente, não é essa a ideia. Não é uma hipótese que estamos levando a sério”, declarou ao Comprova.
Zimerman relata que uma série de fatos apontam para a ausência de relação, a começar pela época que o jogador do Grêmio recebeu as doses e o tipo de vacina. Além disso, destaca que a chance de miocardite pós-vacinação é muito baixa e, nos casos em que aparece, geralmente ocorre em jovens e adolescentes.
O cardiologista lamentou ainda o teor do áudio que circula nas redes e reforçou que as pessoas devem tomar as vacinas quando forem chamadas. “A chance de fazer uma miocardite pela vacina é muito menor do que a chance de desenvolver a mesma condição ao pegar o vírus. Então, é óbvio que vale a pena.”
Miocardite
Como mostrou o Comprova em outras verificações, a miocardite é um evento adverso que pode ocorrer em decorrência das vacinas contra a covid-19. O tema é amplamente explorado por grupos antivacina, mas estes ignoram que as chances de esse tipo de reação ocorrer são extremamente baixas e que a chance de desenvolver miocardite ao se infectar com o vírus da covid-19 são maiores.
Em setembro de 2021, por exemplo, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) publicou um estudo segundo o qual a incidência da miocardite em pacientes que pegaram Covid é de 150 casos por 100 mil e de 9 casos por 100 mil entre aqueles que não tiveram a doença. O estudo cita ainda que, embora haja evidências de aumento de casos entre pessoas vacinadas contra a doença, os benefícios superam o risco e, por isso, a vacinação é recomendada.
De acordo com nota técnica do Ministério da Saúde, atualizada em maio do ano passado, levantamento da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) estimou um risco de miocardite de 1 a cada 10 mil pessoas vacinadas após mais de 479 milhões de doses da vacina da Pfizer terem sido aplicadas no continente. Ainda que a incidência seja baixa, os casos se referem mais frequentemente a jovens do sexo masculino e com sintomas aparecendo nos primeiros 14 dias.
O Ministério da Saúde fez o mesmo exercício com o sistema de notificação do Sistema Único de Saúde (SUS) e constatou que, de janeiro de 2021 a março de 2022, foram registrados 222 eventos de miocardite e pericardite após a vacinação. Nem todos os casos podem ser atribuídos aos imunizantes, pois diante de uma aplicação em massa de um medicamento na população, casos que ocorreriam naturalmente podem se misturar aos causados pelas vacinas simplesmente por uma questão cronológica.
Segundo a pasta, 87 casos foram classificados como provavelmente relacionados às vacinas, dentro de um universo de 294 milhões de doses aplicadas no Brasil no mesmo período. A incidência total encontrada foi de 0,029 eventos para cada 100.000 doses, o equivalente a um caso a cada 3,4 milhões de doses da vacina. O sexo masculino foi mais frequente, a idade média foi de 35 anos e a maioria ocorreu após uma média de 14 dias da vacina.
A maioria das pessoas se recupera do problema pouco tempo depois do diagnóstico. Foram notificadas apenas duas mortes, sendo que para uma a vacina foi entendida como uma possível causa e a outra foi apontada como inclassificável pelo Comitê Interinstitucional de Farmacovigilância de Vacinas e outros Imunobiológicos.
A mesma nota técnica aponta que a incidência estimada de miocardite na população em geral é de 0,2% a 12% — ou seja, casos ocorrem naturalmente e não devem ser relacionados aos imunizantes antes de uma análise médica, que envolve exames complementares. Os sintomas mais comuns são dor no peito, falta de ar e palpitações.
“Os dados de incidência basal da doença e da baixa incidência de miocardite/pericardite como evento adverso pós vacinação (EAPV) descritos reforçam o benefício da vacina em detrimento do risco da doença COVID-19 e o risco de desenvolvimento de formas graves. Assim, mantém-se a recomendação de vacinação para toda população com indicação do uso do imunizante Pfizer/Cominarty sem restrições”, conclui a nota.
O que podemos aprender com esta verificação: Desde o início da pandemia, circulam nas redes sociais peças de desinformação desacreditando as vacinas. O Comprova, inclusive, já publicou diversas verificações sobre o tema. Considerando isso, tome cuidado com conteúdos virais que questionem os imunizantes.
Além disso, é de conhecimento geral entre os verificadores de fatos que áudios são um dos conteúdos mais difíceis de serem checados, por trazerem menos informações do que fotos ou vídeos. O que não impede que algumas ações simples possam ser feitas por qualquer pessoa. Ao receber um áudio sem a identificação do autor, desconfie. No WhatsApp, devemos desconfiar ainda mais quando o arquivo chega com a etiqueta “encaminhada com frequência”.
Como não é simples – muitas vezes, nem possível – identificar a autoria do áudio, busque em sites de veículos profissionais notícias sobre aquele assunto. Alguma mídia tradicional publicou conteúdo sobre médicos ligando o problema de Lucas Leiva à vacina? Se não encontrar nada, é bem possível que o áudio seja mentiroso mesmo.
O conteúdo verificado aqui mistura um acontecimento real, o anúncio da aposentadoria de Leiva por um problema de saúde, com uma mentira – a ligação da doença à vacina. Essa tática é bastante usada pelos desinformadores, na tentativa de tornar a mentira mais verossímil, como se isso fosse possível. Para não cairmos nela, a mesma dica anterior: sempre procure fontes confiáveis, como veículos de imprensa profissionais e órgãos governamentais.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: O mesmo conteúdo verificado aqui foi checado por Boatos.org e GZH. Foco de desinformação desde o início da pandemia, as vacinas continuam sendo descredibilizadas até hoje. Já nesta quinta fase, o Comprova publicou ser falso que Lula não foi imunizado e que é enganoso que o governo federal indica o uso de cloroquina no tratamento contra a covid. No ano passado, outro conteúdo enganoso envolvendo miocardite em atletas de futebol foi verificado.