Mensagens encaminhadas pelo WhatsApp desinformam ao dizer que a Rússia teria vetado uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) para a "internacionalização da Amazônia", em favor do Brasil, e que isso explicaria agora uma suposta posição de "neutralidade" do governo federal em relação à invasão da Ucrânia. Na realidade, o projeto previa a possibilidade de que as mudanças climáticas pudessem ser analisadas pelo Conselho de Segurança como uma ameaça à paz, expandindo os critérios usados pelo órgão mais poderoso da ONU para determinar intervenções em conflitos armados.
Em nenhum trecho da resolução vetada há menções diretas à Amazônia ou ao Brasil. O tema, na verdade, entrou em pauta como forma de prevenir ameaças terroristas e conflitos na África, relacionados em parte com a competição por água, alimentos e terras agrícolas. Outro ponto levantado é a possibilidade de migração forçada de locais drasticamente afetados pelo aquecimento global, como pequenas ilhas que podem ficar submersas com o derretimento de geleiras e o aumento do nível dos oceanos.
Especialistas ouvidos pelo Estadão destacam que a política ambiental da Amazônia não estava presente no debate e que alguma intervenção relacionada ao bioma seria radical, improvável e dependeria de outros procedimentos internos. Já a tese de que o veto da Rússia a essa resolução estaria influenciando de alguma forma o posicionamento brasileiro acerca da invasão da Ucrânia é inconsistente: a diplomacia do Brasil na ONU condenou o ataque russo, ainda que o presidente Jair Bolsonaro (PL) venha defendendo "equilíbrio" em relação ao conflito.
Qual era o teor da proposta
A pauta (S/2021/990) foi apresentada oficialmente por Níger e Irlanda, em 13 de dezembro de 2021, e obteve o apoio de outras 111 nações e territórios, incluindo Reino Unido, Estados Unidos e Alemanha. Ela era composta por 17 itens e tentava definir, pela primeira vez, as mudanças climáticas como uma ameaça à paz e expandir os critérios de atuação do Conselho de Segurança da ONU em conflitos armados pelo mundo.
O documento afirma que o Conselho de Segurança da ONU já enfatizou a necessidade de levar em conta as implicações para a segurança dos efeitos adversos das mudanças climáticas nos programas e estratégias dos países afetados, citando os cenários da Bacia do Lago Chade, Somália, Darfur, Sudão do Sul, Mali, República Democrática do Congo, Chipre e Iraque, entre outros.
O argumento central é o de que os efeitos adversos da mudanças climáticas poderiam impedir ou reverter os ganhos de construção da paz e desenvolvimento nos países mais afetados, especialmente em nações caracterizadas por um alto nível de fragilidade, e atuar como multiplicador de risco nesses contextos.
Entre esses efeitos negativos, o documento menciona chuvas irregulares, maior frequência de eventos extremos como secas, inundações e ciclones, redução da oferta de água doce, desertificação e aumento do nível do mar. Isso pode levar, na visão dos países e territórios que apoiaram a medida, a situações de falta de água, insegurança alimentar, migração em larga escala, exacerbação de tensões sociais e agravamento dos conflitos atuais ou futuros.
A proposta está dividida em 17 itens. Em linhas gerais, colocava as mudanças climáticas de forma permanente nas discussões do Conselho de Segurança da ONU e estabelecia que os efeitos adversos deveriam ser levados em conta sempre que "representem desafios para a implementação das ordens do Conselho ou ameacem o processo de consolidação da paz duradoura".
A proposta determinava, por exemplo, que o órgão mais poderoso da ONU deveria elaborar relatórios sobre as implicações das mudanças climáticas na segurança de países e regiões onde esse contexto é considerado relevante e discutir "recomendações sobre como riscos climáticos para a segurança podem ser enfrentados". A intenção também era encorajar as operações de paz e outras missões especiais da ONU a analisarem esse contexto nas localidades em que atuam.
Sobre as determinações do Conselho a respeito do assunto, o documento indicava como prioridade a "mediação" para a "solução pacífica de conflitos", de preferência de forma preventiva, antes de as disputas evoluírem para uma situação de violência. Um dos itens também reconhece a importância de "coordenar (as ações) com os países anfitriões" para garantir que as estratégias sejam "esforços colaborativos" e que atendam às necessidades e aos objetivos destes países.
Rússia vetou a resolução
Para ser aprovada, a resolução precisaria do voto favorável de ao menos nove dos 15 integrantes do Conselho de Segurança da ONU. O grupo é formado por 10 membros temporários, eleitos em mandatos de dois anos em um sistema de cotas regionais, e cinco membros permanentes com poder de veto (EUA, Reino Unido, França, China e Rússia).
O placar foi de 12 votos a favor (EUA, Reino Unido, França, Níger, Estônia, Irlanda, Quênia, México, Noruega, São Vicente e Granadinas, Tunísia e Vietnã) e dois contrários (Índia e Rússia), com uma abstenção (China). Dessa forma, a resolução só não foi adotada por conta do posicionamento russo, que barrou automaticamente o texto.
De acordo com informações do site da ONU, a Rússia justificou o veto dizendo que a proposta era "inaceitável" e não tinha consenso. O embaixador russo, Vassily Nebenzia, declarou que a criação de uma nova área de trabalho do Conselho desviava a atenção das verdadeiras razões para os conflitos, fazendo um "link automático" com as mudanças climáticas. Ele comparou a situação a uma "bomba relógio" pela visão "dúbia" sobre a paz e a segurança internacional adotada por alguns países.
O Brasil ainda não fazia parte do Conselho de Segurança da ONU quando a proposta entrou em votação, pois só viria a assumir assento em janeiro deste ano. Ainda assim, o Itamaraty sinalizou que não concordava com o teor do projeto, por entender que o fórum adequado para discutir o assunto seria a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), segundo um resumo divulgado no site da ONU sobre o discurso do embaixador Ronaldo Costa Filho, em 9 de dezembro.
"(O diplomata brasileiro disse que) Eventos extremos podem devastar grupos sociais e devastar sistemas de produção e as economias locais, criando um terreno fértil para consequências sociais perigosas como o surgimento de ameaças terroristas", aponta o texto. "Porém, ele destacou a postura cautelosa de seu País acerca de uma abordagem de mudança climática a partir do ângulo estrito da segurança."
Sem vínculo direto com a Amazônia
O Estadão Verifica perguntou a dois especialistas se a proposta estava associada de alguma forma com a política ambiental da Amazônia, ainda que não haja citação a respeito da floresta tropical no documento vetado pela Rússia.
Roberto Luiz Silva, professor de direito internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), disse que as resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança da ONU são bastante indicativas e que o assunto tratava especificamente de riscos de segurança relacionados a movimentos terroristas, dentro de um contexto de escassez de recursos naturais, principalmente na região central da África.
"A base daquela tentativa de aprovação era identificar se as pessoas dos países afetados estavam se tornando vulneráveis ao recrutamento de terroristas", explica Silva. Dessa forma, a agência da ONU poderia avaliar a necessidade de intervenção para conter a expansão desses grupos armados. "Não vejo nenhuma relação (com a Amazônia). São questões distintas."
Nesse sentido, a principal discussão era se o Conselho de Segurança deveria abrigar esse tipo de debate. Silva lembra, por exemplo, que as decisões da agência são "eminentemente políticas" e não precisam, necessariamente, passar por análises técnicas. As discussões na UNFCCC, por outro lado, costumam ser apoiadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), grupo independente que produz relatórios baseados em dados e evidências científicas.
Além disso, o Conselho de Segurança tem a capacidade de intervir para a manutenção da segurança e da paz, inclusive de maneira preventiva, o que desperta preocupações em lideranças de alguns países sobre a ampliação de seus critérios de atuação. A Rússia inclusive criticou "abusos grosseiros" do Ocidente sobre uma resolução que autorizava o uso da força no conflito da Líbia, em 2011. Na época, ela deu aval ao procedimento ao se abster da votação e, desde então, o uso do poder de veto se tornou mais frequente.
Mariana Baccarini, professora de relações internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), afirmou ao Verifica que existem países, entre eles o Brasil, que se mostram preocupados com a questão da soberania sobre os seus territórios. A proposta de atrelar o debate sobre mudança climática a questões de paz e segurança internacional no Conselho de Segurança da ONU -- ou seja, securitizar o assunto -- assim desperta reações no sentido de prevenir algum tipo de intervenção futura.
Do ponto de vista prático, no entanto, a proposta não previa "internacionalização" da Amazônia ou qualquer operação na região protagonizada por outros países membros da ONU. Baccarini explica que algo nesse sentido dependeria da aprovação de uma outra pauta específica no Conselho de Segurança, e o uso da força em uma eventual mobilização estrangeira por terra seria considerada uma ação radical.
A professora da UFPB aponta ainda inconsistências na tese de que o Brasil teria adotado uma posição de "neutralidade" na guerra da Rússia contra a Ucrânia como uma espécie de retribuição ao veto em dezembro. Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter feito declarações nesse sentido, a diplomacia brasileira na ONU condenou o ataque russo em outra proposta de resolução no mesmo Conselho de Segurança, em 25 de fevereiro. O Brasil também apoiou uma resolução da Assembleia-Geral da ONU, em 2 de março, que reprovou a agressão contra a Ucrânia.
Baccarini afirma que há um descompasso entre as declarações de Bolsonaro e o comportamento do Itamaraty. Ela classifica a situação como um "contrassenso", pois a diplomacia brasileira na ONU representa, para a comunidade internacional, o posicionamento do Estado brasileiro e do governo em relação ao conflito. A aproximação de Bolsonaro com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a seu ver, é mais uma decisão "pessoal" e uma tentativa do presidente brasileiro de fazer aliados ao mesmo tempo em que governantes dos principais países da Europa e dos Estados Unidos "viraram as costas" para o seu mandato.
Outro lado
A mensagem analisada pelo Estadão Verifica foi encaminhada como sugestão por leitores do blog no WhatsApp (11) 97683-7490. Ela trazia trecho de um texto escrito pelo comentarista da Jovem Pan Jorge Serrão e terminava com a pergunta "Você sabia dessa votação na ONU sobre a internacionalização da Amazônia, que a Rússia vetou a favor do Brasil?". O blog tentou contato com o jornalista por e-mail na sexta-feira, 13 de março, mas não houve resposta até a publicação desta checagem.