O que estão compartilhando: vídeo em que o ex-candidato à presidência dos Estados Unidos Robert F. Kennedy Jr. afirma que a vacina DTP foi banida do país por ter causado danos cerebrais graves ou morte em uma a cada 300 crianças.
O Estadão Verifica apurou e concluiu que: é enganoso. Não há comprovação científica de que a vacina DTP (difteria, tétano e coqueluche) esteja relacionada a danos cerebrais ou mortes em crianças. Estudos científicos, enviados ao Verifica pelo Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, não encontraram relação de causalidade entre o imunizante e casos suspeitos. É a mesma conclusão do relatório do comitê que assessora a Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre vacinas. O grupo analisou se a DTP estava associada a casos de morte em crianças e concluiu, em 2004, não haver relação comprovada de causa e efeito. O imunizante segue sendo recomendado pela OMS e faz parte do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil.
Saiba mais: a declaração do político e advogado norte-americano Robert F. Kennedy Jr. foi feita durante sabatina promovida pelo canal NewsNation, em junho de 2023, quando ele era um dos candidatos do Partido Democrata às eleições presidenciais dos Estados Unidos. O trecho da transmissão sobre a vacina DTP voltou a circular nas redes sociais no Brasil e no exterior após Donald Trump ter sido eleito presidente dos EUA. Na quinta-feira, 14, Trump anunciou que irá nomear Kennedy Jr. para liderar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.
Kennedy Jr. é reconhecidamente um ativista antivacina e já teve diversas teorias contra os imunizantes desmascaradas por agências de checagens.
DTP não foi banida dos EUA, mas sim substituída
A vacina adsorvida difteria, tétano e pertussis (DTP - tríplice bacteriana infantil) protege contra três doenças consideradas graves: difteria, tétano e coqueluche. A DPT não foi banida dos EUA, mas sim substituída, na década de 1990, por uma outra formulação: DTaP, que utiliza o componente acelular da bactéria Bordetella pertussis, o que reduz a incidência de eventos adversos. Segundo o Ministério da Saúde, a bactéria é a causadora da coqueluche e principal responsável pelos eventos indesejáveis da vacina DTP.
A substituição nos EUA se deu em 1997, após eventos adversos terem levantado preocupações em diversos países quanto à segurança da DTP. Esse histórico é tratado no artigo Licensed pertussis vaccines in the United States (Vacinas licensiadas contra coqueluche nos Estados Unidos), publicado no jornal Human Vaccines & Immunotherapeutics, em 2014. Dentre esses eventos adversos, o artigo menciona reações sistêmicas graves: convulsão, episódio hipotônico-hiporresponsivo (moleza e palidez), choro persistente e inchaço de todo o membro. Porém, “nenhum deles associados a sequelas graves a longo prazo”.
O artigo cita que a maior preocupação, à época, estava relacionada a possíveis casos de encefalopatia aguda – segundo o Hospital Albert Einstein, encefalopatia “é um termo amplo para qualquer doença que altera o funcionamento ou a estrutura do cérebro”. No entanto, segundo o artigo, “estudos não detectaram nenhuma associação verdadeira entre DTP e encefalopatia”. O texto não menciona nenhum caso suspeito de morte após a vacinação.
“Como qualquer outra, a DTP é uma vacina que tem efeitos colaterais, mas não a ponto de matar a criança, nem nessa incidência que foi afirmada (no vídeo) de lesão cerebral grave ou morte. Não há qualquer comprovação disso”, explicou o professor de infectologia pediátrica da Universidade Federal Fluminense (UFF) André Araújo. “Mesmo os casos mais graves, de convulsão, episódio hipotônico-hiporresponsivo e encefalopatia verificados após a vacinação, são muito raros, momentâneos e reversíveis. Não há dano cerebral permanente”.
O artigo Licensed pertussis vaccines in the United States informa que a vacina DTP foi desenvolvida em 1948 e que sua ampla utilização nos EUA coincidiu com grande diminuição de incidência de coqueluche: de 115 mil a 270 mil casos anuais na era pré-vacina para 1,2 mil a 4 mil nos anos 1980.
CDC: estudos não comprovam dano cerebral
O Estadão Verifica entrou em contato com o Centro de Controle de Doenças (CDC), agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Em resposta, o CDC encaminhou três estudos científicos. De forma geral, eles não encontraram relação de causalidade entre a vacina DPT e a ocorrência de danos neurológicos ou cerebrais graves. Não há citação a mortes causadas pelo imunizante. O CDC listou os estudos acrescidos de comentários, que seguem entre aspas na relação abaixo:
- Risk of Serious Acute Neurological Illness After Immunization With Diphtheria-Tetanus-Pertussis Vaccine: A Population-Based Case-Control Study (Risco de doença neurológica aguda grave após imunização com a vacina contra a difteria-tétano-coqueluche: Um estudo de controle de casos com base na população) - publicado na revista Jama Network.
Segundo o CDC: “Este estudo avaliou a associação entre doenças neurológicas agudas graves e DTP. O estudo encontrou uma razão de chances estimada (OR) de 1,1 para doenças neurológicas graves dentro de 7 dias após a vacinação. Mas o intervalo de confiança incluiu 1 e, portanto, não foi estatisticamente significativo”.
- Adverse Effects of Pertussis and Rubella Vaccines (Efeitos adversos das vacinas contra a tosse convulsa e a rubéola) - publicada pela The National Academies Press.
Segundo o CDC: “O relatório do Instituto de Medicina, de 1991, concluiu que as evidências não embasavam uma ligação causal entre DTP e danos neurológicos permanentes”.
- Diphtheria-Tetanus-Pertussis Vaccine and Serious Neurologic Illness: An Updated Review of the Epidemiologic Evidence (A vacina contra a difteria-tétano-coqueluche e doenças neurológicas graves: Uma revisão atualizada das provas epidemiológicas) - publicada pela American Academy of Pediatrics.
Segundo o CDC: “Este artigo indica que lesão cerebral e DTP são uma coincidência e que o Estudo Nacional de Encefalopatia Infantil, conduzido no início dos anos 90, foi o único estudo que demonstrou essa associação, mas a associação provavelmente se deve a viés e acaso.”
O Estudo Nacional de Encefalopatia Infantil é mencionado na 2ª edição do Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação, de 2008, do Ministério da Saúde, que o classifica como uma “investigação de grande porte do tipo caso-controle realizada na Grã-Bretanha, no período de 1976 a 1979″. O manual informa que o estudo mostrou que o quadro de encefalopatia é raro, “com frequência estimada variando de 0,0 a 10,5 casos por um milhão de doses aplicadas da vacina”, diz o documento, acrescentando que “outros estudos realizados posteriormente confirmaram esses achados.”
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O manual ainda aponta que o Comitê Assessor em Práticas de Imunização (Acip) do CDC, em suas recomendações para o uso da vacina DTP, concluiu, em 1991, que: “Embora a DTP possa raramente causar sintomas que alguns têm classificado como encefalopatia aguda, não foi demonstrada relação causal entre a aplicação da vacina e lesão cerebral permanente. Se a vacina realmente causar lesão cerebral, a ocorrência desse evento deve ser extraordinariamente rara”.
O manual prossegue: “À conclusão similar, também chegaram o Comitê de Doenças Infecciosas da Academia Americana de Pediatria, a Sociedade de Neurologia Infantil dos EUA, o Comitê Assessor Nacional de Imunização do Canadá, o Comitê Britânico de Vacinação e Imunização, a Associação Pediátrica Britânica e o Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (IOM)”.
Fatores coincidentes
O estudo Diphtheria-Tetanus-Pertussis Vaccine and Serious Neurologic Illness: An Updated Review of the Epidemiologic Evidence, um dos referidos pelo CDC ao Verifica, menciona que “uma relação não causal (coincidência) pode explicar a relação temporal entre a vacina DTP e a doença neurológica”. Isso porque, segundo o estudo, “a vacina DTP é administrada na idade de emergência da doença neurológica idiopática (de causa desconhecida)”.
Pediatra infectologista e presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Renato Kfouri faz a mesma menção em contato com o Verifica: “Alguns episódios de encefalopatia foram descritos como encefalopatia aguda e reversível”, disse Kfouri. “Mas nunca foi comprovada essa relação de causalidade, porque geralmente você faz essas vacinas (DTP) aos 2, 4 e 6 meses, justamente quando essas manifestações neurológicas de paralisia cerebral acontecem no bebê”.
OMS: não há relação entre a vacina DTP e mortes
O Comitê Consultivo Global sobre Segurança de Vacinas (GACVS, na sigla em inglês), que assessora a Organização Mundial de Saúde (OMS), estabeleceu uma força-tarefa, no início dos 2000, para avaliar sugestões em artigos publicados e em quaisquer outras fontes de associação entre a aplicação da vacina DTP e aumento no número de mortes de crianças.
Em julho de 2004, os membros do comitê, de forma unânime, concluíram que não havia comprovação de efeito deletério da vacinação com DTP na sobrevivência infantil. A OMS recomenda a vacinação com três doses DTP durante a infância.
A Divisão de Suprimentos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em documento de julho de 2023, informa que garante o abastecimento da vacina DTP para aproximadamente 25 países anualmente. De acordo com o relatório, “vacinas contendo DTP têm o potencial de evitar aproximadamente 106 mil mortes (das quais 82% em crianças menores de cinco anos de idade) durante o período de 2021 a 2035″.
A DTP no Programa Nacional de Imunizações (PNI)
O Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde, oferta a vacina DTP na rotina do Calendário Básico de Vacinação da Criança como dose de reforço ao esquema primário realizado com a vacina penta (aos dois, quatro e seis meses de vida do bebê). Ela deve ser aplicada em duas doses: a primeira aplicação aos 15 meses de vida e a segunda aos 4 anos de idade.
O Ministério da Saúde afirma que vacina DTP disponibilizada no Sistema Único de Saúde (SUS) é segura, com raros eventos adversos graves associados. “Em sua maioria são eventos leves, de resolução espontânea e desprovidos de complicações maiores ou sequelas, não constituindo contraindicações para a administração de doses subsequentes (novas doses) da vacina”, diz a pasta em seu site, acrescentando que as principais reações que podem ocorrer são febre, irritabilidade e dores locais à aplicação.