O que estão compartilhando: que jornalistas da GloboNews revelaram ligações entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a eleição de Lula para a Presidência da República em 2022.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: está fora de contexto. O vídeo exibe trechos de comentários das jornalistas Eliane Cantanhêde e Miriam Leitão em edições diferentes de programas da GloboNews que foram ao ar em 23 de novembro de 2023. Nas duas ocasiões, as jornalistas comentam sobre o sentimento de traição entre ministros do STF diante do voto do senador Jaques Wagner (PT), líder do governo no Senado, favorável à PEC que limita decisões monocráticas da Corte.
Sem o contexto em que as declarações foram feitas, o vídeo engana porque sugere que Lula foi eleito graças a uma intervenção ilegal do STF na votação. Essa interpretação fica clara nos comentários nas postagens que viralizaram nas redes. Na realidade, quando disse que “a eleição de Lula dependeu do Supremo”, Eliane Cantanhêde se referia a decisões do STF que, segundo ela, teriam sido tomadas para evitar um golpe de Estado. Já a fala de Miriam Leitão, sobre um agente do Ibama ter lhe dito que seguia uma ordem do STF, dizia respeito a uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso em uma ação judicial, e não a uma interferência na eleição
Saiba mais: Os dois comentários exibidos no vídeo viral foram feitos por Eliane Cantanhêde e Miriam Leitão em programas que foram ao ar em 23 de novembro, um dia depois de o Senado aprovar, com ajuda do voto do senador petista Jaques Wagner, uma Proposta de Emenda à Constituição que limita decisões monocráticas do STF.
Na prática, a PEC 8/2021 tem como principal objetivo limitar decisões monocráticas de magistrados. Os ministros do STF – e também os desembargadores de tribunais estaduais – ficam impedidos de suspender a vigência de leis aprovadas pelo Legislativo por meio de decisões individuais.
As exceções ficam por conta de decisões tomadas pelo presidente da Corte, durante o recesso do Judiciário e em casos de “grave urgência” ou “risco de dano irreparável”. Mesmo assim, o tribunal precisará julgar o caso coletivamente em até 30 dias após o retorno aos trabalhos.
A orientação do PT era que seus senadores votassem contra a PEC, mas Wagner votou favorável à proposta, motivo pelo qual a posição foi considerada uma “traição” por ministros do STF, como mostrou o Estadão. Segundo Wagner, o voto foi uma decisão individual, o que, de acordo com o comentário de Eliane Cantanhêde, não convenceu os magistrados.
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O que disse Eliane Cantanhêde
A fala da jornalista Eliane Cantanhêde usada no vídeo viral foi retirada de um comentário feito no programa GloboNews em Pauta, na noite de 23 de novembro deste ano. Eliane falava sobre como o voto de Jaques Wagner foi recebido no STF, entendido como uma “traição rasteira” e, ainda, como os ministros se defenderam afirmando que nem todas as decisões monocráticas – alvos da PEC – eram ruins, a exemplo daquelas tomadas durante a pandemia.
Quando Eliane iria falar sobre “o outro lado”, ela foi interrompida pelo âncora do programa, Marcelo Cosme, que pediu que ela explicasse sobre uma declaração anterior, de que um ministro do STF com quem ela havia conversado tinha pedido a saída de Jaques Wagner da liderança do governo no Senado.
Cosme então questionou se isso não seria uma intervenção do STF no governo, e Cantanhêde responde que, de acordo com um ministro com quem ela conversou – e que não teve o nome revelado – a interpretação no STF é que o voto de Jaques Wagner não foi individual, e sim decidido com anuência do ministro da Casa Civil, Rui Costa, e do próprio presidente Lula, motivo pelo qual teria acabado a “lua de mel” entre a Corte e o governo. Antes, ela citou decisões da Suprema Corte de tom mais progressista que o Congresso vem tentando derrubar, como a tese do marco temporal – rejeitada no STF – e o casamento homoafetivo, aprovado pela Corte há anos.
O vídeo, contudo, não exibe o contexto da fala de Cantanhêde e usa apenas um trecho de poucos segundos, ela que ela fala:
“A gente vê que o Supremo tá se sentindo traído. Por quê? Porque a eleição do Lula dependeu do Supremo, a vitória do Lula, enfim, toda essa reviravolta que houve dependeu do Supremo, e o Supremo foi o carro-chefe na defesa da democracia. Essa é a posição deles”.
Sem mostrar a fala completa da jornalista, que tem pouco mais de seis minutos de duração, o vídeo permite a interpretação de que o STF interferiu no pleito de 2022 para eleger Lula, o que não é verdade. A própria fala de Cantanhêde diz que o Supremo foi “o carro-chefe na defesa da democracia”. Em outras participações na GloboNews no mesmo dia, a jornalista afirma que o STF tomou decisões para impedir um golpe de Estado no Brasil.
“A grande resistência à audácia do Bolsonaro na pandemia e a grande resistência à tentativa de golpe nesse País foi do Supremo Tribunal Federal. Então, eu acho que todo o interesse não era discutir uma posição melhor, era fazer um confronto com o Supremo”, disse Cantanhêde no programa Central GloboNews.
O contexto da fala de Miriam
O argumento de Eliane Cantanhêde sobre o STF ter defendido a democracia aparece um pouco antes da fala de Miriam Leitão, que também foi usada no vídeo verificado aqui e que igualmente precisa de contexto. A fala de Miriam foi retirada do programa Central GloboNews de 23 de novembro de 2023, que continuava a repercutir a aprovação da PEC das decisões monocráticas. O trecho compartilhado no vídeo viral é:
“Sabe que na apuração pro meu livro, eu encontrei, eu falei com um cara do Ibama que tava lá atuando, firmemente, mesmo no pleno governo que dizia que eles não podiam queimar equipamentos. Eles iam lá e queimavam. Mas por que vocês faziam isso? O governo fala que não podia. Ele falou assim: ‘A gente recebeu ordem do Supremo pra fazer isso’. E era uma ordem do ministro Barroso”.
Miriam se referia à apuração para o livro Amazônia na encruzilhada: o poder da destruição e o tempo das possibilidades, lançado este ano. O vídeo corta o final da declaração da jornalista, quando ela explica que a ordem do ministro Luís Roberto Barroso foi uma decisão judicial no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, formulada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Na época, Barroso mandou suspender atos da Fundação Nacional do Índio (Funai) que desautorizavam as atividades de proteção territorial em terras indígenas não homologadas. Miriam fala desse caso para citar um exemplo de decisão monocrática tomada pelo STF que foi importante para o Brasil.
A jornalista também reforçava os argumentos da própria Eliane Cantanhêde e do jornalista Merval Pereira sobre as intenções por trás da PEC das decisões monocráticas. Primeiro, Cantanhêde analisou que a PEC não terá efeito prático e que o objetivo da proposta era, na verdade, fazer uma provocação ao STF. Eliane ressaltou que boa parte dos parlamentares que fizeram a proposta eram da base aliada de Jair Bolsonaro no governo passado.
Merval Pereira comenta que concorda com a colega e afirma que o STF “foi a principal defesa da democracia porque tem poderes pra isso”, mas que cada mudança como essa, proposta pelo Congresso, tira a capacidade de o Supremo reagir a tentativas de golpe. “Se essa PEC estivesse valendo, por exemplo, o Bolsonaro podia fazer o que ele quisesse que o Supremo não poderia barrar o Bolsonaro. Então, eu acho que esse é um ponto importante”, diz.
É nesta sequência que aparece a fala de Miriam Leitão, argumentando que nem todas as decisões monocráticas são ruins. Este trecho da fala, contudo, foi cortado do vídeo viral. Miriam continuou, depois do trecho exibido: “[A decisão sobre o Ibama] era uma ordem do ministro Barroso, que tomou a decisão na 709 e [disse]: ‘Vai lá e preserva essas terras’. Ele estabeleceu o que fazer, deu ordens pro governo sobre o que fazer na preservação de terra indígena e na preservação da vida de indígenas. Isso foram alguns. Foram vários exemplos, né? Mas foram vários exemplos de decisões tomadas pelo Supremo que evitaram o pior em muitas áreas da vida do País. O golpe é uma parte da história, mas tem também o desgoverno Bolsonaro que foi contido pelo Supremo”, argumenta.