Mensagens enganosas nas redes sociais distorcem informações sobre o protocolo de estudos clínicos da vacina contra a covid-19 desenvolvida por Pfizer e BioNTech, para insinuar que o imunizante pode causar problemas reprodutivos e danos genéticos aos pacientes. Não há qualquer evidência científica de que a vacina possa ter esses efeitos adversos. O que ocorreu foi que, durante a fase de testes, a farmacêutica pediu que voluntários não fizessem sexo sem proteção; mas esse é um procedimento padrão em estudos clínicos.
Em tuíte publicado nas redes sociais em dezembro, o médico Alessandro Loiola afirma que o manual de testes da vacina Pfizer orienta que os participantes não devem fazer sexo sem proteção até 28 dias após a segunda dose devido ao "risco de segurança reprodutiva". Loiola sugere, de forma enganosa, que isso teria relação com a possibilidade de "alterações genéticas transmissíveis". Não existe nenhuma prova de que isso seja verdade.
O documento da Pfizer informa que participantes homens do estudo devem concordar em não ter relações sexuais sem utilizar métodos contraceptivos, como preservativos, com mulheres que possam ficar grávidas. Há regras também para voluntárias mulheres, que devem usar métodos para prevenir a gravidez durante os testes.
Segundo a fabricante, trata-se de um procedimento padrão que abrange estudos clínicos de outros medicamentos e vacinas. "Em qualquer estudo clínico que não prevê a participação de gestantes, existe a recomendação para uso de métodos anticoncepcionais eficazes. Essa é também uma exigência dos comitês de ética em pesquisa", explicou a Pfizer, em nota ao Estadão Verifica.
A empresa também informou por e-mail que não houve registro de infertilidade ou de problemas relacionados à reprodução entre os voluntários do estudo. Segundo dados publicados na revista científica de medicina New England Journal of Medicine, o perfil de segurança do imunizante é caracterizado por efeitos adversos leves a moderados, como fadiga e dor de cabeça.
O Estadão Verifica tentou entrar em contato com Alessandro Loiola por meio do e-mail de contato de um site gerenciado pelo médico, mas não obteve resposta.
Minimização de riscos
A imunologista e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre Cristina Bonorino pontua que o pedido para que voluntários usassem métodos contraceptivos é uma medida de segurança de estudos clínicos. A especialista explica que a ideia é minimizar ao máximo o risco de efeitos adversos inesperados nos participantes. Mas isso não significa que a vacina possa causar algum dano genético ao paciente.
Em nota, a Pfizer explicou que o "uso de métodos eficazes de contracepção deve ser aplicado para homens e mulheres em idade reprodutiva, visto que o objetivo é preservar o feto em todas as fases, desde a sua formação, de qualquer eventual efeito que um medicamento ou uma vacina em estudo possam causar".
Esse procedimento encontra respaldo em documentos do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH). Um guia de desenvolvimento de protocolos clínicos publicado pelo órgão orienta que pesquisadores devem considerar o uso de métodos contraceptivos para voluntários homens e mulheres em caso da ausência de dados sobre os riscos reprodutivos de uma substância.
Os protocolos dos imunizantes contra covid-19 da Astrazeneca com a Universidade de Oxford, da Moderna e da Janssen, assim como manuais de diferentes companhias para vacinas contra outras doenças, incluem nos critérios de inclusão de participantes o uso de métodos contraceptivos ou a adoção de abstinência sexual para mulheres com potencial de gravidez.
Protocolo de testes não é bula
Para Cristina Bonorino, é essencial diferenciar o protocolo de pesquisa clínica e a bula das vacinas. Ela pontua que o primeiro documento traz considerações gerais de precaução para evitar riscos aos voluntários do estudo, enquanto a bula informa orientações específicas, com instruções de uso e contraindicações definidas a partir dos resultados das pesquisas clínicas.
Em relatório enviado à Food And Drug Administration (FDA), órgão sanitário dos Estados Unidos, a Pfizer e a BioNTech apontaram que o imunizante é contraindicado apenas para pacientes com histórico de alergias severas. Sobre questões reprodutivas, a empresa informa que não há dados suficientes a respeito dos riscos associados à gravidez ou reprodução.
A FDA orienta que, embora não tenham ocorrido estudos específicos com mulheres grávidas e lactantes, não há contraindicação para o recebimento da vacina. "As mulheres grávidas ou em período de amamentação devem discutir os potenciais benefícios e riscos da vacinação com o seu prestador de serviços de saúde", diz o órgão americano.
O órgão dos EUA destaca que "não há evidências científicas de que a vacina da Pfizer pode causar infertilidade em mulheres".
Já o governo britânico acrescenta que estudos com animais não indicaram efeitos nocivos diretos ou indiretos à gravidez, ao desenvolvimento embrionário ou no período pós-natal. A recomendação é que o imunizante deve ser administrado em mulheres grávidas quando o risco de exposição à infecção pela covid-19 é elevado e não pode ser evitado, ou quando a mulher tem alguma condição que aumenta o risco de desenvolver quadros graves da doença.
"Nessas circunstâncias, os médicos devem discutir os riscos e benefícios da vacinação com a mulher, que deve ser informada sobre a ausência de dados de segurança para a vacina em gravidez", diz documento do governo britânico.
Vacina de RNA não tem mecanismo para alterar o código genético
A professora Cristina Bonorino ressalta que também não há evidências de que vacinas de RNA mensageiro possam provocar alterações no DNA de pacientes. A tecnologia do imunizante usa microfragmentos de material genético sintetizados em laboratório para levar até as células as instruções para produzir proteínas específicas do vírus. Com isso, as células desenvolvem a capacidade de reconhecer e anular o novo coronavírus em caso de infecção.
De acordo com a imunologista, o material aplicado nas vacinas de mRNA não tem os mecanismos necessários para interferir no DNA de quem recebe o imunizante. "É diferente de um vírus de RNA, que tem um maquinário todo adaptado para se copiar e se inserir no material genético da célula. Para isso, é necessária uma série de enzimas e proteínas", explica.
A pesquisadora lembra que apesar do uso dessa tecnologia de imunização representar uma novidade, as vacinas de RNA mensageiro já são estudadas há décadas. Segundo ela, esse tipo de imunizante não foi utilizado anteriormente devido aos desafios de minimizar a instabilidade das moléculas de RNA.
O Centro de Controle de Doenças Infecciosas dos EUA (CDC) corrobora com os apontamentos da pesquisadora. "Foram realizados ensaios clínicos em fase inicial com vacinas [de mRNA] contra a gripe, Zika, raiva e citomegalovírus (CMV). Entre os desafios encontrados nestes ensaios iniciais, estavam a instabilidade do RNA livre no organismo, resultados inflamatórios involuntários, e respostas imunes modestas. Os recentes avanços tecnológicos na biologia e química mitigaram estes desafios e melhoraram a estabilidade, segurança e eficácia [das vacinas]", afirma o órgão em página oficial.