Um vídeo postado no Facebook em 2020 voltou a viralizar por causa da inauguração, pelo presidente Jair Bolsonaro, de um trecho da Transposição do Rio São Francisco em Pernambuco. Como outros materiais já checados pelo Estadão Verifica, a peça reúne partes de vídeos sobre a maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil e exagera a responsabilidade de Bolsonaro na transposição. O Projeto Comprova e o Verifica já mostraram que o atual presidente encontrou as obras mais de 90% executadas, mas o Ministério do Desenvolvimento Regional questiona os dados e diz que muito do que estava pronto teve de ser refeito.
O material que soma mais de 600 mil interações foi postado em 28 de junho de 2020. Dois dias antes, Bolsonaro havia aberto as comportas do reservatório de Milagres, no Eixo Norte, em Pernambuco, o que permitiu a chegada das águas ao reservatório do Jati, no Ceará. Os dois reservatórios estão entre as estruturas entregues desde 2019 por Bolsonaro, segundo informou o governo federal ao Verifica. No dia 8 de fevereiro, ele entregou em Salgueiro (PE) o Núcleo de Controle Operacional da Integração do São Francisco. O MDR considera a obra concluída.
É recorrente a circulação de vídeos na internet que mostram atrasos nas obras da transposição do São Francisco, cujo projeto é de 2006, no governo Lula (PT), em comparação às imagens de Jair Bolsonaro entregando trechos da transposição desde o primeiro ano de seu governo, em 2019 (1, 2, 3). A obra, contudo, não é apenas do atual governo e atravessou quatro gestões. Apesar dos atrasos e aditivos, há trechos sendo entregues desde 2015 nos governos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), antes da atual gestão.
No vídeo aqui verificado, há um compilado com trechos de três matérias jornalísticas - duas do Jornal Nacional e uma do Fantástico, da Rede Globo -, acrescidas de um vídeo publicado nas redes sociais de um vereador bolsonarista de Fortaleza.
Os vídeos
Jornal Nacional, junho de 2020
O vídeo completo tem 2 minutos e 34 segundos e reúne imagens de quatro origens diferentes. Os primeiros 30 segundos mostram a jornalista Renata Vasconcelos dividindo a tela com um trecho da reportagem narrada por ela na edição de 26 de junho de 2020 do Jornal Nacional. A reportagem de refere à abertura das comportas do reservatório de Milagres (PE) e a chegada das águas da transposição do reservatório do Jati (CE), naquele mesmo dia.
O vídeo sofre uma pequena edição - a inserção da imagem da jornalista lado a lado com o vídeo da reportagem, o que não acontece no vídeo original. A manutenção da imagem de Renata Vasconcelos do lado esquerdo da tela acaba passando um entendimento equivocado sobre o segundo vídeo, que não faz parte da reportagem.
Canal de vereador de Fortaleza (CE)
O segundo vídeo a aparecer no material aqui verificado também foi feito em junho de 2020, no Ceará, mas não integra o material do Jornal Nacional, como insinua o material checado ao manter a imagem da âncora do telejornal ao lado do vídeo inserido. Quem aparece nas imagens é o vereador de Fortaleza (CE) Inspetor Alberto (PROS). O vídeo, postado na página dele no Facebook em 30 de junho de 2020, já circula em outros canais no YouTube pelo menos desde o dia 28 daquele mês. O conteúdo também foi cortado - o original tem 4 minutos e 29 segundos e, nele, o homem diz que "graças ao presidente Jair Bolsonaro as águas do Rio São Francisco chegaram ao Ceará".
O único trecho exibido no material aqui verificado é a parte final, em que o vereador bolsonarista joga água de um dos canais para cima, diz que o líquido chegou para o povo beber e tomar banho, afirma que ama Bolsonaro e que seria capaz de dar a vida por ele. O vídeo se repete e é novamente exibido nos segundos finais da montagem, novamente ao lado da imagem de Renata Vasconcelos.
O perfil do vereador no site da Câmara Municipal de Fortaleza informa que "as bandeiras de seu mandato serão direcionadas conforme ações do governo de Jair Messias Bolsonaro". No ano passado, ele foi condenado a pagar R$ 5 mil de indenização por vídeo em que aparece atirando em foto do ex-presidente Lula.
Fantástico, janeiro de 2013
O terceiro vídeo a aparecer na montagem é de um trecho de uma reportagem do Fantástico exibida em 20 de janeiro de 2013. Foram usados dois trechos da reportagem, que tem quase 16 minutos. A primeira parte é um infográfico que mostra, em um mapa, os eixos da transposição. A segunda mostra a jornalista Sônia Bridi falando que a obra deveria ter sido concluída no final de 2012, embora ainda houvesse trechos abandonados àquela altura.
O vídeo verificado faz um corte entre o final do infográfico e o início da fala de Sônia Bridi: foi suprimida a parte em que ela afirma que a obra é polêmica e que grupos que se organizaram contra ela argumentavam que a transposição colocava o Rio São Francisco em risco.
Jornal Nacional, agosto de 2014
O penúltimo vídeo exibido é o trecho de outra reportagem do Jornal Nacional, desta vez de 21 de agosto de 2014, que mostrava a agenda da então presidente e candidata à reeleição Dilma Rousseff. É verdadeira a fala em que Dilma afirma que "só não atrasa obra de engenharia quem não faz". O vídeo se encerra com a fala de Dilma, antes de voltar a exibir imagem do Inspetor Alberto, de Fortaleza.
A obra, os atrasos e as entregas
A Transposição do Rio São Francisco é um projeto de 2006, formulado ainda no governo Lula e orçado em R$ 4,5 bilhões. As obras começaram em 2007 e a previsão era de que o primeiro trecho fosse entregue em 2010, o que não aconteceu. No final de 2010, o então presidente Lula disse que a obra seria entregue em 2012, mas foram sendo feitos novos aditivos e os prazos foram prorrogados.
Em 2012, o prazo foi prorrogado para 2015 e, naquele ano, a primeira estação de bombeamento da obra que é dividida em dois eixos - Norte e Leste - foi entregue pela então presidente Dilma Rousseff no Eixo Norte. Em 2017, o presidente Michel Temer entregou o Eixo Leste, como já mostrou esta checagem feita pelo Projeto Comprova.
Em novembro de 2016, três meses após Dilma deixar o poder, o Eixo Norte tinha 87,7% das obras físicas executadas e o Eixo Leste tinha 84,4%. Em 2018, antes do início do mandato de Bolsonaro, as obras já estavam 96,40% concluídas. O percentual aparece em uma página do Ministério do Desenvolvimento Regional, que foi retirada do ar, mas recuperada por meio da ferramenta Wayback Machine.
Em janeiro, o Verifica procurou o ministério para falar sobre o andamento das obras e sobre a participação do atual governo na transposição. Em nota, o ministério informou que "os percentuais de execução das obras divulgados pelas gestões anteriores não representam a realidade, já que, em decorrência das longas paralisações e necessidade de reparos em diversas estruturas e trechos concluídos, houve regressão nesses percentuais, necessidade de novos investimentos, bem como atrasos no término do empreendimento".
Ainda segundo o ministério, todos os atrasos e aditivos na obra provocaram um salto orçamentário: dos R$ 4,5 bilhões iniciais, a transposição saltou para R$ 8,2 bilhões, depois R$ 9,6 bilhões, até chegar ao orçamento atual de R$ 12 bilhões.
Segundo o ministério, ao longo de 2019 e 2020, o governo "concentrou as atividades e investimentos em manutenções de estruturas já construídas para que as águas, finalmente, pudessem avançar até os Estados beneficiados". No final do ano passado, trechos foram sendo entregues a partir de outubro, na chamada Jornada das Águas.
Com a entrega de mais um trecho em Pernambuco, nesta terça-feira (8), o governo federal considera a obra concluída, como aparece em seu site oficial. O Ministério do Desenvolvimento Regional afirma: "Em 2019, apenas 31,54% de todo o Eixo Norte estava em funcionamento. Hoje, esse percentual é de 100%. Em três anos, foram investidos mais de R$ 3,49 bilhões, o que corresponde a 25% de tudo que foi investido nas obras até hoje, mais de R$ 14 bilhões. A média anual de investimentos, R$ 1,16 bilhão, é a maior desde o início do projeto".
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.