Circula no WhatsApp um vídeo em que um cardiologista norte-americano espalha alegações falsas sobre a vacina contra covid-19. O médico afirma, por exemplo, que a vacina estaria causando coágulos sanguíneos mais resistentes e trombose — um boato antigo, já desmentido pelo Estadão Verifica. Outras alegações no vídeo também foram tema de esclarecimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de centros de pesquisa e de agências de checagem (leia mais abaixo).
Por meio da ferramenta de busca reversa de imagens, foi possível identificar que o vídeo é do dia 13 de setembro de 2023 e mostra o médico Peter McCullough no evento “Health & Democracy under WHO’s new proposed rules” (Saúde e Democracia sob as novas regras propostas pela Organização Mundial da Saúde, em tradução livre). Checagens de iniciativas de fact-checking estrangeiras afirmam que a reunião ocorreu em uma das salas do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, na França. A reunião não tem relação oficial com o Parlamento e não há registro do evento no site oficial da instituição.
A Anvisa reforça que todos os dados disponíveis até o momento apontam que os benefícios do uso das vacinas contra covid-19 no Brasil são muito superiores aos riscos. “O monitoramento demonstra que a grande maioria dos eventos identificados são não graves, normalmente relacionados a efeitos no local da aplicação, como dor e inchaço, ou eventos de curta duração, como ocorrência de febre e indisposição”, afirmou a agência, por e-mail.
Confira a checagem das alegações:
Proteína spike
O que estão compartilhando: que a proteína spike (S) é responsável por doenças cardiovasculares, neurológicas, coágulos sanguíneos e anomalias imunológicas.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. A proteína spike é encontrada no próprio coronavírus. No caso das vacinas que usam adenovírus, como a AstraZeneca (Oxford/Fiocruz) e a Janssen (Johnson & Johnson), ocorre a transferência do material genético da proteína spike para as células de defesa do corpo, a fim de gerar uma resposta imunológica ao vírus. Já as vacinas que usam o RNA mensageiro (mRNA), como a da Pfizer e a Moderna, ensinam o corpo a produzir a proteína S, de maneira que o sistema imunológico possa combater a proteína de um vírus real.
De acordo com o Instituto Butantan, não há qualquer embasamento científico para alegar que a proteína S causaria problemas à saúde. O instituto reitera que a segurança dos imunizantes foi atestada em ensaios clínicos e o material contido nas vacinas não é capaz de causar replicação ativa do vírus, nem de adoecer o indivíduo.
Leia também
Miocardite
O que estão compartilhando: que imunizantes contra covid-19 causam doenças cardiovasculares, como miocardite. O vídeo afirma que todas as agências reguladoras concordam que as vacinas causam miocardite.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. A Anvisa recomendou a continuidade da vacinação em 2021 e, novamente, em 2023, após prestar esclarecimentos sobre o risco de miocardite e pericardite em decorrência da imunização contra covid-19. Com base no monitoramento da segurança realizado até março deste ano, ficou constatado que o risco permanecia baixo.
A farmacêutica Pfizer explicou que os diagnósticos de miocardite e pericardite após a vacinação contra covid-19 são raros e ocorrem dentro de 14 dias após a vacinação. Os casos aparecem mais frequentemente depois da segunda dose e em homens mais jovens.
Mal súbito em atletas
O que estão compartilhando: que clubes de esportes vacinaram jovens “sem necessidade médica”. Essa seria a causa de uma “sequência de paradas cardíacas em pessoas jovens”.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: não há qualquer indicação disso. O boato já foi desmentido pela Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE) em 2022, que afirmou não haver nenhuma evidência científica mostrando elevação no número de casos de mal súbito (MS) em atletas. “Adicionalmente, não há nenhum dado que mostre uma associação entre vacinas contra a Sars-CoV-2 e MS em atletas ou em praticantes de atividades físicas intensas e/ou frequentes”, esclareceu a entidade.
Este ano, o governo federal reafirmou a segurança das vacinas e negou que os produtos causem mal súbito. De acordo com o Ministério da Saúde, um estudo da Associação Americana do Coração publicado em 2011 mapeou as características das vítimas de morte súbita durante a prática esportiva na França. O que se constatou é que o mal repentino não é um evento tão raro e pode ter diversas causas (infarto, AVC, arritmia cardíaca, longo período sem alimentação, frio e calor intensos, por exemplo). Além disso, é mais comum entre atletas.
Esse assunto também foi comentado em mais detalhes pelo Projeto Comprova.
Comparação com outras condições de saúde
O que estão compartilhando: que o conjunto de danos cardiovasculares causados pela vacina é maior do que os vistos em decorrência de colesterol, pressão alta e diabetes.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. De acordo com o cardiologista e Mucio Tavares de Oliveira, o efeito deletério de colesterol elevado, hipertensão e diabetes é observado em um prazo muito longo. Portanto, não há como estabelecer relação temporal entre as consequências dessas condições de saúde e os efeitos da vacinação.
De qualquer forma, o diretor da Unidade Hospital Dia e Centro de Infusão do Instituto do Coração (InCor-HCFMUSP) explica que “o percentual de complicações destas doenças supera em muito os eventos da vacina”.
Doenças neurológicas
O que estão compartilhando: que a vacina contra covid-19 causou aumento de quadros de doenças neurológicas. São citados AVC, Síndrome de Guillain Barré, paralisias, neuropatia de fibras nervosas, dormência, formigamento, zumbido no ouvido e dores de cabeça.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Até o momento, os efeitos colaterais mais comuns são os mesmos de qualquer vacina, incluindo dor de cabeça, dor no local de aplicação e febre. Além disso, de acordo com o neurologista e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz Marcus Tulius Silva: “Os efeitos adversos de qualquer vacina surgem no máximo em até 4 a 6 semanas”. Em razão disso, não é possível que os problemas neurológicos citados no vídeo somente comecem a se manifestar agora, dois anos após o início da vacinação contra covid-19.
Aqui vale lembrar que, em 2021, a agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos (FDA) informou que a vacina da Janssen, da Johnson & Johnson, contra a covid-19 poderia estar associada a um pequeno aumento no risco de desenvolver a Síndrome de Guillain-Barré. A Anvisa reconheceu o alerta sobre casos raros, mas manteve a recomendação favorável à vacinação.
Coágulos sanguíneos
O que estão compartilhando: que a proteína spike causa coágulos sanguíneos maiores e mais resistentes a anticoagulantes.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Para o cardiologista Mucio Tavares de Oliveira, a vacinação, assim como qualquer substância administrada a um paciente, pode ter efeitos adversos. No entanto, os efeitos mais graves são extremamente raros. É mais comum que a pessoa vacinada tenha sintomas como dor de cabeça e dor no local da aplicação.
O cardiologista acrescenta que não há sentido na alegação do vídeo de que a proteína S causaria coágulos sanguíneos “maiores e mais resistentes “. “A proteína spike está presente apenas na vacina que usa o vetor adenovírus [como a AstraZeneca e a Janssen]”, começa. “Ela está implicada em várias das complicações citadas, mas dizer que há coágulos sanguíneos mais resistentes é um claro exagero”, afirma.
Trombose
O que estão compartilhando: a proteína spike é a mais trombogênica já vista na medicina humana.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Como foi explicado anteriormente, a proteína spike é encontrada no próprio coronavírus. As vacinas de mRNA ensinam o corpo a produzir essa proteína, a fim de preparar o sistema imunológico para combatê-la num vírus real. As vacinas que usam essa tecnologia não estão associadas ao desenvolvimento de trombose.
Casos raros da doença após vacinação contra covid-19 estão associados às vacinas com adenovírus, como a AstraZeneca (Oxford/Fiocruz) e a Janssen (Johnson & Johnson), que transferem o material genético da proteína spike para as células de defesa do corpo. Sobre o assunto, a Anvisa já reforçou a importância do diagnóstico e tratamento precoce nos casos identificados e manteve a recomendação pela continuidade da imunização.
Leia também
O vídeo verificado aqui também foi desmentido pela agência de checagens estadunidense Lead Stories (texto em inglês)
Como lidar com postagens desse tipo: Diante de qualquer acusação sobre os efeitos da vacina contra covid-19, é recomendável pesquisar as notas oficiais da Anvisa, que é a responsável por aprovar os imunizantes no país. Também é interessante buscar sobre o assunto no portal de instituições que desenvolvem imunizantes, como a Fiocruz e o Instituto Butantan.
Por fim, uma ferramenta que pode ajudar a conferir a fonte de uma informação duvidosa é o Fact Check Explorer da Google. Basta digitar um nome na barra de pesquisas para conferir se ele está envolvido em checagens internacionais.