A Câmara dos Deputados pode votar nesta terça-feira, 30, o projeto de lei do marco temporal das terras indígenas. O texto do PL 490/2007 defende que só podem ser demarcadas as terras indígenas que eram tradicionalmente ocupadas ou que já estavam em disputa judicial na data da promulgação da Constituição de 1988, em 5 de outubro daquele ano. O projeto impede a ampliação de terras indígenas já existentes e retira a responsabilidade da demarcação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a devolve ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Na semana passada, a Câmara aprovou a urgência na votação do texto, por 324 votos favoráveis e 131 contrários, o que acelerou a tramitação. Após mais de 16 anos desde a apresentação do PL, o assunto do marco temporal tem sido alvo de desinformação nas redes sociais. O Estadão Verifica checou algumas das principais alegações que viralizaram sobre o tema. Confira:
Saiba mais
Fatia do território nacional ocupada por terras indígenas
O que estão compartilhando: que as terras indígenas já correspondem a 14% do território brasileiro e que, sem o marco temporal, podem chegar a 26%
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: há um dado próximo do real e outro não confirmado. De acordo com a Funai, existem atualmente 764 áreas indígenas no Brasil, incluindo áreas ainda em estudo e outras já regularizadas. Elas somam 118,3 milhões de hectares, que correspondem a pelo menos 13,9% do território nacional, que é de 851 milhões de hectares. No entanto, nem todas estão com processo avançado de demarcação: aquelas áreas indígenas que já foram declaradas, delimitadas, homologadas ou regularizadas correspondem a 13,75% do território brasileiro.
Desde 2021, quando começou a falar sobre o tema em lives semanais, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) alegava que, sem o marco temporal, as terras indígenas saltariam de 14% para 26% do território nacional. Não há dados oficiais que confirmem essa informação. Das 764 áreas indígenas apontadas pela Funai, 164 estão em fase de estudos ou encaminhadas com reservas indígenas (RI), ou seja, estão em procedimento administrativo visando sua aquisição para abrigar comunidades indígenas, seja por meio de compra direta, desapropriação ou doação.
A maioria das áreas em estudo ainda não foi delimitada, ou seja, nem sequer há informações sobre a área total que elas ocupariam. Considerando aquelas cujo tamanho já está definido, elas somam, junto às áreas encaminhadas como RI, uma superfície de 1,2 milhão de hectares, o que corresponde a apenas 0,14% do território brasileiro.
Além disso, o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado em 2021 pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) aponta a existência de 598 áreas indígenas reivindicadas no Brasil que ainda não receberam nenhuma providência do Estado, ou seja, não há ainda um processo administrativo para avaliar a demarcação.
O relatório não informa o tamanho dessas áreas, apenas a localização: 257 ficam na região Norte (42,9% do total de 598), 81 ficam no Nordeste (13,5%), 147 no Centro-Oeste (24,5%), 36 no Sudeste (6%) e 77 no Sul (12,8%). As regiões Norte e Nordeste, portanto, concentram mais da metade dessas terras reivindicadas e sem resposta.
Porcentagem da Amazônia ocupada por terras indígenas
O que estão compartilhando: que Terras Indígenas e unidades de conservação correspondem a mais da metade do território da Amazônia.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o território da Amazônia Legal tem 501,5 milhões de hectares. Dados levantados pelo Instituto Socioambiental apontam que as terras indígenas demarcadas na Amazônia Legal somam 115,4 milhões de hectares, ou seja, menos de um quarto de sua área.
De acordo com o Imazon, em 2007, a Amazônia Legal tinha cerca de 43% de seu território ocupado por áreas protegidas – o que não incluía apenas as terras indígenas, mas também unidades de conservação ambiental e reservas militares. Elas somavam cerca de 209 milhões de hectares, ou seja, menos da metade do território da Amazônia Legal.
Ocupação de sítios e demarcação de Terras Indígenas
O que estão compartilhando: que, com o “novo” marco temporal, se o indígena ocupar o sítio de alguém, esse local passará a ser terra indígena
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O que a tese do marco temporal defende é que os povos indígenas só têm direito a ocupar as terras que já ocupavam ou já disputavam judicialmente no dia da promulgação da Constituição de 1988, ou seja, em 5 de outubro daquele ano.
Já a tese contrária à do marco temporal, chamada de “indigenato”, defende que os indígenas podem reivindicar terras anteriormente ocupadas por seus ancestrais, mesmo que não as ocupassem ou as disputassem em 5 de outubro de 1988. Os defensores desta tese argumentam que o marco temporal não leva em conta disputas entre indígenas e ruralistas, que muitas vezes resultaram na expulsão dos povos originários de suas terras.
Isso não significa que basta que uma comunidade indígena ocupe um sítio para que ele passe a ser considerado uma terra indígena. Se, eventualmente, um sítio estiver sobre uma área anteriormente ocupada por ancestrais de uma comunidade indígena, essa terra pode ser reivindicada, segundo a tese do indigenato, mas o processo não é automático.
De acordo com a Funai, a Constituição assegura que os povos indígenas detêm o direito originário e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas a demarcação destas terras envolve um processo: primeiro, são feitos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam a identificação e a delimitação da terra indígena.
Uma vez que o estudo seja aprovado pela Funai, essas terras entram para a fase de contraditório administrativo e análise de limites. Depois de aprovada a delimitação, as terras passam a ser declaradas, fase em que é autorizada a demarcação física do território. Após os limites serem georreferenciados, a terra indígena segue para a fase de homologação por decreto presidencial e, só então, para a regularização em cartório.
Terras demarcadas com base em sonhos
O que estão compartilhando: que a Funai demarcou a Terra Indígena Pindoty/Araçá-Mirim com base em sonhos de pajés.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. A Terra Indígena Pindoty/Araçá-Mirim, que ocupa um território de 1.030 hectares na região do Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo, teve os estudos de identificação e delimitação aprovados pela Funai em dezembro de 2016, e publicados no Diário Oficial da União em 27 de fevereiro de 2017. A terra ainda não foi homologada, nem regularizada, mas há documentação que aponta a ocupação por povos Guarani e/ou Guarani Mbya no local desde antes da chegada dos portugueses, no século XVI.
O resumo do estudo antropológico e arqueológico que fundamentou o processo de delimitação explica que os indígenas que hoje vivem nas terras Pindoty/Araçá-Mirim se autodenominam Guarani e/ou Guarani Mbya. Embora já vivessem na região desde antes da chegada dos portugueses, os Guarani se estabeleceram como grupo majoritário na Capitania de São Vicente no século XVII.
Apenas no século XIX, um pequeno aldeamento do Rio do Peixe, na região do Vale do Ribeira, foi reconhecido pelo governo, mas as terras foram retiradas dos indígenas em um processo violento de esbulho ao longo do século XX, o que os obrigou a resistir e ocupar terras nos arredores.
Somente em 1998 foi estabelecida uma nova aldeia na região, enquanto uma segunda foi formada em 2012. Atualmente, a TI Pindoty/Araçá-Mirim é formada por essas duas aldeias, estabelecidas em área já ocupada anteriormente pelo povo Guarani e formada por povos que têm um parentesco entre si e que chegaram lá, como dita a tradição dos povos, guiados por sonhos de pajés.
“O estabelecimento na Terra Indígena Pindoty/Araçá-Mirim é entendido como um retorno ao lugar dos antepassados, revelado em sonhos para os pajés que orientaram os dois grupos familiares em suas trajetórias pelo Vale do Ribeira”, diz o estudo antropológico. A tradição dos Guarani é corroborada pela documentação: “A mobilidade regida pelos sonhos e pelas lideranças espirituais é um fator decisivo da territorialidade dos Guarani Mbya, e é referendado pela história da ocupação desse povo no Vale do Ribeira”.
PL do Marco Temporal
Em nota, a Funai informou que “baseia seus atos administrativos no princípio legalidade e cumpre a obrigação constitucional de demarcar as terras indígenas”. A Fundação também disse que “o trabalho realizado pela Funai é estritamente técnico, seguindo as determinações do artigo 231 da Constituição, do artigo 19 da Lei n° 6001/73 e do Decreto 1.775/96″ e que “o não reconhecimento da obrigação estatal de demarcar terras indígenas somente contribui com conflitos e incentiva violações de direitos”.
Terra Indígena com apenas nove índios
O que estão compartilhando: que há uma Terra Indígena com 31 mil hectares e apenas nove índios.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto. Um decreto presidencial de 28 de abril deste ano homologou a Terra Indígena Avá-Canoeiro, em Goiás, em um território cuja superfície é de 31,4 mil hectares. Lá vivem, atualmente, nove indígenas, mas os povos Avá-Canoeiro vivem nas matas do Centro-Oeste brasileiro há pelo menos 400 anos e chegaram a somar, segundo pesquisa antropológica, mais de 2 mil pessoas. No século XIX, na obra Viagem ao Interior do Brasil, João Emanuel Pohl descreveu os povos Avá-Canoeiro como uma das tribos mais numerosas e temidas que viviam nas margens do Rio Maranhão.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, contudo, eles foram perseguidos por bandeirantes e continuaram a ser exterminados nos séculos seguintes – eram descritos como cruéis e selvagens, provavelmente porque, segundo estudos sobre os canoeiros, não aceitavam contato com outros povos. Naquela época, colonos já achavam que os indígenas detinham a melhor parte do território e defendiam que eles fossem assassinados, diz documentação usada no processo de demarcação da TI.
Esses documentos foram obtidos pelo Estadão Verifica por meio da Lei de Acesso à Informação e apontam que, na década de 1960, cem indígenas Avá-Canoeiro foram exterminados por fazendeiros no interior de Goiás. Antropólogos contratados pela Funai para tentar contatar os sobreviventes temiam que o restante dos indígenas terminassem assassinados também.
São constantes as menções na documentação à falta de informações sobre o total de indígenas Avá-Canoeiro sobreviventes. A Funai não descarta, ao longo do processo de demarcação, existirem indígenas não contatados e, na década de 1990, fez uma estimativa de que havia 35 indígenas da etnia, incluindo os que viviam na TI Avá-Canoeiro, os que habitavam a Ilha do Bananal e grupos que perambulavam pelo território. Dos nove moradores atuais da TI, há crianças, adultos e idosos, entre eles uma indígena Avá-Canoeiro que está grávida do quarto filho do marido, indígena da tribo Tapirapé, do Mato Grosso.
Terra Indígena Yanomami e Estado do Rio
O que estão compartilhando: que a reserva Yanomami tem duas vezes a área do Estado do Rio de Janeiro.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdade. De acordo com dados do IBGE, a área total do Estado do Rio de Janeiro no ano passado era de 4,750 milhões de hectares. Já o registro da Terra Indígena Yanomami junto à Funai aponta que a superfície é de 9,664 milhões de hectares, o que significa mais do que o dobro de todo o território fluminense.
Em uma live feita em 27 de fevereiro de 2020, Bolsonaro afirmou que as terras indígenas demarcadas no Brasil correspondiam ao tamanho da região Sudeste. Não fica claro o que ele quer dizer com terras “demarcadas”, mas se forem consideradas apenas aquelas homologadas por decreto presidencial ou já regularizadas em cartório, a área total delas é de 107,351 milhões de hectares, segundo dados da Funai, enquanto a região Sudeste tem área de 92,455 milhões de hectares, segundo o IBGE.
Villas Bôas e os Yanomami
O que estão compartilhando: que o sertanista Orlando Villas Bôas disse que índios Yanomami haviam ido estudar nos Estados Unidos e voltariam querendo decretar a independência do território.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: está fora de contexto. O vídeo que circula pela internet é um corte de uma entrevista concedida pelo sertanista Orlando Villas Bôas à jornalista Paula Saldanha, em 2000, para o programa Expedições, da TV Brasil. A fala não aparece na edição do programa – cujo tema era o Parque Nacional do Xingu –, mas se espalhou em vídeos pela internet.
A fala completa de Villas Bôas na ocasião, exibida em uma reportagem da TV Band anos depois, é: “As maiores reservas de urânio do mundo estão em Roraima, estão dentro da terra Yanomami. Os maiores minérios do mundo, e uma que se tem o apelido de alexandrita, só foi encontrada na América na terra Yanomami. Nós já sabemos, por fonte muito boa, que mais ou menos uns 10 a 15 Yanomamis, os mais destacados da comunidade, estão na América, aprendendo inglês, aprendendo uma porção de coisas, e aprendendo a política. E essa política vai acontecer em quê? Eles vão voltar, dentro de uns ou dois anos – que, talvez, eu não sei se eu vou assistir, mas vocês vão –, daqui a uns dois ou três anos essa gente volta pras tribos Yanomami, liderando, falando inglês, uma outra mentalidade, e o que eles vão fazer? Eles vão pedir um território Yanomami desmembrado do Brasil e da Venezuela, e a ONU vai dar. A ONU vai dar, e dar como tutora, no começo dessa nova gleba, a América do Norte”.
Em 2008, o filho de Orlando, Noel Villas Boas, alertou em entrevista ao Jornal da Gente que os recortes descontextualizavam a fala de seu pai e que era absurdo pensar que Orlando Villas Bôas era contrário à demarcação de terras indígenas. “A verdadeira preocupação de meu pai, manifesta nessa entrevista, era com relação às inúmeras ONGs de caráter duvidoso que estavam (e estão) atuando em território indígena assumindo prerrogativas da Funai. A problemática indígena é questão que se refere somente à competência do Estado. Pensar que o sertanista Orlando Villas Bôas poderia ser contra a demarcação da reserva Ianomâmi beira o absurdo”, disse.
Embora o trecho que se popularizou não tenha aparecido na entrevista, a fala final de Villas Bôas no programa indica sua opinião sobre o tema. A pedido da jornalista, ele deixa um recado aos povos indígenas: “Vocês não devem permitir a entrada de pessoas estranhas dentro da área. Elas, hoje, são muito boazinhas, mas amanhã elas querem as suas terras. Cuidado com essa gente. Não existe civilizado bonzinho, aqueles que foram bonzinhos já morreram, o Marechal Rondon era um deles”, disse. “Existem muitas riquezas no solo da nossa terra e tem muita gente interessada nesse subsolo, e esse subsolo pode estar também aí no Xingu, e o garimpo é a destruição de toda a sua etnia. Vocês morrem porque o civilizado não tem contemplação com ninguém”.
Plantação de milho em Terras Indígenas
O que estão compartilhando: que os índios Paresi plantam soja em 18 mil hectares e que isso corresponde a menos de 2% de seu território.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto. Em outubro de 2021, sob o governo Bolsonaro, a Funai divulgou que indígenas das etnias Paresi, Nambikwara e Manoki haviam iniciado o plantio de soja convencional no Estado de Mato Grosso, esperando colher mais de 1 milhão de sacas do grão na safra 2021/2022.
A área total usada para o plantio da soja pelos indígenas era, segundo a Funai, de 19,6 mil hectares, o que correspondia a 1,7% dos mais de 1,1 milhão de hectares das cinco terras indígenas pertencentes às três etnias: Paresi, Rio Formoso e Utiariti da etnia Paresi; Irantxe da etnia Manoki; e Tirecatinga da etnia Nambikwara.
A alegação sobre o plantio omite, contudo, que o Ibama já havia embargado estas mesmas terras em 2018 por conta do desmatamento e do plantio ilegal de soja transgênica em terras indígenas, o que é proibido pela Lei 11.460/2007. O Ibama constatou, na época, que a terra tinha sido arrendada a 17 produtores rurais, o que também vai de encontro à legislação ambiental e ao Estatuto do Índio.
Em setembro de 2019, já sob o governo Bolsonaro, o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, desembargou as terras. Naquele mesmo ano, os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e da Agricultura, Tereza Cristina, compareceram à festa da colheita realizada no mesmo local que havia sido embargado um ano antes.
Reserva de nióbio em terra indígena
O que diz: que a maior reserva de nióbio do mundo – R$ 3 trilhões – fica no Morro das Seis Lagoas (Amazonas), dentro de uma reserva indígena.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O Sumário Mineral 2014 do antigo Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM) apontava que a maior reserva de nióbio do mundo ficava mesmo no Brasil, mas em Minas Gerais. O Amazonas aparecia em terceiro lugar, com o depósito de Pitinga, em Presidente Figueiredo.
Em resposta ao Estadão Verifica, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) informou nesta segunda-feira, 29, que a liderança mundial em produção de nióbio fica em Minas Gerais, no município de Araxá, por meio de uma empresa que lidera também a pesquisa tecnológica para aplicação do nióbio.
O Instituto disse não ter informações sobre uma reserva em Seis Lagos, mas destacou que “onde há terras indígenas não pode haver mineração ou garimpo legalizados, já que são atividades econômicas que demandam regulamentação de dispositivos constitucionais”.
O Ibram explicou ainda que o nióbio não é um mineral raro e que a capacidade produtiva de todos os produtores, atualmente, é cerca de duas vezes maior do que a demanda de mercado. “Existem diversos depósitos com bom potencial de apresentar uma reserva significativa, mas que ainda demandam mais pesquisas para confirmação”, diz nota.