É enganoso vídeo que viralizou nas redes sociais comparando a seca no Nordeste do Brasil nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de Jair Bolsonaro (PL). O conteúdo exibe trechos adulterados de reportagens de 2012 e 2017 para ilustrar como era a situação na região durante a época de Lula -- mas o petista governou o País de 2003 a 2010. O autor do material sugere ainda que nordestinos já não têm mais seca -- o que não é verdade, uma vez que atualmente Estados da região enfrentam seca fraca e moderada, de acordo com monitoramento da Agência Nacional de Águas (ANA).
O vídeo tem quase seis minutos e foi feito para o TikTok, onde acumula mais de 1,1 milhão de visualizações. De lá, foi compartilhado em páginas no Facebook e perfis no Twitter, somando cerca de 500 mil interações até esta quarta-feira, 9. Veja abaixo a checagem do Estadão Verifica.
Reportagens não são do governo Lula e tiveram áudios adulterados
O autor do material, um pastor evangélico do interior do Ceará, diz que vai mostrar como era o Nordeste no tempo de Lula e como é hoje, com Bolsonaro. As primeiras imagens de seca que aparecem no vídeo são de 2017 - portanto, não correspondem ao governo de Lula, e sim ao de Michel Temer. A primeira cena exibida faz parte da série de reportagens A Grande Seca, do Jornal da Record. É possível identificar, aos 31 segundos de vídeo, um crédito na imagem para Rosana Mamani, que produziu a série para a emissora. O especial foi ao ar em fevereiro de 2017, quando o Nordeste era afetado pela pior seca do século.
O vídeo que viralizou adulterou a narração da reportagem. A voz de um homem começa a falar assim que as imagens aparecem: "Essa é a realidade do povo nordestino na época do Lula. Esse é o Nordeste na época do Lula". A reportagem da Record tem outra narração, sem sem tom político: "Desse tempo em que o sertão é um mar de tristeza. Estamos em Pernambuco, profundamente afetado pela maior estiagem em cem anos".
Depois das imagens da reportagem da Record, são exibidas cenas de uma vídeo-reportagem produzida em 2012 pelo jornal Diário de Pernambuco. Naquela época - durante o governo Dilma Rousseff, e não Lula -, a seca teve um impacto maior do que vinha registrando em décadas. A narração também foi adulterada. O que é dito no vídeo enganoso é o seguinte: "Nordeste castigado pela seca, e o povo tão sofrido somente vivia de promessa, como a Transposição do rio São Francisco que nunca chegava, como os carros-pipa, que era só pra enganar o povo. E os políticos, principalmente o Lula, deixavam o povo sofrer com a seca e não faziam nada. Essa é a realidade do Nordeste no tempo do Lula. Veja só o abandono e o descaso da Transposição do rio São Francisco".
No conteúdo original, a reportagem do Diário de Pernambuco não tem uma narração. A única voz no trecho usado é do fazendeiro Ulisses Ferraz, que mostra uma vaca magra amarrada a uma árvore e diz: "Esta vaquinha está amarrada porque ela não segura mais em pé. Ela tá presa aqui pra ela ficar, porque se ela deitar, ela morre".
Seca no Nordeste não acabou, ao contrário do que sugere vídeo
O autor do vídeo compartilha imagens do presidente Jair Bolsonaro inaugurando dois trechos das obras de Transposição do Rio São Francisco em junho e">?lang=hi"> novembro
O professor Humberto Barbosa, Ph.D. em Ciência do Solo e Sensoriamento Remoto pela Universidade de Arizona (EUA) e coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens e Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), explica que de 2011 a 2017 aconteceu na região Nordeste a chamada "seca do século". O especialista diz que, em relação àquela época, há uma sensação de "bonança", mas isso não se deve à chegada das águas pela Transposição, e sim à quantidade maior de chuvas.
"Essas imagens de 'bonança' no vídeo se devem aos extremos climáticos, que influenciam as chuvas no Nordeste", disse o especialista. "Esse ano foi de muita chuva na região. Não é por conta do projeto de integração do rio São Francisco, até porque essas águas não chegaram à maior parte da região. São populações rurais difusas as que mais sofrem com os impactos da seca".
Segundo o pesquisador, houve avanços no combate à seca, mas eles não são recentes e, portanto, não podem ser atribuídos apenas a Bolsonaro. Os principais avanços remontam, segundo Barbosa, aos anos 1990 e 2000, quando foram implantados programas de construção de cisternas. Para o especialista, a Transposição é importante, mas colabora, sobretudo, para amenizar os problemas de abastecimento.
"O nível de responsabilidade dos governos é gerar políticas de acesso à água", disse. "Foi o caso do 'Programa Um Milhão de Cisternas' e 'Uma Terra e Duas Águas', políticas públicas que descentralizaram o acesso à água no Semiárido, levaram o armazenamento da água para mais próximo das comunidades rurais. De uma maneira geral, os governos influenciam no processo de adaptação à seca, por meio de políticas hídricas e sociais, a exemplo das cisternas e demais tecnologias sociais", afirmou.
Os dois programas citados foram desenvolvidos no início dos anos 2000 pelo projeto Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e recebem financiamento do governo federal desde 2003, mas o orçamento vem sofrendo cortes desde 2013 e o número de cisternas construídas por ano está diminuindo, apesar da demanda.
Barbosa cita a presença comum dos carros-pipa na paisagem do Semiárido como um reflexo das políticas públicas emergenciais adotadas na região. "Se houvesse políticas permanentes de adaptação, a realidade seria menos sofrida para os moradores da região. A palavra adaptação, no contexto da mudança climática, se tornou a mais adequada para a questão do enfrentamento e da convivência com os impactos da seca", explicou.
Parte do Nordeste vive seca de fraca a moderada
Embora a situação atual seja melhor do que mostram as imagens do vídeo de 2012 e 2017, o Nordeste convive sim com a seca. O mapa mais recente gerado pelo Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas (ANA) mostra que, em junho de 2022, a maior parte da Bahia, uma pequena parte de Sergipe, parte de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí e Maranhão enfrentavam o que o monitor chama de seca fraca - quando há redução do plantio e dificuldade na recuperação de pastagens.
No mesmo período, uma pequena área na divisa da Bahia com Pernambuco, cerca de um terço do território da Paraíba e uma pequena porção do Ceará enfrentavam a seca moderada, quando há alguns danos à cultura e as pastagens, os reservatórios têm níveis baixos e há falta ou redução voluntária do consumo de água.
Em junho de 2020, quando Bolsonaro inaugurou um dos trechos da transposição que aparecem no vídeo, havia regiões vivendo seca fraca na Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Piauí. Bahia e Piauí também registravam áreas com seca moderada e grave, quando a perda de cultura e pastagens é provável, a escassez de água é comum e há restrições ao uso de água.
Em novembro de 2020, quando outro trecho da Transposição foi inaugurado, também havia seca fraca em todos os estados do Nordeste, além de seca moderada na Bahia, Piauí, Sergipe, Pernambuco, Paraíba e Maranhão. A seca grave afetava Bahia, Piauí e Maranhão. Nesse período, o Monitor de Secas destaca um recuo da seca moderada em alguns estados do Nordeste "devido à ocorrência de anomalias positivas de precipitação".
A situação era muito diferente daquela vista em fevereiro de 2017. O mapa do Monitor de Secas mostra toda a região Nordeste na seca, inclusive a faixa litorânea. A seca fraca se concentrava apenas no sul da Bahia e no noroeste do Maranhão. Havia seca moderada em parte do Maranhão, Piauí, Bahia e Ceará, mas a maior parte do território enfrentava a chamada seca excepcional, quando há perdas de cultura e pastagens generalizadas, escassez de água nos reservatórios, nos córregos e poços de água, criando situações de emergência. O Monitor explica que, nesse período, as chuvas foram mais escassas do que o esperado em boa parte da região Nordeste, o que contribuiu para a seca excepcional.
Execução da Transposição atravessou governos
De qualquer forma, as melhorias trazidas pela chegada das águas da transposição do São Francisco não podem ser atribuídas somente a Bolsonaro. As obras começaram em 2006, no governo Lula, com orçamento de R$ 4,5 bilhões. A previsão era de que o primeiro trecho fosse entregue em 2010, o que não foi cumprido. No final do segundo mandato, em 2010, o então presidente Lula disse que a obra seria entregue em 2012, o que também não aconteceu, como mostra trecho de reportagem do Jornal Nacional que aparece na metade do vídeo aqui verificado.
Ao longo dos anos, outros aditivos foram sendo feitos e os prazos também se prolongaram. Em setembro de 2019, o governo Bolsonaro informou que já haviam sido gastos R$ 10,6 bilhões e que seria necessário mais R$ 1,4 bilhão para concluir a obra, chegando a R$ 12 bilhões. Em fevereiro de 2022, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) deu a obra como concluída, mas uma parte considerável do projeto foi feita antes do início do governo Bolsonaro.
Em 2015, ainda no governo Dilma, foi entregue a primeira estação de bombeamento do Eixo Norte. Em novembro de 2016, três meses após Dilma deixar o poder, o Eixo Norte tinha 87,7% das obras físicas executadas e o Eixo Leste tinha 84,4%. Em 2017, Temer entregou o Eixo Leste, como mostrou esta checagem feita pelo Projeto Comprova no ano passado.
Em 2018, antes do início do mandato de Bolsonaro, as obras estavam 96,40% concluídas. O percentual aparece em uma página do MDR, que foi retirada do ar, mas recuperada por meio da ferramenta Wayback Machine. Atualmente, o MDR de Bolsonaro contesta o índice e diz que os percentuais não correspondem à realidade, já que muita coisa precisou ser refeita.
O Estadão Verifica localizou o perfil no TikTok eu postou o vídeo e deixou um comentário pedindo um e-mail para contato, mas não obteve resposta. O autor também tem um canal no YouTube, mas não há meio de contatá-lo. O responsável pelo conteúdo, o pastor evangélico Welles Costa, vive no município cearense de Acarape, cujo território não era afetado pela seca em junho deste ano, segundo o mapa mais recente do Monitor de Secas.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.