Coibir o uso de inteligência artificial (IA) para espalhar desinformação nas eleições será um desafio para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) este ano. Segundo especialistas consultados pelo Estadão Verifica, a maior dificuldade é fiscalizar e punir o uso indevido da tecnologia em perfis de campanha não oficiais. Outra barreira a transpor é a de colaboração com as plataformas de mídias sociais.
O TSE discute neste mês a regulamentação do uso de IA em propagandas eleitorais. A proposta define regras para o uso da tecnologia nas eleições e estabelece a obrigatoriedade de aviso em conteúdos fabricados ou manipulados. O texto é parte de um conjunto de regras para o pleito municipal que será submetido a audiências públicas no fim de janeiro.
O Estadão Verifica explicou o que há de novo em relação à propaganda eleitoral e consultou a opinião de especialistas sobre o tema.
Inteligência artificial
A criação de regras para a inteligência artificial é uma das grandes novidades inseridas pelo TSE. O texto prevê que essas ferramentas podem ser adotadas em propaganda, desde que não seja para manipular ou causar danos ao pleito. Além disso, todo conteúdo político-eleitoral em período anterior e durante a campanha deve respeitar a transparência e com aviso sobre o uso das tecnologias para o cidadão.
A proposta já era esperada visto que, em dezembro, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, defendeu a cassação de políticos e candidatos às eleições municipais deste ano que utilizarem a inteligência artificial para disseminar desinformação. Como mostrou o Estadão, o uso de IA já é uma realidade nas equipes de comunicação dos políticos e pré-candidatos ao pleito de 2024.
Mesmo avaliando a manifestação do TSE como positiva, Tais Seibt, pesquisadora do Instituto de Cultura Digital da Unisinos e especialista em jornalismo de verificação, alerta que a efetividade das legislações sobre mídias digitais pode ser limitada pela dificuldade de fiscalização. “O cumprimento das leis é prejudicado nas campanhas eleitorais que ocorrem fora dos espaços oficiais, onde a desinformação é oriunda de diferentes fontes. As regras valem para aqueles eleitores implicados na disseminação indevida, mas é bem difícil fiscalizar”.
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Conforme Seibt, nas eleições brasileiras ainda não há exemplo concreto de que inteligência artificial tenha sido utilizada para induzir qualquer tipo de interpretação sobre algum candidato ou para espalhar desinformação sobre o pleito em si, mas a popularização das ferramentas pode vir a causar esse problema. “Acho que é positivo esse movimento de se antecipar e colocar a questão da inteligência artificial explicitamente. É algo para a gente observar e ver como vai acontecer na prática”, comenta.
Victor Piaia, professor da Escola de Comunicação da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador do projeto Democracia Digital, também pensa que a abordagem do TSE em relação à campanha oficial será eficiente, mas o mesmo pode não ocorrer nas outras esferas. “Quando a gente fala do ambiente digital, temos que dividir entre a campanha oficial e a campanha não oficial. A campanha não oficial é tocada por atores políticos, por pessoas que muitas vezes têm um blog, ou têm um site ou é uma influenciadora isolada que sequer é filiada ao partido concorrendo. Eu acredito que esse seja o principal problema regulatório”, opina.
Desinformação e responsabilidade das plataformas
O texto a ser discutido em audiência pública continua um esforço de combate à desinformação eleitoral. A previsão é de que as plataformas sejam obrigadas, a partir da notificação, por apurar e indisponibilizar conteúdos impulsionados que sejam fabricados ou manipulados e contenham “fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados com potencial de causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral”. As decisões de juízes regionais sobre o tema – por se tratar de eleições municipais – devem estar vinculadas às ordens do TSE.
A responsabilidade das plataformas recai também sobre a adoção de medidas para impedir ou diminuir a circulação de conteúdos que ataquem e comprometam o processo eleitoral. As empresas devem garantir maneiras eficazes para “notificação, acesso a canal de denúncias e ações corretivas e preventivas”, diz o artigo 9 da normativa.
Além de vedar o impulsionamento de conteúdo desinformativo para benefício próprio, a norma prevê a proibição do pagamento para promoção de conteúdos que promovam campanha negativa ou que utilizem como palavra-chave o nome do partido, federação, coligação, candidata ou candidato adversário. Se houver violação da norma, a prática pode ser caracterizada como abuso de poder.
Na minuta que trata sobre ilícitos eleitorais, houve a inclusão de um artigo sobre o disparo em massa de informações falsas contra o adversário. Nesta eleição, o ato poderá ser configurado como “abuso de poder econômico ou uso indevido dos meios de comunicação social”. O mesmo vale para a difusão de desinformação sobre o sistema eletrônico de votação e a Justiça Eleitoral.
Aqui, a dificuldade prevista pelos especialistas será a boa vontade das plataformas digitais em colaborar com a Justiça. “As ações dependem dos provedores e uma grande dificuldade é a celeridade da comunicação (entre as plataformas e a justiça eleitoral). Houve melhorias na última eleição, mas ainda é uma grande dificuldade”, observa Seibt.
Piaia explica que o papel das plataformas é central nesse processo porque elas precisam prover meios para que a sociedade civil e a Justiça acessem informações e identifiquem o que ocorre nos ambientes digitais. “Acredito que pelo lado da campanha oficial dos anúncios essa legislação provavelmente vai ser suficiente, tendo em vista que as responsabilidades estão muito bem definidas e você consegue fazer o monitoramento de modo adequado. Agora, quando se fala da campanha não oficial, temos um problema porque as plataformas têm fechado o acesso a dados para a sociedade civil e pesquisadores, ficando cada vez mais difícil entender o ecossistema digital e os fluxos de desinformação que se formam ali dentro”.
Para ambos, a saída mais eficaz contra a desinformação é fortalecer a educação da sociedade para que as pessoas identifiquem e barrem a propagação de conteúdos desinformativos. “Esse é o grande desafio e passa pela educação midiática e a educação cívica sobre o próprio processo eleitoral para que a desinformação tenha menos impacto. Nesse sentido, acho que nenhuma legislação seria 100% eficaz”, comenta Seibt.
Um ponto positivo que a pesquisadora destaca é o reforço da autonomia das agências de verificação de fatos que vierem a firmar termo de cooperação com o TSE para classificarem conteúdos de forma independente, o que, segundo ela, aproxima a sociedade do processo eleitoral. Contudo, Seibt ressalta ser necessário que o TSE defina como será esse cadastramento, o que não está claro na atual minuta. “Acho que isso pode abrir brecha para agências que não seguem todos os requisitos da boa prática de checagem”, diz.
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Transparência e uso de dados
O impulsionamento de conteúdos é permitido a partir da pré-campanha a partir das regras estabelecidas na Resolução nº 23.610 de 2019. No entanto, o Tribunal aumentou a exigência sobre transparência nas ferramentas para aumento de alcance de publicações. A partir de agora, as plataformas que prestam serviço de impulsionamento de propaganda ficam obrigadas a “manter ferramentas de transparência sobre a publicidade e sobre valores e responsáveis pelo pagamento.”
A minuta também cita a proibição feita em 2022 de impulsionamento de conteúdo e publicidade nas 48 horas antes e 24 depois da eleição. Ainda é ressaltado que é de responsabilidade da plataforma retirar do ar conteúdos que violam a regra.
O texto também acrescenta regras na resolução de 2019 sobre o uso de informações particulares em propaganda. A proposta veda que dados pessoais sensíveis sejam usados na criação de base de eleitores para publicidade direcionada na internet, salvo se obtido o consentimento específico e destacado do titular de dados. Além disso, o parágrafo 1º do artigo 31 determina a proibição “às pessoas jurídicas e às pessoas naturais a venda de cadastro de endereços eletrônicos e banco de dados pessoais”.
Se aprovada, a minuta obriga ainda que o controlador ou operador – aquele responsável pelo tratamento de dados pessoais – mantenha o registro das operações com o tipo de dados e sua origem, a descrição da finalidade, duração prevista de tratamento e o fundamento legal. Nos casos em que haja a utilização de dados em larga escala e que representam alto risco, a Justiça Eleitoral poderá exigir um relatório de impacto à proteção desses dados.
Consulta Pública
As minutas das resoluções para 2024, divulgadas pelo Tribunal na semana passada, tratam sobre diversos temas eleitorais, como pesquisas, registro de candidaturas, prestação de contas e também a propaganda política. Além da novidade em relação à inteligência artificial, as normativas ainda destacam a responsabilidade das plataformas digitais no combate à desinformação nas redes sociais.
A publicação de uma minuta é a primeira etapa para a formulação de normas que são discutidas e aprovadas para tornar-se uma resolução em vigor. Os textos com as regras eleitorais deste ano estão em consulta pública até o dia 19 de janeiro, quando se encerra o formulário de sugestões. Entre os dias 23, 24 e 25 deste mês, ocorrerão audiências abertas na Corte para o aperfeiçoamento das normas.
Podem apresentar propostas para as eleições de 2024 pessoas e instituições públicas e privadas, os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e as associações profissionais e acadêmicas. O TSE disponibilizou um formulário para receber contribuições até às 23h59 do dia 19 de janeiro. As ideias serão discutidas em três audiências públicas no dia 23, 24 e 25, a partir das 9h, no Auditório I da sede do TSE, em Brasília. As inscrições para o uso da palavra podem ser feitas pelo mesmo formulário de sugestões, sendo que a lista de aprovação será divulgada no dia 22.
A audiência do primeiro dia tratará sobre pesquisas eleitorais, auditoria e fiscalização das urnas, e atos gerais do processo eleitoral. No dia 24, será discutido o registro, financiamento de candidaturas e prestação de contas. A última, em 25 de janeiro, é destinada para os temas de propaganda, representações e reclamações e os crimes eleitorais. Todos os temas serão conduzidos pela ministra Cármen Lúcia, vice-presidente do TSE.