O deputado federal Túlio Gadêlha (Rede-PE) não é autor de um projeto de lei que permitiria que pais se casassem com suas filhas. Na realidade, o PL 3.369/2015 é de autoria do parlamentar Orlando Silva (PCdoB-SP) e, como o Estadão Verifica demonstrou anteriormente, o texto não legalizaria o incesto. A proposta, na verdade, visa a ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado.
Uma postagem feita no Instagram afirma que o "marido de Fátima Bernardes" perdeu uma ação para a deputada federal Carla Zambelli (União Brasil-SP) "por projeto dele que permitia pai casar com a filha". Gadêlha de fato perdeu uma disputa judicial contra Zambelli (mais informações ao final do texto), mas a decisão não significa que o PL permitiria o casamento entre pais e filhos. Além disso, o deputado da Rede é namorado, não marido, da apresentadora de TV Fátima Bernardes.
O projeto de lei em questão foi feito em outubro de 2015 e segue em tramitação. Atualmente, é analisado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias e Gadêlha é relator da proposta. Em julho de 2019, ele deu um parecer favorável ao texto. Antes do parlamentar da Rede, o ex-deputado Jean Wyllys havia sido relator.
Diferentemente do que diz a postagem, o PL não permitiria casamentos entre pais e filhos. Em agosto de 2019, o Estadão Verifica desmentiu o boato de que a proposta legalizaria o incesto. Segundo o autor do PL, o texto procura reconhecer como família os casais homossexuais, além de outros relacionamentos que não possuem laços sanguíneos, como é o caso de enteados.
O PL tem apenas três artigos. O principal diz que: "São reconhecidas como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiam no amor, na socioafetividade, independente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas".
Ao Verifica, Gadêlha confirmou não ser o autor da proposta. Em 2019, ele havia explicado que "quando o texto cita 'união entre duas ou mais pessoas' não se refere a casamento, mas ampliação do conceito de família". Além disso, disse que o trecho do PL que menciona o termo "independente de consanguinidade" "não sugere casamento de pais e filhos, mas uma família formada por parentes, como avós e netos ou tios e sobrinhos".
Em 2019, o projeto Comprova publicou uma verificação sobre o PL e consultou duas especialistas, a professora de Direito da Família da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernanda Pimentel e a presidente da Comissão de Direito da Família da OAB Pernambuco, Virgínia Baptista. As duas disseram que o projeto de lei traz conceitos muito abertos, que permitem interpretações diferentes do objetivo dos autores. No entanto, destacaram que a lei -- caso sancionada -- seria interpretada por juízes no contexto das normas jurídicas existentes, que vedam as relações incestuosas. Por isso, seria improvável que permitisse o casamento entre pais e filhos.
O artigo 1.521 do Código Civil proíbe o casamento incestuoso. Para alterar essa legislação, o PL 3.369/2015 deveria mencionar explicitamente a mudança, o que não é feito. Atualmente, a Constituição Federal prevê o conceito de "família", em seu artigo 226, como "a união estável entre homem ou mulher e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes".
Em resposta ao Estadão Verifica, o deputado Orlando Silva informou que o PL é de sua autoria e disse que a matéria é alvo de "mentiras" e "absurdos". O parlamentar afirmou ainda que o projeto tem sido associado à pedofilia como estratégia política.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de Carla Zambelli, mas não obteve resposta até a publicação.
Ação na justiça
É fato, porém, que Túlio Gadêlha perdeu uma disputa judicial contra a deputada Carla Zambelli, envolvendo discussões em torno do PL 3.369/2015. O deputado pediu em tutela de urgência que um post feito por Zambelli nas redes sociais fosse excluído. Na postagem, a deputada afirmou que o PL considera como família a "poligamia" e o "incesto". Em um primeiro momento, a tutela de urgência foi negada; depois, Túlio entrou com novo recurso para mudar a decisão e novamente teve o pedido negado.
O desembargador Eurico de Barros Correia, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) entendeu que, mesmo sendo enganosa, a postagem da deputada está dentro da garantia da liberdade de expressão. Ele usou como referência decisão tomada anteriormente pelo ministro Alexandre de Moraes, no Supremo Tribunal Federal (STF). "O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional", argumentou.
Correia também considerou a imunidade parlamentar como justificativa para aceitar que a postagem continue circulando. Apesar de negar a tutela de urgência, a ação principal movida por Túlio Gadêlha contra Carla Zambelli ainda não foi julgada, ou seja, ele não perdeu a ação inicial, mas os recursos interpostos dentro do processo.
Este tema já foi objeto de checagens de Lupa, AFP e Boatos.Org.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.