Posts conspiratórios citam Plano Marshall e dizem que tragédia no RS foi provocada por globalistas


Negacionistas ignoram questões climáticas e atribuem catástrofe no sul do País a uma espécie de plano para ‘resetar’ a sociedade

Por Clarissa Pacheco

Era julho de 1947, a Segunda Guerra Mundial havia acabado, mas países europeus estavam devastados pelo conflito. Num discurso na Universidade de Harvard, o secretário de Estado dos Estados Unidos, George C. Marshall, apelou para um plano de reconstrução que pudesse salvar os países da Europa Ocidental da “ameaça comunista”, já que estavam vulneráveis. O apelo virou lei e, em 1948, os EUA colocaram em prática o Plano Marshall, que injetou, em valores da época, US$ 12 bilhões para a reconstrução da economia de países como Inglaterra, Itália e França.

Setenta e seis anos depois, no último dia 4 de maio, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), lembrou do Plano Marshall e fez uma analogia entre o programa de reconstrução norte-americano e a situação do Estado brasileiro devastado pela catástrofe. Para Leite, o Rio Grande do Sul vive um cenário de guerra e, por isso, vai exigir medidas de pós-guerra.

“A gente vai precisar de medidas absurdamente excepcionais, o Rio Grande do Sul vai precisar de uma espécie de um Plano Marshall de reconstrução, daquele da reconstrução da Europa do pós-guerra. A gente vai precisar de um plano de excepcionalidade em processos, em recursos, em medidas absolutamente extraordinárias porque, como eu insisto, quem já foi vítima da tragédia não pode ser vítima depois da desassistência”, declarou.

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No dia seguinte, o governador disse em entrevista coletiva que o plano do Rio Grande do Sul teria outro nome, algo como “Plano de Reconstrução Brasileiro”, e o que o Plano Marshall foi citado apenas para que as pessoas tivessem uma dimensão do tamanho do problema gaúcho.

Área devastada pela enchente em Cruzeiro do Sul, RS. Foto: Nelson ALMEIDA / AFP Foto: Nelson Almeida/NELSON ALMEIDA

Nas redes sociais, contudo, o Plano Marshall foi utilizado para dar fôlego a conteúdos conspiracionistas que alegam, sem qualquer fundamento, que a catástrofe climática no Rio Grande do Sul foi planejada a fim de “resetar” a sociedade e construí-la a partir de novas bases, incluindo os princípios da Agenda 2030 da ONU, do Fórum Econômico Mundial e dos globalistas. O Rio Grande do Sul estaria “na mira” da calamidade por ser um local que “combate tradicionalmente os ideais da esquerda”.

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Na realidade, o que afetou o Estado foram três fenômenos meteorológicos: um cavado (região de pressão atmosférica baixa), um corredor de umidade vindo da Amazônia e uma onda de calor na região central do País. “A combinação desses três eventos é por si só rara, gerando um ‘bloqueio’ sobre o RS, onde as chuvas persistiram por vários dias, resultando em acumulados extremamente elevados”, explicou o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna.

Ignorando completamente os efeitos das mudanças climáticas e de fenômenos como El Niño e La Niña, normalmente fortes no Rio Grande do Sul, vídeos virais atribuem a tragédia a uma conspiração da esquerda e até já compartilham uma série de medidas que estariam prontas para serem tomadas a curto prazo.

As supostas medidas afetariam proprietários de terras, com a desapropriação de terrenos para recuperação ambiental, restrições ao uso da terra, criação de zonas de exclusão, imposição de um “lockdown climático”, com restrições à mobilidade urbana e realocação em massa de pessoas. Ao Verifica, o governo do Rio Grande do Sul disse que nenhuma dessas medidas foi apresentada por qualquer representante da gestão estadual.

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Negacionistas alegam que catástrofe foi planejada para ‘resetar’ a sociedade

O negacionismo científico aparece entre os argumentos em diversos vídeos, imagens e correntes que circulam pelo WhatsApp. Os autores desta tese alegam, por exemplo, que nenhum radar meteorológico no mundo foi capaz de perceber a formação de tamanho volume de água no Rio Grande do Sul, o que é absolutamente falso.

O Rio Grande do Sul, como explicou o Estadão, é localizado em uma região de encontro entre sistemas polares e tropicais, ou seja, entre ar quente e frio, o que facilita a ocorrência de eventos climáticos. Além disso, a geografia gaúcha, embora não tenha efeito direto sobre a chuva, impacta nos efeitos dela, como deslizamentos e inundações. “A configuração das bacias hidrográficas e a presença de grandes cidades, como Porto Alegre, em áreas suscetíveis a inundações em eventos de tal magnitude, incorrem na catástrofe, mas não na causa dela”, afirmou Scortegagna.

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Há alguns anos, especialistas vinham alertando que outra enchente como a cheia histórica de 1941 poderia se repetir no Rio Grande do Sul. As previsões sazonais (de meses) e subsazonais (de até 45 dias) são bons indicativos qualitativos das tendências – ou seja, se iria ou não chover acima da média. No entanto, a quantidade de chuva só poderia ser prevista num curto a médio prazo.

Isso porque, em eventos extremos, a magnitude é definida com no máximo 15 dias de antecedência, explica Arlan Scortegagna. E a previsão, de fato, aconteceu, segundo dados do Global Flood Awareness System (GloFAS), operado pelo Centro Europeu para Previsões de Tempo de Médio Prazo (ECMWF), que hoje possui o sistema de previsão hidrometeorológica mais preciso dentre as instituições científicas do mundo que atuam nessa área.

“Observando os resultados do GloFAS, em 15 de abril de 2024, já era possível antecipar um evento de grandes proporções que viria a ocorrer na região Sul do Brasil e no Uruguai”, disse Scortgagna.

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Em 15 de abril, mapa já mostrava probabilidade de evento climático na região. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Nas previsões da semana seguinte, no dia 22 de abril de 2024, o cenário futuro de evento extremo se manteve, e essa persistência da previsão de catástrofe entre as diferentes rodadas do modelo é um dos principais atributos que permitia reforçar a confiança nas previsões. Note-se ainda que, na previsão desse dia, a magnitude do evento previsto se intensificou sobre o Rio Grande do Sul”, apontou o especialista.

Em 22 de abril, mapa já apontava previsão de catástrofe no Rio Grande do Sul. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS
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“Já no dia 29 de abril de 2024, apenas alguns dias antes do evento, as previsões eram feitas no período de curto prazo, em que possuem maior assertividade, e era bastante fácil de antecipar o que estava por vir, permitindo, inclusive, a geração de alertas hidrometeorológicos”, completou o engenheiro hidrólogo.

Mapa da plataforma GloFAS de 29 de abril de 2024 permitia antecipar o que estava por vir. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

As chuvas no Rio Grande do Sul começaram no dia 27 de abril, mas a enchente veio nos dias seguintes. No dia 30, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) emitiu um alerta de risco hidrológico alto para “inundações bruscas e alagamentos em áreas rebaixadas e com drenagem deficiente para o Rio Grande do Sul”.

Em entrevista à Rádio Nacional, o professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leandro Torres Di Gregório disse que esta cheia, a maior dos últimos 80 anos no Estado, não pode ser considerada uma surpresa. “Isso aí é um cenário conhecido dos órgãos de monitoramento de alerta da Defesa Civil. Então, temos que planejar para fechar todas essas lacunas, todas essas brechas, que ainda dão margem a acontecer em falhas, morrerem pessoas”, declarou.

O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirmou ao Estadão que é possível creditar a tragédia no Rio Grande do Sul ao agravamento da crise climática. As declarações dele e de outros estudiosos podem ser vistas nesta checagem do Verifica sobre negacionismo climático em meio à tragédia no Rio Grande do Sul.

Publicações empilham afirmações já desmentidas

Não é apenas de negacionismo científico que vivem os conspiracionistas da catástrofe. Pelo menos dois vídeos que viralizaram no Instagram e no WhatsApp recorrem, juntos, a mais de uma dezena de alegações que já foram desmentidas ao longo dos últimos dias. Eles falam de centenas de corpos boiando, de exigência de nota fiscal para caminhões com doações, veículos barrados nas estradas, e até jet-skis escondidos para não serem usados nos salvamentos.

Leitores do Verifica podem pedir a checagem de conteúdos pelo WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

Veja o que se sabe sobre as alegações:

  • Nem o presidente Lula, nem o governador Eduardo Leite tomaram qualquer medida rápida e emergencial com relação à chuva

Não é bem assim. No dia 30 de abril, quando aumentou a chuva e foram emitidos os alertas de risco alto para enchentes e inundações, o governo do Rio Grande do Sul acionou um gabinete de crise, enquanto a Defesa Civil passou a alertar as pessoas sobre os riscos. Também no dia 30, a Força Aérea Brasileira (FAB) passou a atuar no resgate de pessoas ilhadas e em locais de risco. As ações começaram à noite, pela cidade de Santa Maria.

No entanto, como mostrou o Estadão, o gasto com prevenção de desastres caiu 78,4% no Brasil em uma década, enquanto os desastres, em si, custaram R$ 105 bilhões ao País em um ano. O podcast Notícia no Seu Tempo, do Estadão, mostra que o governo do Rio Grande do Sul prioriza resgates, em vez de prevenção.

Na capital, Porto Alegre, a Lei Orçamentária de 2023 não previu qualquer investimento no item “Melhoria no Sistema de Proteção contra Cheias”. A informação foi publicada pelo UOL e confirmada pelo Verifica.

  • A Polícia do Rio Grande do Sul impediu que as pessoas fizessem resgates com barcos e jet skis

Como já mostrou o Verifica, não há ações de inspeção de condutores de barcos ou veículos que queiram ajudar no socorro às vítimas, segundo a Brigada Militar e a Polícia Rodoviária do Rio Grande do Sul. O Exército esclareceu que vídeos compartilhados nas redes mostram um trabalho de organização de embarcações para evitar acidentes ou o comprometimento do resgate de vítimas. Civis não foram impedidos de fazer resgates, nem foi exigida habilitação marítima para jet skis e similares, ao contrário do que afirma um dos vídeos virais em outro trecho.

  • Motoristas de caminhão foram impedidos de entregar doações para as vítimas. Caminhão oficial do governo de Santa Catarina foi impedido de passar

É enganoso. Caminhões com excesso de peso foram inspecionados, mas não foram retidos, como mostrou o Verifica. Um comboio liderado pela Defesa Civil de Florianópolis (SC) chegou a ser notificado no posto de pesagem de Araranguá (SC) por excesso de peso, mas o veículo não foi impedido de seguir viagem e a ANTT informou que as multas em casos assim serão retiradas.

  • O Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul escondeu 27 jet skis novos

É falso. Em um vídeo viral, um militar da reserva disse que 40 jet skis do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul estavam guardados e não eram usados nos resgates para não sofrer danos. O governo do Rio Grande do Sul negou, disse que o militar da reserva não tem qualquer ligação com as ações de planejamento do Corpo de Bombeiros e “não há qualquer restrição para a utilização das motos aquáticas em razão de possível dano”. O Verifica mostrou que as motos aquáticas que às quais o homem no vídeo se referia estavam indo para o Sul do Estado, para substituir outras que tinham apresentado dano.

  • Existem centenas de corpos de crianças mortas boiando

Falso. Há bastante desinformação sobre supostos corpos boiando nas cidades atingidas pela enchente. O Estadão Verifica já desmentiu algumas destas publicações: São falsos posts que falam em “centenas de corpos boiando” em enchente em Canoas; é falso que a água para consumo em Porto Alegre possa ser contaminada por corpos no Guaíba; foto de corpo flutuando é antiga e foi registrada no Rio de Janeiro, sem ligação com chuvas no Sul; é falso que foto mostre centenas de corpos no RS após água baixar; é falso áudio em que homem relata ter resgatado corpo de bebê em Canoas (RS).

  • As bombas de drenagem de Porto Alegre foram desligadas alguns dias antes do começo das chuvas

É enganoso. Porto Alegre possui um sistema de 23 bombas de drenagem que são responsáveis por drenar água e devolvê-la ao rio. No entanto, quando a enchente veio, apenas quatro funcionaram. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) da capital gaúcha informou que 19 bombas foram desligadas devido à inundação e por causa do risco de choque elétrico. Ou seja, o desligamento aconteceu depois da chuva, e não antes dela. No dia 8 de maio, só cinco estavam operando, como mostrou o Estadão – uma das que estavam desligadas voltou a funcionar com o uso de um gerador.

Em 2020, a Prefeitura de Porto Alegre instalava motores para automatização das casas de bombas; na cheia de 2024, só quatro bombas funcionaram efetivamente. Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA
  • O que aconteceu no Rio Grande do Sul é muito parecido com o que acontece quando tempestades são criadas repentinamente, de maneira artificial, por armas militares de modificação magnética do clima, como o sistema Haarp

É enganoso. O Projeto Comprova já mostrou que o sistema Haarp não manipula o clima. A checagem, também publicada pelo Verifica, aponta que não há nenhuma evidência de que o clima possa ser manipulado pelo Haarp, sigla para “High-frequency Active Auroral Research Program”, ou Programa de Pesquisa Ativa de Alta Frequência de Auroras, em português. O projeto foi criado pela Universidade de Alaska Fairbanks nos anos 1990 para estudar ondas na ionosfera – camada atmosférica cuja altura pode variar de 50 a mil quilômetros acima da superfície terrestre. O sistema não interage com a troposfera – camada responsável por produzir o clima terrestre e, portanto, não pode controlar o clima.

Além disso, o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna explica que o homem não possui o controle do clima a ponto de gerar eventos da magnitude do que está ocorrendo no Rio Grande do Sul. “A capacidade humana atualmente é limitada a iniciativas muito restritas, como a ‘semeadura de nuvens’, que consiste na introdução de substâncias na atmosfera por meio de aeronaves para promover geração de núcleos de condensação e, consequentemente, o desenvolvimento de nuvens e chuva”. Segundo ele, isso foi usado em Curitiba (PR) na seca de 2020/2021, mas os resultados foram “controversos e difíceis de validar”.

  • Dia 4 de maio, aconteceu algo idêntico ao que aconteceu no Rio Grande do Sul, em Guangdong, na China. E no dia seguinte, no estado do Texas, nos Estados Unidos. Estes são locais habitados por pessoas que são contra o socialismo e que não apoiam os ideais da esquerda

Os dois locais sofrem com eventos climáticos extremos, não com “castigos” por serem contra a esquerda. No dia 23 de abril, chuvas torrenciais mataram quatro pessoas e deixaram 100 mil desabrigados na China. Em 2 de maio, o desabamento de uma estrada após as chuvas matou 48 pessoas na província de Guangdong.

O estado do Texas, nos Estados Unidos, vem sendo afetado por uma série de eventos climáticos desde o final de abril, e o fato de a região ser cortada por diversos rios deixa o local vulnerável, já que o solo está encharcado. O Serviço Meteorológico Nacional do país emitiu alertas de chuva e trovoadas no leste dos Estados Unidos, incluindo os estados do Texas e da Flórida devido à atuação de um sistema de baixa pressão que avança pelo Tennessee. Há possibilidade de chuvas torrenciais pelo menos até a manhã desta quinta-feira, 16.

  • Não querem liberar caminhões de doações, estão exigindo nota fiscal

Enganoso. Várias alegações sobre isso se espalharam nos últimos dias, mas, diferentemente do que afirmam os vídeos virais, não há exigência de imposto ou nota fiscal para caminhões com doações para o Rio Grande do Sul. Um vídeo gravado em abril deste ano, com mercadorias sem nota compradas na região do Brás, comércio popular de São Paulo, circulou fora de contexto alegando que os itens eram doações, o que não é verdade.

  • O Exército não tem coragem de entrar na água

É falso. Militares do Exército fazem parte da Operação Taquari 2, liderada pelas Forças Armadas desde o dia 30 de abril. Dentre as principais ações dos militares da força terrestre está o resgate de ribeirinhos, como mostram estas imagens. Além disso, o Exército atua no apoio médico, na desobstrução de vias e na reconstrução dos acessos no Rio Grande do Rio a partir de trabalhos de engenharia.

Militares do Exército auxiliam no resgate de pessoas ilhadas no Rio Grande do Sul. Foto: Exército Brasileiro Foto: Exército Brasileiro

Era julho de 1947, a Segunda Guerra Mundial havia acabado, mas países europeus estavam devastados pelo conflito. Num discurso na Universidade de Harvard, o secretário de Estado dos Estados Unidos, George C. Marshall, apelou para um plano de reconstrução que pudesse salvar os países da Europa Ocidental da “ameaça comunista”, já que estavam vulneráveis. O apelo virou lei e, em 1948, os EUA colocaram em prática o Plano Marshall, que injetou, em valores da época, US$ 12 bilhões para a reconstrução da economia de países como Inglaterra, Itália e França.

Setenta e seis anos depois, no último dia 4 de maio, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), lembrou do Plano Marshall e fez uma analogia entre o programa de reconstrução norte-americano e a situação do Estado brasileiro devastado pela catástrofe. Para Leite, o Rio Grande do Sul vive um cenário de guerra e, por isso, vai exigir medidas de pós-guerra.

“A gente vai precisar de medidas absurdamente excepcionais, o Rio Grande do Sul vai precisar de uma espécie de um Plano Marshall de reconstrução, daquele da reconstrução da Europa do pós-guerra. A gente vai precisar de um plano de excepcionalidade em processos, em recursos, em medidas absolutamente extraordinárias porque, como eu insisto, quem já foi vítima da tragédia não pode ser vítima depois da desassistência”, declarou.

No dia seguinte, o governador disse em entrevista coletiva que o plano do Rio Grande do Sul teria outro nome, algo como “Plano de Reconstrução Brasileiro”, e o que o Plano Marshall foi citado apenas para que as pessoas tivessem uma dimensão do tamanho do problema gaúcho.

Área devastada pela enchente em Cruzeiro do Sul, RS. Foto: Nelson ALMEIDA / AFP Foto: Nelson Almeida/NELSON ALMEIDA

Nas redes sociais, contudo, o Plano Marshall foi utilizado para dar fôlego a conteúdos conspiracionistas que alegam, sem qualquer fundamento, que a catástrofe climática no Rio Grande do Sul foi planejada a fim de “resetar” a sociedade e construí-la a partir de novas bases, incluindo os princípios da Agenda 2030 da ONU, do Fórum Econômico Mundial e dos globalistas. O Rio Grande do Sul estaria “na mira” da calamidade por ser um local que “combate tradicionalmente os ideais da esquerda”.

Na realidade, o que afetou o Estado foram três fenômenos meteorológicos: um cavado (região de pressão atmosférica baixa), um corredor de umidade vindo da Amazônia e uma onda de calor na região central do País. “A combinação desses três eventos é por si só rara, gerando um ‘bloqueio’ sobre o RS, onde as chuvas persistiram por vários dias, resultando em acumulados extremamente elevados”, explicou o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna.

Ignorando completamente os efeitos das mudanças climáticas e de fenômenos como El Niño e La Niña, normalmente fortes no Rio Grande do Sul, vídeos virais atribuem a tragédia a uma conspiração da esquerda e até já compartilham uma série de medidas que estariam prontas para serem tomadas a curto prazo.

As supostas medidas afetariam proprietários de terras, com a desapropriação de terrenos para recuperação ambiental, restrições ao uso da terra, criação de zonas de exclusão, imposição de um “lockdown climático”, com restrições à mobilidade urbana e realocação em massa de pessoas. Ao Verifica, o governo do Rio Grande do Sul disse que nenhuma dessas medidas foi apresentada por qualquer representante da gestão estadual.

Negacionistas alegam que catástrofe foi planejada para ‘resetar’ a sociedade

O negacionismo científico aparece entre os argumentos em diversos vídeos, imagens e correntes que circulam pelo WhatsApp. Os autores desta tese alegam, por exemplo, que nenhum radar meteorológico no mundo foi capaz de perceber a formação de tamanho volume de água no Rio Grande do Sul, o que é absolutamente falso.

O Rio Grande do Sul, como explicou o Estadão, é localizado em uma região de encontro entre sistemas polares e tropicais, ou seja, entre ar quente e frio, o que facilita a ocorrência de eventos climáticos. Além disso, a geografia gaúcha, embora não tenha efeito direto sobre a chuva, impacta nos efeitos dela, como deslizamentos e inundações. “A configuração das bacias hidrográficas e a presença de grandes cidades, como Porto Alegre, em áreas suscetíveis a inundações em eventos de tal magnitude, incorrem na catástrofe, mas não na causa dela”, afirmou Scortegagna.

Há alguns anos, especialistas vinham alertando que outra enchente como a cheia histórica de 1941 poderia se repetir no Rio Grande do Sul. As previsões sazonais (de meses) e subsazonais (de até 45 dias) são bons indicativos qualitativos das tendências – ou seja, se iria ou não chover acima da média. No entanto, a quantidade de chuva só poderia ser prevista num curto a médio prazo.

Isso porque, em eventos extremos, a magnitude é definida com no máximo 15 dias de antecedência, explica Arlan Scortegagna. E a previsão, de fato, aconteceu, segundo dados do Global Flood Awareness System (GloFAS), operado pelo Centro Europeu para Previsões de Tempo de Médio Prazo (ECMWF), que hoje possui o sistema de previsão hidrometeorológica mais preciso dentre as instituições científicas do mundo que atuam nessa área.

“Observando os resultados do GloFAS, em 15 de abril de 2024, já era possível antecipar um evento de grandes proporções que viria a ocorrer na região Sul do Brasil e no Uruguai”, disse Scortgagna.

Em 15 de abril, mapa já mostrava probabilidade de evento climático na região. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Nas previsões da semana seguinte, no dia 22 de abril de 2024, o cenário futuro de evento extremo se manteve, e essa persistência da previsão de catástrofe entre as diferentes rodadas do modelo é um dos principais atributos que permitia reforçar a confiança nas previsões. Note-se ainda que, na previsão desse dia, a magnitude do evento previsto se intensificou sobre o Rio Grande do Sul”, apontou o especialista.

Em 22 de abril, mapa já apontava previsão de catástrofe no Rio Grande do Sul. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Já no dia 29 de abril de 2024, apenas alguns dias antes do evento, as previsões eram feitas no período de curto prazo, em que possuem maior assertividade, e era bastante fácil de antecipar o que estava por vir, permitindo, inclusive, a geração de alertas hidrometeorológicos”, completou o engenheiro hidrólogo.

Mapa da plataforma GloFAS de 29 de abril de 2024 permitia antecipar o que estava por vir. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

As chuvas no Rio Grande do Sul começaram no dia 27 de abril, mas a enchente veio nos dias seguintes. No dia 30, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) emitiu um alerta de risco hidrológico alto para “inundações bruscas e alagamentos em áreas rebaixadas e com drenagem deficiente para o Rio Grande do Sul”.

Em entrevista à Rádio Nacional, o professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leandro Torres Di Gregório disse que esta cheia, a maior dos últimos 80 anos no Estado, não pode ser considerada uma surpresa. “Isso aí é um cenário conhecido dos órgãos de monitoramento de alerta da Defesa Civil. Então, temos que planejar para fechar todas essas lacunas, todas essas brechas, que ainda dão margem a acontecer em falhas, morrerem pessoas”, declarou.

O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirmou ao Estadão que é possível creditar a tragédia no Rio Grande do Sul ao agravamento da crise climática. As declarações dele e de outros estudiosos podem ser vistas nesta checagem do Verifica sobre negacionismo climático em meio à tragédia no Rio Grande do Sul.

Publicações empilham afirmações já desmentidas

Não é apenas de negacionismo científico que vivem os conspiracionistas da catástrofe. Pelo menos dois vídeos que viralizaram no Instagram e no WhatsApp recorrem, juntos, a mais de uma dezena de alegações que já foram desmentidas ao longo dos últimos dias. Eles falam de centenas de corpos boiando, de exigência de nota fiscal para caminhões com doações, veículos barrados nas estradas, e até jet-skis escondidos para não serem usados nos salvamentos.

Leitores do Verifica podem pedir a checagem de conteúdos pelo WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

Veja o que se sabe sobre as alegações:

  • Nem o presidente Lula, nem o governador Eduardo Leite tomaram qualquer medida rápida e emergencial com relação à chuva

Não é bem assim. No dia 30 de abril, quando aumentou a chuva e foram emitidos os alertas de risco alto para enchentes e inundações, o governo do Rio Grande do Sul acionou um gabinete de crise, enquanto a Defesa Civil passou a alertar as pessoas sobre os riscos. Também no dia 30, a Força Aérea Brasileira (FAB) passou a atuar no resgate de pessoas ilhadas e em locais de risco. As ações começaram à noite, pela cidade de Santa Maria.

No entanto, como mostrou o Estadão, o gasto com prevenção de desastres caiu 78,4% no Brasil em uma década, enquanto os desastres, em si, custaram R$ 105 bilhões ao País em um ano. O podcast Notícia no Seu Tempo, do Estadão, mostra que o governo do Rio Grande do Sul prioriza resgates, em vez de prevenção.

Na capital, Porto Alegre, a Lei Orçamentária de 2023 não previu qualquer investimento no item “Melhoria no Sistema de Proteção contra Cheias”. A informação foi publicada pelo UOL e confirmada pelo Verifica.

  • A Polícia do Rio Grande do Sul impediu que as pessoas fizessem resgates com barcos e jet skis

Como já mostrou o Verifica, não há ações de inspeção de condutores de barcos ou veículos que queiram ajudar no socorro às vítimas, segundo a Brigada Militar e a Polícia Rodoviária do Rio Grande do Sul. O Exército esclareceu que vídeos compartilhados nas redes mostram um trabalho de organização de embarcações para evitar acidentes ou o comprometimento do resgate de vítimas. Civis não foram impedidos de fazer resgates, nem foi exigida habilitação marítima para jet skis e similares, ao contrário do que afirma um dos vídeos virais em outro trecho.

  • Motoristas de caminhão foram impedidos de entregar doações para as vítimas. Caminhão oficial do governo de Santa Catarina foi impedido de passar

É enganoso. Caminhões com excesso de peso foram inspecionados, mas não foram retidos, como mostrou o Verifica. Um comboio liderado pela Defesa Civil de Florianópolis (SC) chegou a ser notificado no posto de pesagem de Araranguá (SC) por excesso de peso, mas o veículo não foi impedido de seguir viagem e a ANTT informou que as multas em casos assim serão retiradas.

  • O Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul escondeu 27 jet skis novos

É falso. Em um vídeo viral, um militar da reserva disse que 40 jet skis do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul estavam guardados e não eram usados nos resgates para não sofrer danos. O governo do Rio Grande do Sul negou, disse que o militar da reserva não tem qualquer ligação com as ações de planejamento do Corpo de Bombeiros e “não há qualquer restrição para a utilização das motos aquáticas em razão de possível dano”. O Verifica mostrou que as motos aquáticas que às quais o homem no vídeo se referia estavam indo para o Sul do Estado, para substituir outras que tinham apresentado dano.

  • Existem centenas de corpos de crianças mortas boiando

Falso. Há bastante desinformação sobre supostos corpos boiando nas cidades atingidas pela enchente. O Estadão Verifica já desmentiu algumas destas publicações: São falsos posts que falam em “centenas de corpos boiando” em enchente em Canoas; é falso que a água para consumo em Porto Alegre possa ser contaminada por corpos no Guaíba; foto de corpo flutuando é antiga e foi registrada no Rio de Janeiro, sem ligação com chuvas no Sul; é falso que foto mostre centenas de corpos no RS após água baixar; é falso áudio em que homem relata ter resgatado corpo de bebê em Canoas (RS).

  • As bombas de drenagem de Porto Alegre foram desligadas alguns dias antes do começo das chuvas

É enganoso. Porto Alegre possui um sistema de 23 bombas de drenagem que são responsáveis por drenar água e devolvê-la ao rio. No entanto, quando a enchente veio, apenas quatro funcionaram. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) da capital gaúcha informou que 19 bombas foram desligadas devido à inundação e por causa do risco de choque elétrico. Ou seja, o desligamento aconteceu depois da chuva, e não antes dela. No dia 8 de maio, só cinco estavam operando, como mostrou o Estadão – uma das que estavam desligadas voltou a funcionar com o uso de um gerador.

Em 2020, a Prefeitura de Porto Alegre instalava motores para automatização das casas de bombas; na cheia de 2024, só quatro bombas funcionaram efetivamente. Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA
  • O que aconteceu no Rio Grande do Sul é muito parecido com o que acontece quando tempestades são criadas repentinamente, de maneira artificial, por armas militares de modificação magnética do clima, como o sistema Haarp

É enganoso. O Projeto Comprova já mostrou que o sistema Haarp não manipula o clima. A checagem, também publicada pelo Verifica, aponta que não há nenhuma evidência de que o clima possa ser manipulado pelo Haarp, sigla para “High-frequency Active Auroral Research Program”, ou Programa de Pesquisa Ativa de Alta Frequência de Auroras, em português. O projeto foi criado pela Universidade de Alaska Fairbanks nos anos 1990 para estudar ondas na ionosfera – camada atmosférica cuja altura pode variar de 50 a mil quilômetros acima da superfície terrestre. O sistema não interage com a troposfera – camada responsável por produzir o clima terrestre e, portanto, não pode controlar o clima.

Além disso, o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna explica que o homem não possui o controle do clima a ponto de gerar eventos da magnitude do que está ocorrendo no Rio Grande do Sul. “A capacidade humana atualmente é limitada a iniciativas muito restritas, como a ‘semeadura de nuvens’, que consiste na introdução de substâncias na atmosfera por meio de aeronaves para promover geração de núcleos de condensação e, consequentemente, o desenvolvimento de nuvens e chuva”. Segundo ele, isso foi usado em Curitiba (PR) na seca de 2020/2021, mas os resultados foram “controversos e difíceis de validar”.

  • Dia 4 de maio, aconteceu algo idêntico ao que aconteceu no Rio Grande do Sul, em Guangdong, na China. E no dia seguinte, no estado do Texas, nos Estados Unidos. Estes são locais habitados por pessoas que são contra o socialismo e que não apoiam os ideais da esquerda

Os dois locais sofrem com eventos climáticos extremos, não com “castigos” por serem contra a esquerda. No dia 23 de abril, chuvas torrenciais mataram quatro pessoas e deixaram 100 mil desabrigados na China. Em 2 de maio, o desabamento de uma estrada após as chuvas matou 48 pessoas na província de Guangdong.

O estado do Texas, nos Estados Unidos, vem sendo afetado por uma série de eventos climáticos desde o final de abril, e o fato de a região ser cortada por diversos rios deixa o local vulnerável, já que o solo está encharcado. O Serviço Meteorológico Nacional do país emitiu alertas de chuva e trovoadas no leste dos Estados Unidos, incluindo os estados do Texas e da Flórida devido à atuação de um sistema de baixa pressão que avança pelo Tennessee. Há possibilidade de chuvas torrenciais pelo menos até a manhã desta quinta-feira, 16.

  • Não querem liberar caminhões de doações, estão exigindo nota fiscal

Enganoso. Várias alegações sobre isso se espalharam nos últimos dias, mas, diferentemente do que afirmam os vídeos virais, não há exigência de imposto ou nota fiscal para caminhões com doações para o Rio Grande do Sul. Um vídeo gravado em abril deste ano, com mercadorias sem nota compradas na região do Brás, comércio popular de São Paulo, circulou fora de contexto alegando que os itens eram doações, o que não é verdade.

  • O Exército não tem coragem de entrar na água

É falso. Militares do Exército fazem parte da Operação Taquari 2, liderada pelas Forças Armadas desde o dia 30 de abril. Dentre as principais ações dos militares da força terrestre está o resgate de ribeirinhos, como mostram estas imagens. Além disso, o Exército atua no apoio médico, na desobstrução de vias e na reconstrução dos acessos no Rio Grande do Rio a partir de trabalhos de engenharia.

Militares do Exército auxiliam no resgate de pessoas ilhadas no Rio Grande do Sul. Foto: Exército Brasileiro Foto: Exército Brasileiro

Era julho de 1947, a Segunda Guerra Mundial havia acabado, mas países europeus estavam devastados pelo conflito. Num discurso na Universidade de Harvard, o secretário de Estado dos Estados Unidos, George C. Marshall, apelou para um plano de reconstrução que pudesse salvar os países da Europa Ocidental da “ameaça comunista”, já que estavam vulneráveis. O apelo virou lei e, em 1948, os EUA colocaram em prática o Plano Marshall, que injetou, em valores da época, US$ 12 bilhões para a reconstrução da economia de países como Inglaterra, Itália e França.

Setenta e seis anos depois, no último dia 4 de maio, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), lembrou do Plano Marshall e fez uma analogia entre o programa de reconstrução norte-americano e a situação do Estado brasileiro devastado pela catástrofe. Para Leite, o Rio Grande do Sul vive um cenário de guerra e, por isso, vai exigir medidas de pós-guerra.

“A gente vai precisar de medidas absurdamente excepcionais, o Rio Grande do Sul vai precisar de uma espécie de um Plano Marshall de reconstrução, daquele da reconstrução da Europa do pós-guerra. A gente vai precisar de um plano de excepcionalidade em processos, em recursos, em medidas absolutamente extraordinárias porque, como eu insisto, quem já foi vítima da tragédia não pode ser vítima depois da desassistência”, declarou.

No dia seguinte, o governador disse em entrevista coletiva que o plano do Rio Grande do Sul teria outro nome, algo como “Plano de Reconstrução Brasileiro”, e o que o Plano Marshall foi citado apenas para que as pessoas tivessem uma dimensão do tamanho do problema gaúcho.

Área devastada pela enchente em Cruzeiro do Sul, RS. Foto: Nelson ALMEIDA / AFP Foto: Nelson Almeida/NELSON ALMEIDA

Nas redes sociais, contudo, o Plano Marshall foi utilizado para dar fôlego a conteúdos conspiracionistas que alegam, sem qualquer fundamento, que a catástrofe climática no Rio Grande do Sul foi planejada a fim de “resetar” a sociedade e construí-la a partir de novas bases, incluindo os princípios da Agenda 2030 da ONU, do Fórum Econômico Mundial e dos globalistas. O Rio Grande do Sul estaria “na mira” da calamidade por ser um local que “combate tradicionalmente os ideais da esquerda”.

Na realidade, o que afetou o Estado foram três fenômenos meteorológicos: um cavado (região de pressão atmosférica baixa), um corredor de umidade vindo da Amazônia e uma onda de calor na região central do País. “A combinação desses três eventos é por si só rara, gerando um ‘bloqueio’ sobre o RS, onde as chuvas persistiram por vários dias, resultando em acumulados extremamente elevados”, explicou o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna.

Ignorando completamente os efeitos das mudanças climáticas e de fenômenos como El Niño e La Niña, normalmente fortes no Rio Grande do Sul, vídeos virais atribuem a tragédia a uma conspiração da esquerda e até já compartilham uma série de medidas que estariam prontas para serem tomadas a curto prazo.

As supostas medidas afetariam proprietários de terras, com a desapropriação de terrenos para recuperação ambiental, restrições ao uso da terra, criação de zonas de exclusão, imposição de um “lockdown climático”, com restrições à mobilidade urbana e realocação em massa de pessoas. Ao Verifica, o governo do Rio Grande do Sul disse que nenhuma dessas medidas foi apresentada por qualquer representante da gestão estadual.

Negacionistas alegam que catástrofe foi planejada para ‘resetar’ a sociedade

O negacionismo científico aparece entre os argumentos em diversos vídeos, imagens e correntes que circulam pelo WhatsApp. Os autores desta tese alegam, por exemplo, que nenhum radar meteorológico no mundo foi capaz de perceber a formação de tamanho volume de água no Rio Grande do Sul, o que é absolutamente falso.

O Rio Grande do Sul, como explicou o Estadão, é localizado em uma região de encontro entre sistemas polares e tropicais, ou seja, entre ar quente e frio, o que facilita a ocorrência de eventos climáticos. Além disso, a geografia gaúcha, embora não tenha efeito direto sobre a chuva, impacta nos efeitos dela, como deslizamentos e inundações. “A configuração das bacias hidrográficas e a presença de grandes cidades, como Porto Alegre, em áreas suscetíveis a inundações em eventos de tal magnitude, incorrem na catástrofe, mas não na causa dela”, afirmou Scortegagna.

Há alguns anos, especialistas vinham alertando que outra enchente como a cheia histórica de 1941 poderia se repetir no Rio Grande do Sul. As previsões sazonais (de meses) e subsazonais (de até 45 dias) são bons indicativos qualitativos das tendências – ou seja, se iria ou não chover acima da média. No entanto, a quantidade de chuva só poderia ser prevista num curto a médio prazo.

Isso porque, em eventos extremos, a magnitude é definida com no máximo 15 dias de antecedência, explica Arlan Scortegagna. E a previsão, de fato, aconteceu, segundo dados do Global Flood Awareness System (GloFAS), operado pelo Centro Europeu para Previsões de Tempo de Médio Prazo (ECMWF), que hoje possui o sistema de previsão hidrometeorológica mais preciso dentre as instituições científicas do mundo que atuam nessa área.

“Observando os resultados do GloFAS, em 15 de abril de 2024, já era possível antecipar um evento de grandes proporções que viria a ocorrer na região Sul do Brasil e no Uruguai”, disse Scortgagna.

Em 15 de abril, mapa já mostrava probabilidade de evento climático na região. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Nas previsões da semana seguinte, no dia 22 de abril de 2024, o cenário futuro de evento extremo se manteve, e essa persistência da previsão de catástrofe entre as diferentes rodadas do modelo é um dos principais atributos que permitia reforçar a confiança nas previsões. Note-se ainda que, na previsão desse dia, a magnitude do evento previsto se intensificou sobre o Rio Grande do Sul”, apontou o especialista.

Em 22 de abril, mapa já apontava previsão de catástrofe no Rio Grande do Sul. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Já no dia 29 de abril de 2024, apenas alguns dias antes do evento, as previsões eram feitas no período de curto prazo, em que possuem maior assertividade, e era bastante fácil de antecipar o que estava por vir, permitindo, inclusive, a geração de alertas hidrometeorológicos”, completou o engenheiro hidrólogo.

Mapa da plataforma GloFAS de 29 de abril de 2024 permitia antecipar o que estava por vir. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

As chuvas no Rio Grande do Sul começaram no dia 27 de abril, mas a enchente veio nos dias seguintes. No dia 30, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) emitiu um alerta de risco hidrológico alto para “inundações bruscas e alagamentos em áreas rebaixadas e com drenagem deficiente para o Rio Grande do Sul”.

Em entrevista à Rádio Nacional, o professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leandro Torres Di Gregório disse que esta cheia, a maior dos últimos 80 anos no Estado, não pode ser considerada uma surpresa. “Isso aí é um cenário conhecido dos órgãos de monitoramento de alerta da Defesa Civil. Então, temos que planejar para fechar todas essas lacunas, todas essas brechas, que ainda dão margem a acontecer em falhas, morrerem pessoas”, declarou.

O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirmou ao Estadão que é possível creditar a tragédia no Rio Grande do Sul ao agravamento da crise climática. As declarações dele e de outros estudiosos podem ser vistas nesta checagem do Verifica sobre negacionismo climático em meio à tragédia no Rio Grande do Sul.

Publicações empilham afirmações já desmentidas

Não é apenas de negacionismo científico que vivem os conspiracionistas da catástrofe. Pelo menos dois vídeos que viralizaram no Instagram e no WhatsApp recorrem, juntos, a mais de uma dezena de alegações que já foram desmentidas ao longo dos últimos dias. Eles falam de centenas de corpos boiando, de exigência de nota fiscal para caminhões com doações, veículos barrados nas estradas, e até jet-skis escondidos para não serem usados nos salvamentos.

Leitores do Verifica podem pedir a checagem de conteúdos pelo WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

Veja o que se sabe sobre as alegações:

  • Nem o presidente Lula, nem o governador Eduardo Leite tomaram qualquer medida rápida e emergencial com relação à chuva

Não é bem assim. No dia 30 de abril, quando aumentou a chuva e foram emitidos os alertas de risco alto para enchentes e inundações, o governo do Rio Grande do Sul acionou um gabinete de crise, enquanto a Defesa Civil passou a alertar as pessoas sobre os riscos. Também no dia 30, a Força Aérea Brasileira (FAB) passou a atuar no resgate de pessoas ilhadas e em locais de risco. As ações começaram à noite, pela cidade de Santa Maria.

No entanto, como mostrou o Estadão, o gasto com prevenção de desastres caiu 78,4% no Brasil em uma década, enquanto os desastres, em si, custaram R$ 105 bilhões ao País em um ano. O podcast Notícia no Seu Tempo, do Estadão, mostra que o governo do Rio Grande do Sul prioriza resgates, em vez de prevenção.

Na capital, Porto Alegre, a Lei Orçamentária de 2023 não previu qualquer investimento no item “Melhoria no Sistema de Proteção contra Cheias”. A informação foi publicada pelo UOL e confirmada pelo Verifica.

  • A Polícia do Rio Grande do Sul impediu que as pessoas fizessem resgates com barcos e jet skis

Como já mostrou o Verifica, não há ações de inspeção de condutores de barcos ou veículos que queiram ajudar no socorro às vítimas, segundo a Brigada Militar e a Polícia Rodoviária do Rio Grande do Sul. O Exército esclareceu que vídeos compartilhados nas redes mostram um trabalho de organização de embarcações para evitar acidentes ou o comprometimento do resgate de vítimas. Civis não foram impedidos de fazer resgates, nem foi exigida habilitação marítima para jet skis e similares, ao contrário do que afirma um dos vídeos virais em outro trecho.

  • Motoristas de caminhão foram impedidos de entregar doações para as vítimas. Caminhão oficial do governo de Santa Catarina foi impedido de passar

É enganoso. Caminhões com excesso de peso foram inspecionados, mas não foram retidos, como mostrou o Verifica. Um comboio liderado pela Defesa Civil de Florianópolis (SC) chegou a ser notificado no posto de pesagem de Araranguá (SC) por excesso de peso, mas o veículo não foi impedido de seguir viagem e a ANTT informou que as multas em casos assim serão retiradas.

  • O Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul escondeu 27 jet skis novos

É falso. Em um vídeo viral, um militar da reserva disse que 40 jet skis do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul estavam guardados e não eram usados nos resgates para não sofrer danos. O governo do Rio Grande do Sul negou, disse que o militar da reserva não tem qualquer ligação com as ações de planejamento do Corpo de Bombeiros e “não há qualquer restrição para a utilização das motos aquáticas em razão de possível dano”. O Verifica mostrou que as motos aquáticas que às quais o homem no vídeo se referia estavam indo para o Sul do Estado, para substituir outras que tinham apresentado dano.

  • Existem centenas de corpos de crianças mortas boiando

Falso. Há bastante desinformação sobre supostos corpos boiando nas cidades atingidas pela enchente. O Estadão Verifica já desmentiu algumas destas publicações: São falsos posts que falam em “centenas de corpos boiando” em enchente em Canoas; é falso que a água para consumo em Porto Alegre possa ser contaminada por corpos no Guaíba; foto de corpo flutuando é antiga e foi registrada no Rio de Janeiro, sem ligação com chuvas no Sul; é falso que foto mostre centenas de corpos no RS após água baixar; é falso áudio em que homem relata ter resgatado corpo de bebê em Canoas (RS).

  • As bombas de drenagem de Porto Alegre foram desligadas alguns dias antes do começo das chuvas

É enganoso. Porto Alegre possui um sistema de 23 bombas de drenagem que são responsáveis por drenar água e devolvê-la ao rio. No entanto, quando a enchente veio, apenas quatro funcionaram. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) da capital gaúcha informou que 19 bombas foram desligadas devido à inundação e por causa do risco de choque elétrico. Ou seja, o desligamento aconteceu depois da chuva, e não antes dela. No dia 8 de maio, só cinco estavam operando, como mostrou o Estadão – uma das que estavam desligadas voltou a funcionar com o uso de um gerador.

Em 2020, a Prefeitura de Porto Alegre instalava motores para automatização das casas de bombas; na cheia de 2024, só quatro bombas funcionaram efetivamente. Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA
  • O que aconteceu no Rio Grande do Sul é muito parecido com o que acontece quando tempestades são criadas repentinamente, de maneira artificial, por armas militares de modificação magnética do clima, como o sistema Haarp

É enganoso. O Projeto Comprova já mostrou que o sistema Haarp não manipula o clima. A checagem, também publicada pelo Verifica, aponta que não há nenhuma evidência de que o clima possa ser manipulado pelo Haarp, sigla para “High-frequency Active Auroral Research Program”, ou Programa de Pesquisa Ativa de Alta Frequência de Auroras, em português. O projeto foi criado pela Universidade de Alaska Fairbanks nos anos 1990 para estudar ondas na ionosfera – camada atmosférica cuja altura pode variar de 50 a mil quilômetros acima da superfície terrestre. O sistema não interage com a troposfera – camada responsável por produzir o clima terrestre e, portanto, não pode controlar o clima.

Além disso, o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna explica que o homem não possui o controle do clima a ponto de gerar eventos da magnitude do que está ocorrendo no Rio Grande do Sul. “A capacidade humana atualmente é limitada a iniciativas muito restritas, como a ‘semeadura de nuvens’, que consiste na introdução de substâncias na atmosfera por meio de aeronaves para promover geração de núcleos de condensação e, consequentemente, o desenvolvimento de nuvens e chuva”. Segundo ele, isso foi usado em Curitiba (PR) na seca de 2020/2021, mas os resultados foram “controversos e difíceis de validar”.

  • Dia 4 de maio, aconteceu algo idêntico ao que aconteceu no Rio Grande do Sul, em Guangdong, na China. E no dia seguinte, no estado do Texas, nos Estados Unidos. Estes são locais habitados por pessoas que são contra o socialismo e que não apoiam os ideais da esquerda

Os dois locais sofrem com eventos climáticos extremos, não com “castigos” por serem contra a esquerda. No dia 23 de abril, chuvas torrenciais mataram quatro pessoas e deixaram 100 mil desabrigados na China. Em 2 de maio, o desabamento de uma estrada após as chuvas matou 48 pessoas na província de Guangdong.

O estado do Texas, nos Estados Unidos, vem sendo afetado por uma série de eventos climáticos desde o final de abril, e o fato de a região ser cortada por diversos rios deixa o local vulnerável, já que o solo está encharcado. O Serviço Meteorológico Nacional do país emitiu alertas de chuva e trovoadas no leste dos Estados Unidos, incluindo os estados do Texas e da Flórida devido à atuação de um sistema de baixa pressão que avança pelo Tennessee. Há possibilidade de chuvas torrenciais pelo menos até a manhã desta quinta-feira, 16.

  • Não querem liberar caminhões de doações, estão exigindo nota fiscal

Enganoso. Várias alegações sobre isso se espalharam nos últimos dias, mas, diferentemente do que afirmam os vídeos virais, não há exigência de imposto ou nota fiscal para caminhões com doações para o Rio Grande do Sul. Um vídeo gravado em abril deste ano, com mercadorias sem nota compradas na região do Brás, comércio popular de São Paulo, circulou fora de contexto alegando que os itens eram doações, o que não é verdade.

  • O Exército não tem coragem de entrar na água

É falso. Militares do Exército fazem parte da Operação Taquari 2, liderada pelas Forças Armadas desde o dia 30 de abril. Dentre as principais ações dos militares da força terrestre está o resgate de ribeirinhos, como mostram estas imagens. Além disso, o Exército atua no apoio médico, na desobstrução de vias e na reconstrução dos acessos no Rio Grande do Rio a partir de trabalhos de engenharia.

Militares do Exército auxiliam no resgate de pessoas ilhadas no Rio Grande do Sul. Foto: Exército Brasileiro Foto: Exército Brasileiro

Era julho de 1947, a Segunda Guerra Mundial havia acabado, mas países europeus estavam devastados pelo conflito. Num discurso na Universidade de Harvard, o secretário de Estado dos Estados Unidos, George C. Marshall, apelou para um plano de reconstrução que pudesse salvar os países da Europa Ocidental da “ameaça comunista”, já que estavam vulneráveis. O apelo virou lei e, em 1948, os EUA colocaram em prática o Plano Marshall, que injetou, em valores da época, US$ 12 bilhões para a reconstrução da economia de países como Inglaterra, Itália e França.

Setenta e seis anos depois, no último dia 4 de maio, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), lembrou do Plano Marshall e fez uma analogia entre o programa de reconstrução norte-americano e a situação do Estado brasileiro devastado pela catástrofe. Para Leite, o Rio Grande do Sul vive um cenário de guerra e, por isso, vai exigir medidas de pós-guerra.

“A gente vai precisar de medidas absurdamente excepcionais, o Rio Grande do Sul vai precisar de uma espécie de um Plano Marshall de reconstrução, daquele da reconstrução da Europa do pós-guerra. A gente vai precisar de um plano de excepcionalidade em processos, em recursos, em medidas absolutamente extraordinárias porque, como eu insisto, quem já foi vítima da tragédia não pode ser vítima depois da desassistência”, declarou.

No dia seguinte, o governador disse em entrevista coletiva que o plano do Rio Grande do Sul teria outro nome, algo como “Plano de Reconstrução Brasileiro”, e o que o Plano Marshall foi citado apenas para que as pessoas tivessem uma dimensão do tamanho do problema gaúcho.

Área devastada pela enchente em Cruzeiro do Sul, RS. Foto: Nelson ALMEIDA / AFP Foto: Nelson Almeida/NELSON ALMEIDA

Nas redes sociais, contudo, o Plano Marshall foi utilizado para dar fôlego a conteúdos conspiracionistas que alegam, sem qualquer fundamento, que a catástrofe climática no Rio Grande do Sul foi planejada a fim de “resetar” a sociedade e construí-la a partir de novas bases, incluindo os princípios da Agenda 2030 da ONU, do Fórum Econômico Mundial e dos globalistas. O Rio Grande do Sul estaria “na mira” da calamidade por ser um local que “combate tradicionalmente os ideais da esquerda”.

Na realidade, o que afetou o Estado foram três fenômenos meteorológicos: um cavado (região de pressão atmosférica baixa), um corredor de umidade vindo da Amazônia e uma onda de calor na região central do País. “A combinação desses três eventos é por si só rara, gerando um ‘bloqueio’ sobre o RS, onde as chuvas persistiram por vários dias, resultando em acumulados extremamente elevados”, explicou o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna.

Ignorando completamente os efeitos das mudanças climáticas e de fenômenos como El Niño e La Niña, normalmente fortes no Rio Grande do Sul, vídeos virais atribuem a tragédia a uma conspiração da esquerda e até já compartilham uma série de medidas que estariam prontas para serem tomadas a curto prazo.

As supostas medidas afetariam proprietários de terras, com a desapropriação de terrenos para recuperação ambiental, restrições ao uso da terra, criação de zonas de exclusão, imposição de um “lockdown climático”, com restrições à mobilidade urbana e realocação em massa de pessoas. Ao Verifica, o governo do Rio Grande do Sul disse que nenhuma dessas medidas foi apresentada por qualquer representante da gestão estadual.

Negacionistas alegam que catástrofe foi planejada para ‘resetar’ a sociedade

O negacionismo científico aparece entre os argumentos em diversos vídeos, imagens e correntes que circulam pelo WhatsApp. Os autores desta tese alegam, por exemplo, que nenhum radar meteorológico no mundo foi capaz de perceber a formação de tamanho volume de água no Rio Grande do Sul, o que é absolutamente falso.

O Rio Grande do Sul, como explicou o Estadão, é localizado em uma região de encontro entre sistemas polares e tropicais, ou seja, entre ar quente e frio, o que facilita a ocorrência de eventos climáticos. Além disso, a geografia gaúcha, embora não tenha efeito direto sobre a chuva, impacta nos efeitos dela, como deslizamentos e inundações. “A configuração das bacias hidrográficas e a presença de grandes cidades, como Porto Alegre, em áreas suscetíveis a inundações em eventos de tal magnitude, incorrem na catástrofe, mas não na causa dela”, afirmou Scortegagna.

Há alguns anos, especialistas vinham alertando que outra enchente como a cheia histórica de 1941 poderia se repetir no Rio Grande do Sul. As previsões sazonais (de meses) e subsazonais (de até 45 dias) são bons indicativos qualitativos das tendências – ou seja, se iria ou não chover acima da média. No entanto, a quantidade de chuva só poderia ser prevista num curto a médio prazo.

Isso porque, em eventos extremos, a magnitude é definida com no máximo 15 dias de antecedência, explica Arlan Scortegagna. E a previsão, de fato, aconteceu, segundo dados do Global Flood Awareness System (GloFAS), operado pelo Centro Europeu para Previsões de Tempo de Médio Prazo (ECMWF), que hoje possui o sistema de previsão hidrometeorológica mais preciso dentre as instituições científicas do mundo que atuam nessa área.

“Observando os resultados do GloFAS, em 15 de abril de 2024, já era possível antecipar um evento de grandes proporções que viria a ocorrer na região Sul do Brasil e no Uruguai”, disse Scortgagna.

Em 15 de abril, mapa já mostrava probabilidade de evento climático na região. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Nas previsões da semana seguinte, no dia 22 de abril de 2024, o cenário futuro de evento extremo se manteve, e essa persistência da previsão de catástrofe entre as diferentes rodadas do modelo é um dos principais atributos que permitia reforçar a confiança nas previsões. Note-se ainda que, na previsão desse dia, a magnitude do evento previsto se intensificou sobre o Rio Grande do Sul”, apontou o especialista.

Em 22 de abril, mapa já apontava previsão de catástrofe no Rio Grande do Sul. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Já no dia 29 de abril de 2024, apenas alguns dias antes do evento, as previsões eram feitas no período de curto prazo, em que possuem maior assertividade, e era bastante fácil de antecipar o que estava por vir, permitindo, inclusive, a geração de alertas hidrometeorológicos”, completou o engenheiro hidrólogo.

Mapa da plataforma GloFAS de 29 de abril de 2024 permitia antecipar o que estava por vir. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

As chuvas no Rio Grande do Sul começaram no dia 27 de abril, mas a enchente veio nos dias seguintes. No dia 30, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) emitiu um alerta de risco hidrológico alto para “inundações bruscas e alagamentos em áreas rebaixadas e com drenagem deficiente para o Rio Grande do Sul”.

Em entrevista à Rádio Nacional, o professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leandro Torres Di Gregório disse que esta cheia, a maior dos últimos 80 anos no Estado, não pode ser considerada uma surpresa. “Isso aí é um cenário conhecido dos órgãos de monitoramento de alerta da Defesa Civil. Então, temos que planejar para fechar todas essas lacunas, todas essas brechas, que ainda dão margem a acontecer em falhas, morrerem pessoas”, declarou.

O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirmou ao Estadão que é possível creditar a tragédia no Rio Grande do Sul ao agravamento da crise climática. As declarações dele e de outros estudiosos podem ser vistas nesta checagem do Verifica sobre negacionismo climático em meio à tragédia no Rio Grande do Sul.

Publicações empilham afirmações já desmentidas

Não é apenas de negacionismo científico que vivem os conspiracionistas da catástrofe. Pelo menos dois vídeos que viralizaram no Instagram e no WhatsApp recorrem, juntos, a mais de uma dezena de alegações que já foram desmentidas ao longo dos últimos dias. Eles falam de centenas de corpos boiando, de exigência de nota fiscal para caminhões com doações, veículos barrados nas estradas, e até jet-skis escondidos para não serem usados nos salvamentos.

Leitores do Verifica podem pedir a checagem de conteúdos pelo WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

Veja o que se sabe sobre as alegações:

  • Nem o presidente Lula, nem o governador Eduardo Leite tomaram qualquer medida rápida e emergencial com relação à chuva

Não é bem assim. No dia 30 de abril, quando aumentou a chuva e foram emitidos os alertas de risco alto para enchentes e inundações, o governo do Rio Grande do Sul acionou um gabinete de crise, enquanto a Defesa Civil passou a alertar as pessoas sobre os riscos. Também no dia 30, a Força Aérea Brasileira (FAB) passou a atuar no resgate de pessoas ilhadas e em locais de risco. As ações começaram à noite, pela cidade de Santa Maria.

No entanto, como mostrou o Estadão, o gasto com prevenção de desastres caiu 78,4% no Brasil em uma década, enquanto os desastres, em si, custaram R$ 105 bilhões ao País em um ano. O podcast Notícia no Seu Tempo, do Estadão, mostra que o governo do Rio Grande do Sul prioriza resgates, em vez de prevenção.

Na capital, Porto Alegre, a Lei Orçamentária de 2023 não previu qualquer investimento no item “Melhoria no Sistema de Proteção contra Cheias”. A informação foi publicada pelo UOL e confirmada pelo Verifica.

  • A Polícia do Rio Grande do Sul impediu que as pessoas fizessem resgates com barcos e jet skis

Como já mostrou o Verifica, não há ações de inspeção de condutores de barcos ou veículos que queiram ajudar no socorro às vítimas, segundo a Brigada Militar e a Polícia Rodoviária do Rio Grande do Sul. O Exército esclareceu que vídeos compartilhados nas redes mostram um trabalho de organização de embarcações para evitar acidentes ou o comprometimento do resgate de vítimas. Civis não foram impedidos de fazer resgates, nem foi exigida habilitação marítima para jet skis e similares, ao contrário do que afirma um dos vídeos virais em outro trecho.

  • Motoristas de caminhão foram impedidos de entregar doações para as vítimas. Caminhão oficial do governo de Santa Catarina foi impedido de passar

É enganoso. Caminhões com excesso de peso foram inspecionados, mas não foram retidos, como mostrou o Verifica. Um comboio liderado pela Defesa Civil de Florianópolis (SC) chegou a ser notificado no posto de pesagem de Araranguá (SC) por excesso de peso, mas o veículo não foi impedido de seguir viagem e a ANTT informou que as multas em casos assim serão retiradas.

  • O Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul escondeu 27 jet skis novos

É falso. Em um vídeo viral, um militar da reserva disse que 40 jet skis do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul estavam guardados e não eram usados nos resgates para não sofrer danos. O governo do Rio Grande do Sul negou, disse que o militar da reserva não tem qualquer ligação com as ações de planejamento do Corpo de Bombeiros e “não há qualquer restrição para a utilização das motos aquáticas em razão de possível dano”. O Verifica mostrou que as motos aquáticas que às quais o homem no vídeo se referia estavam indo para o Sul do Estado, para substituir outras que tinham apresentado dano.

  • Existem centenas de corpos de crianças mortas boiando

Falso. Há bastante desinformação sobre supostos corpos boiando nas cidades atingidas pela enchente. O Estadão Verifica já desmentiu algumas destas publicações: São falsos posts que falam em “centenas de corpos boiando” em enchente em Canoas; é falso que a água para consumo em Porto Alegre possa ser contaminada por corpos no Guaíba; foto de corpo flutuando é antiga e foi registrada no Rio de Janeiro, sem ligação com chuvas no Sul; é falso que foto mostre centenas de corpos no RS após água baixar; é falso áudio em que homem relata ter resgatado corpo de bebê em Canoas (RS).

  • As bombas de drenagem de Porto Alegre foram desligadas alguns dias antes do começo das chuvas

É enganoso. Porto Alegre possui um sistema de 23 bombas de drenagem que são responsáveis por drenar água e devolvê-la ao rio. No entanto, quando a enchente veio, apenas quatro funcionaram. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) da capital gaúcha informou que 19 bombas foram desligadas devido à inundação e por causa do risco de choque elétrico. Ou seja, o desligamento aconteceu depois da chuva, e não antes dela. No dia 8 de maio, só cinco estavam operando, como mostrou o Estadão – uma das que estavam desligadas voltou a funcionar com o uso de um gerador.

Em 2020, a Prefeitura de Porto Alegre instalava motores para automatização das casas de bombas; na cheia de 2024, só quatro bombas funcionaram efetivamente. Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA
  • O que aconteceu no Rio Grande do Sul é muito parecido com o que acontece quando tempestades são criadas repentinamente, de maneira artificial, por armas militares de modificação magnética do clima, como o sistema Haarp

É enganoso. O Projeto Comprova já mostrou que o sistema Haarp não manipula o clima. A checagem, também publicada pelo Verifica, aponta que não há nenhuma evidência de que o clima possa ser manipulado pelo Haarp, sigla para “High-frequency Active Auroral Research Program”, ou Programa de Pesquisa Ativa de Alta Frequência de Auroras, em português. O projeto foi criado pela Universidade de Alaska Fairbanks nos anos 1990 para estudar ondas na ionosfera – camada atmosférica cuja altura pode variar de 50 a mil quilômetros acima da superfície terrestre. O sistema não interage com a troposfera – camada responsável por produzir o clima terrestre e, portanto, não pode controlar o clima.

Além disso, o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna explica que o homem não possui o controle do clima a ponto de gerar eventos da magnitude do que está ocorrendo no Rio Grande do Sul. “A capacidade humana atualmente é limitada a iniciativas muito restritas, como a ‘semeadura de nuvens’, que consiste na introdução de substâncias na atmosfera por meio de aeronaves para promover geração de núcleos de condensação e, consequentemente, o desenvolvimento de nuvens e chuva”. Segundo ele, isso foi usado em Curitiba (PR) na seca de 2020/2021, mas os resultados foram “controversos e difíceis de validar”.

  • Dia 4 de maio, aconteceu algo idêntico ao que aconteceu no Rio Grande do Sul, em Guangdong, na China. E no dia seguinte, no estado do Texas, nos Estados Unidos. Estes são locais habitados por pessoas que são contra o socialismo e que não apoiam os ideais da esquerda

Os dois locais sofrem com eventos climáticos extremos, não com “castigos” por serem contra a esquerda. No dia 23 de abril, chuvas torrenciais mataram quatro pessoas e deixaram 100 mil desabrigados na China. Em 2 de maio, o desabamento de uma estrada após as chuvas matou 48 pessoas na província de Guangdong.

O estado do Texas, nos Estados Unidos, vem sendo afetado por uma série de eventos climáticos desde o final de abril, e o fato de a região ser cortada por diversos rios deixa o local vulnerável, já que o solo está encharcado. O Serviço Meteorológico Nacional do país emitiu alertas de chuva e trovoadas no leste dos Estados Unidos, incluindo os estados do Texas e da Flórida devido à atuação de um sistema de baixa pressão que avança pelo Tennessee. Há possibilidade de chuvas torrenciais pelo menos até a manhã desta quinta-feira, 16.

  • Não querem liberar caminhões de doações, estão exigindo nota fiscal

Enganoso. Várias alegações sobre isso se espalharam nos últimos dias, mas, diferentemente do que afirmam os vídeos virais, não há exigência de imposto ou nota fiscal para caminhões com doações para o Rio Grande do Sul. Um vídeo gravado em abril deste ano, com mercadorias sem nota compradas na região do Brás, comércio popular de São Paulo, circulou fora de contexto alegando que os itens eram doações, o que não é verdade.

  • O Exército não tem coragem de entrar na água

É falso. Militares do Exército fazem parte da Operação Taquari 2, liderada pelas Forças Armadas desde o dia 30 de abril. Dentre as principais ações dos militares da força terrestre está o resgate de ribeirinhos, como mostram estas imagens. Além disso, o Exército atua no apoio médico, na desobstrução de vias e na reconstrução dos acessos no Rio Grande do Rio a partir de trabalhos de engenharia.

Militares do Exército auxiliam no resgate de pessoas ilhadas no Rio Grande do Sul. Foto: Exército Brasileiro Foto: Exército Brasileiro

Era julho de 1947, a Segunda Guerra Mundial havia acabado, mas países europeus estavam devastados pelo conflito. Num discurso na Universidade de Harvard, o secretário de Estado dos Estados Unidos, George C. Marshall, apelou para um plano de reconstrução que pudesse salvar os países da Europa Ocidental da “ameaça comunista”, já que estavam vulneráveis. O apelo virou lei e, em 1948, os EUA colocaram em prática o Plano Marshall, que injetou, em valores da época, US$ 12 bilhões para a reconstrução da economia de países como Inglaterra, Itália e França.

Setenta e seis anos depois, no último dia 4 de maio, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), lembrou do Plano Marshall e fez uma analogia entre o programa de reconstrução norte-americano e a situação do Estado brasileiro devastado pela catástrofe. Para Leite, o Rio Grande do Sul vive um cenário de guerra e, por isso, vai exigir medidas de pós-guerra.

“A gente vai precisar de medidas absurdamente excepcionais, o Rio Grande do Sul vai precisar de uma espécie de um Plano Marshall de reconstrução, daquele da reconstrução da Europa do pós-guerra. A gente vai precisar de um plano de excepcionalidade em processos, em recursos, em medidas absolutamente extraordinárias porque, como eu insisto, quem já foi vítima da tragédia não pode ser vítima depois da desassistência”, declarou.

No dia seguinte, o governador disse em entrevista coletiva que o plano do Rio Grande do Sul teria outro nome, algo como “Plano de Reconstrução Brasileiro”, e o que o Plano Marshall foi citado apenas para que as pessoas tivessem uma dimensão do tamanho do problema gaúcho.

Área devastada pela enchente em Cruzeiro do Sul, RS. Foto: Nelson ALMEIDA / AFP Foto: Nelson Almeida/NELSON ALMEIDA

Nas redes sociais, contudo, o Plano Marshall foi utilizado para dar fôlego a conteúdos conspiracionistas que alegam, sem qualquer fundamento, que a catástrofe climática no Rio Grande do Sul foi planejada a fim de “resetar” a sociedade e construí-la a partir de novas bases, incluindo os princípios da Agenda 2030 da ONU, do Fórum Econômico Mundial e dos globalistas. O Rio Grande do Sul estaria “na mira” da calamidade por ser um local que “combate tradicionalmente os ideais da esquerda”.

Na realidade, o que afetou o Estado foram três fenômenos meteorológicos: um cavado (região de pressão atmosférica baixa), um corredor de umidade vindo da Amazônia e uma onda de calor na região central do País. “A combinação desses três eventos é por si só rara, gerando um ‘bloqueio’ sobre o RS, onde as chuvas persistiram por vários dias, resultando em acumulados extremamente elevados”, explicou o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna.

Ignorando completamente os efeitos das mudanças climáticas e de fenômenos como El Niño e La Niña, normalmente fortes no Rio Grande do Sul, vídeos virais atribuem a tragédia a uma conspiração da esquerda e até já compartilham uma série de medidas que estariam prontas para serem tomadas a curto prazo.

As supostas medidas afetariam proprietários de terras, com a desapropriação de terrenos para recuperação ambiental, restrições ao uso da terra, criação de zonas de exclusão, imposição de um “lockdown climático”, com restrições à mobilidade urbana e realocação em massa de pessoas. Ao Verifica, o governo do Rio Grande do Sul disse que nenhuma dessas medidas foi apresentada por qualquer representante da gestão estadual.

Negacionistas alegam que catástrofe foi planejada para ‘resetar’ a sociedade

O negacionismo científico aparece entre os argumentos em diversos vídeos, imagens e correntes que circulam pelo WhatsApp. Os autores desta tese alegam, por exemplo, que nenhum radar meteorológico no mundo foi capaz de perceber a formação de tamanho volume de água no Rio Grande do Sul, o que é absolutamente falso.

O Rio Grande do Sul, como explicou o Estadão, é localizado em uma região de encontro entre sistemas polares e tropicais, ou seja, entre ar quente e frio, o que facilita a ocorrência de eventos climáticos. Além disso, a geografia gaúcha, embora não tenha efeito direto sobre a chuva, impacta nos efeitos dela, como deslizamentos e inundações. “A configuração das bacias hidrográficas e a presença de grandes cidades, como Porto Alegre, em áreas suscetíveis a inundações em eventos de tal magnitude, incorrem na catástrofe, mas não na causa dela”, afirmou Scortegagna.

Há alguns anos, especialistas vinham alertando que outra enchente como a cheia histórica de 1941 poderia se repetir no Rio Grande do Sul. As previsões sazonais (de meses) e subsazonais (de até 45 dias) são bons indicativos qualitativos das tendências – ou seja, se iria ou não chover acima da média. No entanto, a quantidade de chuva só poderia ser prevista num curto a médio prazo.

Isso porque, em eventos extremos, a magnitude é definida com no máximo 15 dias de antecedência, explica Arlan Scortegagna. E a previsão, de fato, aconteceu, segundo dados do Global Flood Awareness System (GloFAS), operado pelo Centro Europeu para Previsões de Tempo de Médio Prazo (ECMWF), que hoje possui o sistema de previsão hidrometeorológica mais preciso dentre as instituições científicas do mundo que atuam nessa área.

“Observando os resultados do GloFAS, em 15 de abril de 2024, já era possível antecipar um evento de grandes proporções que viria a ocorrer na região Sul do Brasil e no Uruguai”, disse Scortgagna.

Em 15 de abril, mapa já mostrava probabilidade de evento climático na região. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Nas previsões da semana seguinte, no dia 22 de abril de 2024, o cenário futuro de evento extremo se manteve, e essa persistência da previsão de catástrofe entre as diferentes rodadas do modelo é um dos principais atributos que permitia reforçar a confiança nas previsões. Note-se ainda que, na previsão desse dia, a magnitude do evento previsto se intensificou sobre o Rio Grande do Sul”, apontou o especialista.

Em 22 de abril, mapa já apontava previsão de catástrofe no Rio Grande do Sul. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

“Já no dia 29 de abril de 2024, apenas alguns dias antes do evento, as previsões eram feitas no período de curto prazo, em que possuem maior assertividade, e era bastante fácil de antecipar o que estava por vir, permitindo, inclusive, a geração de alertas hidrometeorológicos”, completou o engenheiro hidrólogo.

Mapa da plataforma GloFAS de 29 de abril de 2024 permitia antecipar o que estava por vir. Imagem: Reprodução/GloFAS Foto: Reprodução/GloFAS

As chuvas no Rio Grande do Sul começaram no dia 27 de abril, mas a enchente veio nos dias seguintes. No dia 30, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) emitiu um alerta de risco hidrológico alto para “inundações bruscas e alagamentos em áreas rebaixadas e com drenagem deficiente para o Rio Grande do Sul”.

Em entrevista à Rádio Nacional, o professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leandro Torres Di Gregório disse que esta cheia, a maior dos últimos 80 anos no Estado, não pode ser considerada uma surpresa. “Isso aí é um cenário conhecido dos órgãos de monitoramento de alerta da Defesa Civil. Então, temos que planejar para fechar todas essas lacunas, todas essas brechas, que ainda dão margem a acontecer em falhas, morrerem pessoas”, declarou.

O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirmou ao Estadão que é possível creditar a tragédia no Rio Grande do Sul ao agravamento da crise climática. As declarações dele e de outros estudiosos podem ser vistas nesta checagem do Verifica sobre negacionismo climático em meio à tragédia no Rio Grande do Sul.

Publicações empilham afirmações já desmentidas

Não é apenas de negacionismo científico que vivem os conspiracionistas da catástrofe. Pelo menos dois vídeos que viralizaram no Instagram e no WhatsApp recorrem, juntos, a mais de uma dezena de alegações que já foram desmentidas ao longo dos últimos dias. Eles falam de centenas de corpos boiando, de exigência de nota fiscal para caminhões com doações, veículos barrados nas estradas, e até jet-skis escondidos para não serem usados nos salvamentos.

Leitores do Verifica podem pedir a checagem de conteúdos pelo WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

Veja o que se sabe sobre as alegações:

  • Nem o presidente Lula, nem o governador Eduardo Leite tomaram qualquer medida rápida e emergencial com relação à chuva

Não é bem assim. No dia 30 de abril, quando aumentou a chuva e foram emitidos os alertas de risco alto para enchentes e inundações, o governo do Rio Grande do Sul acionou um gabinete de crise, enquanto a Defesa Civil passou a alertar as pessoas sobre os riscos. Também no dia 30, a Força Aérea Brasileira (FAB) passou a atuar no resgate de pessoas ilhadas e em locais de risco. As ações começaram à noite, pela cidade de Santa Maria.

No entanto, como mostrou o Estadão, o gasto com prevenção de desastres caiu 78,4% no Brasil em uma década, enquanto os desastres, em si, custaram R$ 105 bilhões ao País em um ano. O podcast Notícia no Seu Tempo, do Estadão, mostra que o governo do Rio Grande do Sul prioriza resgates, em vez de prevenção.

Na capital, Porto Alegre, a Lei Orçamentária de 2023 não previu qualquer investimento no item “Melhoria no Sistema de Proteção contra Cheias”. A informação foi publicada pelo UOL e confirmada pelo Verifica.

  • A Polícia do Rio Grande do Sul impediu que as pessoas fizessem resgates com barcos e jet skis

Como já mostrou o Verifica, não há ações de inspeção de condutores de barcos ou veículos que queiram ajudar no socorro às vítimas, segundo a Brigada Militar e a Polícia Rodoviária do Rio Grande do Sul. O Exército esclareceu que vídeos compartilhados nas redes mostram um trabalho de organização de embarcações para evitar acidentes ou o comprometimento do resgate de vítimas. Civis não foram impedidos de fazer resgates, nem foi exigida habilitação marítima para jet skis e similares, ao contrário do que afirma um dos vídeos virais em outro trecho.

  • Motoristas de caminhão foram impedidos de entregar doações para as vítimas. Caminhão oficial do governo de Santa Catarina foi impedido de passar

É enganoso. Caminhões com excesso de peso foram inspecionados, mas não foram retidos, como mostrou o Verifica. Um comboio liderado pela Defesa Civil de Florianópolis (SC) chegou a ser notificado no posto de pesagem de Araranguá (SC) por excesso de peso, mas o veículo não foi impedido de seguir viagem e a ANTT informou que as multas em casos assim serão retiradas.

  • O Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul escondeu 27 jet skis novos

É falso. Em um vídeo viral, um militar da reserva disse que 40 jet skis do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul estavam guardados e não eram usados nos resgates para não sofrer danos. O governo do Rio Grande do Sul negou, disse que o militar da reserva não tem qualquer ligação com as ações de planejamento do Corpo de Bombeiros e “não há qualquer restrição para a utilização das motos aquáticas em razão de possível dano”. O Verifica mostrou que as motos aquáticas que às quais o homem no vídeo se referia estavam indo para o Sul do Estado, para substituir outras que tinham apresentado dano.

  • Existem centenas de corpos de crianças mortas boiando

Falso. Há bastante desinformação sobre supostos corpos boiando nas cidades atingidas pela enchente. O Estadão Verifica já desmentiu algumas destas publicações: São falsos posts que falam em “centenas de corpos boiando” em enchente em Canoas; é falso que a água para consumo em Porto Alegre possa ser contaminada por corpos no Guaíba; foto de corpo flutuando é antiga e foi registrada no Rio de Janeiro, sem ligação com chuvas no Sul; é falso que foto mostre centenas de corpos no RS após água baixar; é falso áudio em que homem relata ter resgatado corpo de bebê em Canoas (RS).

  • As bombas de drenagem de Porto Alegre foram desligadas alguns dias antes do começo das chuvas

É enganoso. Porto Alegre possui um sistema de 23 bombas de drenagem que são responsáveis por drenar água e devolvê-la ao rio. No entanto, quando a enchente veio, apenas quatro funcionaram. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) da capital gaúcha informou que 19 bombas foram desligadas devido à inundação e por causa do risco de choque elétrico. Ou seja, o desligamento aconteceu depois da chuva, e não antes dela. No dia 8 de maio, só cinco estavam operando, como mostrou o Estadão – uma das que estavam desligadas voltou a funcionar com o uso de um gerador.

Em 2020, a Prefeitura de Porto Alegre instalava motores para automatização das casas de bombas; na cheia de 2024, só quatro bombas funcionaram efetivamente. Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA Foto: Rafaela Redin/Divulgação DMAE PMPA
  • O que aconteceu no Rio Grande do Sul é muito parecido com o que acontece quando tempestades são criadas repentinamente, de maneira artificial, por armas militares de modificação magnética do clima, como o sistema Haarp

É enganoso. O Projeto Comprova já mostrou que o sistema Haarp não manipula o clima. A checagem, também publicada pelo Verifica, aponta que não há nenhuma evidência de que o clima possa ser manipulado pelo Haarp, sigla para “High-frequency Active Auroral Research Program”, ou Programa de Pesquisa Ativa de Alta Frequência de Auroras, em português. O projeto foi criado pela Universidade de Alaska Fairbanks nos anos 1990 para estudar ondas na ionosfera – camada atmosférica cuja altura pode variar de 50 a mil quilômetros acima da superfície terrestre. O sistema não interage com a troposfera – camada responsável por produzir o clima terrestre e, portanto, não pode controlar o clima.

Além disso, o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna explica que o homem não possui o controle do clima a ponto de gerar eventos da magnitude do que está ocorrendo no Rio Grande do Sul. “A capacidade humana atualmente é limitada a iniciativas muito restritas, como a ‘semeadura de nuvens’, que consiste na introdução de substâncias na atmosfera por meio de aeronaves para promover geração de núcleos de condensação e, consequentemente, o desenvolvimento de nuvens e chuva”. Segundo ele, isso foi usado em Curitiba (PR) na seca de 2020/2021, mas os resultados foram “controversos e difíceis de validar”.

  • Dia 4 de maio, aconteceu algo idêntico ao que aconteceu no Rio Grande do Sul, em Guangdong, na China. E no dia seguinte, no estado do Texas, nos Estados Unidos. Estes são locais habitados por pessoas que são contra o socialismo e que não apoiam os ideais da esquerda

Os dois locais sofrem com eventos climáticos extremos, não com “castigos” por serem contra a esquerda. No dia 23 de abril, chuvas torrenciais mataram quatro pessoas e deixaram 100 mil desabrigados na China. Em 2 de maio, o desabamento de uma estrada após as chuvas matou 48 pessoas na província de Guangdong.

O estado do Texas, nos Estados Unidos, vem sendo afetado por uma série de eventos climáticos desde o final de abril, e o fato de a região ser cortada por diversos rios deixa o local vulnerável, já que o solo está encharcado. O Serviço Meteorológico Nacional do país emitiu alertas de chuva e trovoadas no leste dos Estados Unidos, incluindo os estados do Texas e da Flórida devido à atuação de um sistema de baixa pressão que avança pelo Tennessee. Há possibilidade de chuvas torrenciais pelo menos até a manhã desta quinta-feira, 16.

  • Não querem liberar caminhões de doações, estão exigindo nota fiscal

Enganoso. Várias alegações sobre isso se espalharam nos últimos dias, mas, diferentemente do que afirmam os vídeos virais, não há exigência de imposto ou nota fiscal para caminhões com doações para o Rio Grande do Sul. Um vídeo gravado em abril deste ano, com mercadorias sem nota compradas na região do Brás, comércio popular de São Paulo, circulou fora de contexto alegando que os itens eram doações, o que não é verdade.

  • O Exército não tem coragem de entrar na água

É falso. Militares do Exército fazem parte da Operação Taquari 2, liderada pelas Forças Armadas desde o dia 30 de abril. Dentre as principais ações dos militares da força terrestre está o resgate de ribeirinhos, como mostram estas imagens. Além disso, o Exército atua no apoio médico, na desobstrução de vias e na reconstrução dos acessos no Rio Grande do Rio a partir de trabalhos de engenharia.

Militares do Exército auxiliam no resgate de pessoas ilhadas no Rio Grande do Sul. Foto: Exército Brasileiro Foto: Exército Brasileiro

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