Texto atualizado às 15h25 para incluir resposta do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR)
Um compilado de vídeos sobre as obras de Transposição do Rio São Francisco com mais de 1 milhão de interações no Facebook engana ao tentar atribuir apenas ao atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), a responsabilidade pelo projeto, considerado a maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil. Embora Bolsonaro venha fazendo entregas de trechos da transposição desde o primeiro ano de mandato, o atual presidente encontrou as obras com mais de 90% de execução quando assumiu a Presidência da República, em 2019. Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) disse que os percentuais não correspondem à realidade, sem informar em que estado real considera ter recebido as obras.
As obras de Transposição do Rio São Francisco começaram em 2006, quando o orçamento era de R$ 4,5 bilhões. A previsão era de que o primeiro trecho fosse entregue em 2010, o que não foi cumprido. No final do segundo mandato, em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse que a obra seria entregue em 2012. Ao longo dos anos, outros aditivos foram sendo feitos e os prazos também se prolongaram. Em setembro de 2019, o governo Bolsonaro informou que já haviam sido gastos R$ 10,6 bilhões e que seria necessário mais R$ 1,4 bilhão para concluir a obra, chegando a R$ 12 bilhões.
Apesar dos atrasos e aditivos, não é possível afirmar que apenas Bolsonaro tenha tirado o projeto do papel e levado água ao Sertão. A obra começou no governo Lula, atravessou os dois mandatos de Dilma Rousseff (PT), passou pelo governo de Michel Temer (MDB) - que inaugurou o Eixo Leste em 2017 - e continuou no governo Bolsonaro.
Em 2015, ainda no governo Dilma, foi entregue a primeira estação de bombeamento do Eixo Norte. Em novembro de 2016, três meses após Dilma deixar o poder, o Eixo Norte tinha 87,7% das obras físicas executadas e o Eixo Leste tinha 84,4%. Em 2017, Temer entregou o Eixo Leste, como mostrou esta checagem feita pelo Projeto Comprova no ano passado.
Em 2018, antes do início do mandato de Bolsonaro, as obras já estavam 96,40% concluídas. O percentual aparece em uma página do MDR, que foi retirada do ar, mas recuperada por meio da ferramenta Wayback Machine.
Compilado de vídeos viralizou no Facebook
O vídeo que viralizou no Facebook é uma montagem com outros sete vídeos sobre diversos momentos das obras de Transposição do Rio São Francisco. A maior parte deles é real, mas a narrativa omite que boa parte das obras foram entregues em governos anteriores e busca inflar a participação do atual presidente, como se apenas ele tivesse feito entregas. O vídeo foi compartilhado no Facebook pelo Major Diego Melo, que foi candidato a deputado federal do Piauí pelo PROS. Ele foi procurado, mas não respondeu.
Vídeo 1: Lula em 2010
O primeiro vídeo da montagem, em que o ex-presidente Lula aparece falando sobre o prazo de entrega da obra, é de dezembro de 2010. A poucos dias do fim de seu segundo mandato, Lula fez uma viagem pelo Nordeste do País e, na cidade de São José de Piranhas, na Paraíba, disse que a obra de Transposição do Rio São Francisco ficaria pronta em 2012.
"Estou percebendo que a obra vai ser inaugurada definitivamente em 2012, a não ser que aconteça um dilúvio, qualquer coisa", disse ele. "Mas está previsto a gente inaugurar definitivamente a obra até 2012, o que será a redenção da região mais sofrida do Nordeste brasileiro, e o povo do Nordeste vai poder decidir a utilização dessa água". A frase foi ao ar no Jornal Nacional.
Vídeo 2: Morador de Sertânia em 2013
Na sequência, aparece vídeo de uma entrevista a um morador da cidade de Sertânia, em Pernambuco, em que ele diz que "a firma foi embora, começaram a fazer o serviço aí, depois abandonaram aí e tá desse jeito que tá agora, só a buraqueira". A postagem verificada afirma que a fala é de 2012, quando se encerrou o prazo estipulado por Lula, mas isso não é verdade. O vídeo original é do Estadão e foi publicado em maio de 2013. A reportagem mostra que vários trechos da obra estavam abandonados.
Vídeo 3: Falas de Dilma em 2012
A terceira parte da montagem reúne dois clipes e a reprodução de uma reportagem do portal G1. Primeiro, é mostrado o trecho de uma fala da ex-presidente Dilma em 8 de fevereiro de 2012 durante uma visita às obras do projeto na cidade de Floresta (PE). Ela disse que o então ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, havia renegociado e reequilibrado os contratos para que a obra não tivesse nenhum problema de continuidade. A fala foi publicada pelo Jornal do Commércio.
Ao mesmo tempo em que a presidente discursa, o vídeo exibe uma reportagem do G1 sobre uma investigação da Polícia Federal sobre desvios de R$ 200 mi das obras de Transposição do São Francisco. A reportagem é real, mas é do mesmo ano da fala de Dilma, em 2012. Ela foi publicada em 2015 e mostra que o orçamento inicial, que era de R$ 4,5 bi em 2006, saltou para R$ 8,2 milhões naquele ano, quase uma década depois.
Na sequência, vem mais um trecho da fala de Dilma na cidade de Floresta, em que ela afirma que até o final daquele ano (2012) seria concluída a primeira etapa da obra, uma "etapa piloto", e que as obras seguiriam "progressivamente até o final de 2014".
Vídeo 4: Cobrança de sertanejo em 2013
Após a fala de Dilma sobre entregar obras até 2014, a montagem insere a fala de um sertanejo cobrando a entrega da transposição, junto com a legenda: "e veio 2014...". A fala do homem, contudo, não é de 2014, e sim de maio de 2013. O vídeo é mais um trecho de material produzido pelo Estadão, na mesma reportagem utilizada anteriormente. O homem que fala, desta vez, é morador de Floresta (PE).
Vídeo 5: Influencer bolsonarista em 2021
A quinta parte da montagem é uma gravação feita pelo influencer bolsonarista Maicon Sulivan na cidade de Floresta (PE). No vídeo, publicado no Instagram de Sulivan em 12 de julho de 2021, ele afirma que Lula negou água aos nordestinos, enquanto concluiu obras no exterior. As obras a que ele se refere são operações de crédito do BNDES para que construtoras brasileiras executassem projetos no exterior. De acordo com levantamento feito pelo Estadão, foram 86 obras desde 1998, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Maicon afirma que Bolsonaro fez "o sertão virar mar" e acabou com a "máfia dos caminhões-pipa". Em julho do ano passado, mesma época em que o vídeo foi publicado, o Projeto Comprova mostrou que era plausível que a Transposição do São Francisco reduzisse a dependência de carros-pipa, mas não era possível afirmar categoricamente que Bolsonaro "acabou com a máfia dos carros-pipa".
Nos quatro Estados contemplados pela Transposição -- Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte - havia até aquele momento 99 municípios beneficiados pelas águas. Destes, 46 dependiam integralmente de carros-pipa antes da transposição. O próprio governo federal oferece esse serviço através da Operação Carro-Pipa, do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), desde 1998.
Em agosto deste ano, contudo, o MDR informou que a operação seria suspensa a partir de setembro no semiárido de Minas Gerais porque todos os recursos já tinham sido gastos. Em outubro, a suspensão da operação em Sergipe deixou 50 mil pessoas sem água potável.
Vídeo 6: Água na Paraíba
O penúltimo vídeo da sequência mostra pessoas tomando banho, enquanto a voz de um homem narra que as imagens são na Barragem de Boa Vista, na Paraíba. O vídeo foi postado pelo presidente Jair Bolsonaro em sua conta do Instagram no dia 27 de dezembro de 2021, com a indicação de que as imagens são do canal no YouTube Lorim Aventuras. As imagens foram carregadas no canal no dia 28 de outubro de 2021, seis dias depois de o MDR informar que as águas da transposição já tinham chegado ao Reservatório Boa Vista através do Eixo Norte.
Vídeo 7: Canal do Sertão, Alagoas, 2020
O último vídeo da sequência é de novembro de 2020, quando Bolsonaro inaugurou uma etapa da construção do Canal do Sertão, em Alagoas, que vai levar água do Rio São Francisco a 42 municípios do Estado. Durante a entrega, Bolsonaro provocou aglomeração e não usou máscara.
Andamento das obras
O Estadão Verifica entrou em contato com o MDR para saber qual o andamento atual das obras e que etapas foram entregues por cada um dos presidentes anteriores. Em nota, o ministério informou que "os percentuais de execução das obras divulgados pelas gestões anteriores não representam a realidade, já que, em decorrência das longas paralisações e necessidade de reparos em diversas estruturas e trechos concluídos, houve regressão nesses percentuais, necessidade de novos investimentos, bem como atrasos no término do empreendimento".
O MDR informou que, com entregas feitas em outubro passado durante a Jornada das Águas, 100% das obras físicas do Eixo Norte foram concluídas e falta agora apenas, obras e serviços auxiliares e complementares, como a limpeza do rio Piranhas-Açu, a instalação de bombas no trecho, estradas e pontes de acesso ao local, drenagem e proteção de taludes. A previsão de que a água finalmente chegue ao Rio Grande do Norte, último ponto da transposição, é fevereiro de 2022.
De acordo com o MDR, as obras começaram efetivamente em 2008, com previsão de entrega em 2012. Em 2007 foi feita a licitação da obra com o Projeto Básico. Ao longo da execução, segundo o ministério, o Projeto Executivo apresentou novos serviços fundamentais para garantir a funcionalidade e conclusão da obra, que não estavam contemplados naqueles contratos.
Os atrasos e aditivos nos valores foram, de acordo com o MDR, decorrentes de "diversas paralisações, em decorrência da ineficiência do processo de planejamento das gestões anteriores e denúncias de corrupção". Dos 16 lotes da obra na época, nove chegaram a ficar parados. "Algumas prestadoras de serviço pediram adicionais acima de 25% para prosseguir com a execução das obras. Diante da negativa do governo à época, algumas desistiram, tornando necessário realizar novas licitações para diversos trechos, o que demandou, também, novas reprogramações de prazos ao longo dos anos", diz a nota.
O MDR acrescenta que, com danos na estrutura e regressão física na obra, houve um salto orçamentário e entraram novas condicionantes para licenciamento ambiental que significaram mais R$ 1 bilhão. O orçamento atual é de R$ 12 bilhões.
Questionado sobre entregas anteriores, o MDR infirmou que, em 2017, "ocorreu o início da pré-operação do Eixo Leste do Projeto, para abastecer a Região Metropolitana de Campina Grande, que corria o risco de entrar em colapso hídrico. Neste período, as obras físicas necessárias para o caminho das águas no Eixo Leste estavam concluídas, restando serviços complementares".
Já em 2019 e 2020, o ministério se concentrou na manutenção das estruturas já construídas para as águas, como reparos no Dique 1217 e Negreiros, em Pernambuco, e na Barragem do Jati, no Ceará, todas no Eixo Norte. No Eixo Leste, foi feito um reparo após um vazamento na Barragem de Cacimba Nova (PE).
Desde 2019, de acordo com o MDR, ocorreu no Eixo Norte o acionamento da comporta do Reservatório do Jati, o início dos testes no Cinturão das Águas do Ceará, o início da execução da obra no Ramal do Apodi, a contratação de infraestrutura de irrigação em 13 Vilas Produtivas Rurais, a instalação de infraestrutura de abastecimento em comunidades rurais e indígenas, a chegada de água na Paraíba pelo Eixo Norte, o acionamento da capacidade máxima do Eixo Norte e a publicação do edital de licitação para as obras no Ramal do Salgado. As estruturas entregues foram os reservatórios Negreiros, Milagres, Jati, Atalho, Porcos, Cana Brava, Cipó, Boi e Morros, além do Túnel Milagres.
Já no Eixo Leste foi inaugurado o Ramal do Agreste e se iniciou a instalação de infraestrutura de abastecimento de comunidades rurais e indígenas, além de irrigação para a Vila Produtiva Rural de Lafayette. O MDR informou ainda que vem priorizando obras hídricas estruturantes, com mais de R$ 4,1 bi investidos desde 2019.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.