O Atol das Rocas é um ecossistema em constante transformação, tanto do ponto de vista geológico quanto biológico. Parece nunca descansar, com as cores e formas de sua paisagem mudando a cada clique do relógio. Às vezes parece um deserto de sal, em outras um mar de esmeraldas ou um aquário iluminado por lâmpadas mágicas de néon turquesa. Duas vezes por dia ele se enche de água, depois esvazia, como um pulmão oceânico. E quem não prestar atenção nesse vai e vem pode acabar perdido. "Esse aqui é o nosso relógio", diz o biólogo Hudson Batista, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, apontando para uma folha de papel com a tábua de marés, colada na parede da base científica da reserva, ao lado da cozinha. Seja homem, ave ou tubarão, todos no atol têm de se curvar à vontade das marés. São elas que ditam as regras para tudo; para comer, caminhar, lavar a louça, pesquisar, navegar, acordar ou dormir, entrar ou sair.O ponto mais alto do atol está apenas 3 metros acima do nível do mar. Na maré alta, as únicas partes que ficam fora d'água são duas ilhas rasteiras: a do Farol, onde está instalada a base de pesquisa, e a do Cemitério, onde pescadores, navegantes e faroleiros do passado costumavam enterrar seus mortos. Na maré baixa, pode-se caminhar quilômetros sobre um manto de areias brancas e mergulhar em piscinas naturais de um azul inacreditável, com vários metros de profundidade, formadas nas bordas mais espessas do platô recifal. Só cuidado se estiver a pé, para não ser pego sem bote quando a maré subir.As correntezas são fortes e arrastam areia - e eventualmente mergulhadores - para lá e cá todos os dias, moldando continuamente e metodicamente a morfologia do atol. O farol antigo, quando foi construído uns 80 anos atrás, ficava quase que no centro da ilha, com uma base de 3 metros de altura enterrada na areia. Hoje, suas ruínas estão na linha da praia, praticamente dentro d'água, com a tal base totalmente exposta e forrada de siris avermelhados, chamados aratus, que se mesclam com o tom ferruginoso da estrutura e escalam suas paredes com a agilidade de lagartixas. A areia foi para outro lado, e os destroços submersos viraram refúgio de polvos e moreias, para infelicidade dos aratus.A única parte do atol que fica sempre debaixo d'água é uma laguna na parte nordeste do recife, com até 6 metros de profundidade. Ela é conectada ao mar de fora por um cânion submarino cheio de corredores, túneis e cavernas, chamado Barretão, povoado por barracudas e tubarões, que também aproveitam para circular pelo resto do atol quando a maré está cheia. Da porta da base de pesquisa pode-se vê-los facilmente, cruzando como manchas escuras pelo canal de água cristalina que se forma entre as duas ilhas e que dá acesso a um outro cânion, menor, chamado Barretinha."Esse atol é muito louco", como gosta de dizer a chefe da reserva, Maurizélia de Brito Silva, em bom sotaque potiguar.Inspiração. A única coisa imutável em Rocas é a admiração e a paixão que o lugar desperta em todos aqueles que o visitam. "Lembro-me de quando entrei no atol e vi aquela água supertransparente pela primeira vez; foi uma sensação indescritível", conta o oceanógrafo Paulo Oliveira, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, que pesquisa tubarões e raias na reserva há mais de 15 anos, desde os tempos de graduação. "Quando pulei do bote e pisei na areia pela primeira vez, foi inevitável, as lágrimas rolaram." "Trabalhar no atol é um deslumbramento contínuo, com momentos que beiram o conto de fadas", diz a bióloga Alice Grossman, que lá trabalhou por muitos anos com tartarugas-marinhas, pelo Projeto Tamar. "É um ambiente totalmente único, diferenciado", diz o pesquisador Rodrigo Leão Moura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Em que outro lugar do Brasil você vê tubarão da areia, sentado na praia?"Moura fez seu trabalho de mestrado no atol, entre 1996 e 1998. Na época, as instalações da reserva resumiam-se a barracas, infestadas de ratos e escorpiões, e o equipamento de mergulho de Moura era um compressor de ar de pintura que ele adaptou em casa, conectado a uma mangueira e um respirador bucal. "Eu levava o compressor no bote, conectava a manqueira e caía na água", lembra ele. O resultado foi o primeiro inventário da biodiversidade de peixes do atol, contendo 47 espécies. Hoje, sabe-se que há mais de cem, com certeza, além de várias outras ainda não catalogadas ou totalmente desconhecidas.Diferencial. Apesar de a biodiversidade de Rocas ser relativamente pequena, comparada à de outros lugares (tem "apenas" 10 espécies de coral, enquanto que Abrolhos tem 20, por exemplo), o atol proporciona aos cientistas uma oportunidade única de pesquisar biodiversidade e ecologia marinha num ambiente verdadeiramente selvagem, sem poluição e quase que inalterado pelo homem - mesmo com a pressão da pesca e todas as tentativas de ocupar o atol no passado. "Qualquer pesquisador vai te dizer que ter uma chance de estudar um organismo marinho num ambiente protegido como esse é um luxo", diz Alice. O atol é especialmente ótimo para o estudo dos hábitos reprodutivos da tartaruga-verde, uma espécie que só desova em ilhas oceânicas. As águas rasas, protegidas e transparentes do interior do recife permitem observar os rituais de cópula com proximidade e nitidez inigualáveis. Também é possível coletar dados preciosos sobre jovens e machos; algo dificílimo de se fazer em outras condições, já que eles normalmente ficam em águas abertas e apenas as fêmeas adultas sobem às praias para desovar."É quase como um laboratório", diz a diretora técnica nacional do Tamar, Neca Marcovaldi. "Não é um lugar fácil de chegar nem de ficar, mas quando você chega lá as condições de pesquisa são únicas." Fora da água, Rocas não perde a importância. O atol compõe, junto a Fernando de Noronha, o maior centro de reprodução de aves marinhas do Atlântico Sul.Há cinco espécies residentes (uma de trinta-réis, duas de viuvinhas e duas de atobás), além de 25 itinerantes. E não há como não notá-las. Quem manda nas ilhas do atol são elas. Os trinta-réis e as viuvinhas-marrons, que são os mais numerosos, falam sem parar, ocupam cada metro quadrado de areia ao redor da base de pesquisa, e adoram voar pertinho de nossas cabeças, como se fossem pousar nelas, toda vez que saímos para caminhar. As varandas da casa tiveram de ser revestidas com redes, para não serem dominadas por elas."A sensação aqui é que a gente é que está numa gaiola", diz Leandra Gonçalves, coordenadora do Programa Costa Atlântica da SOS Mata Atlântica - que pagou pela base. "O ambiente é delas. Claramente, nós é que somos os invasores."Todos concordam: esse atol é mesmo muito louco.População teve redução inexplicada nos últimos anos; isolamento do atol torna espécies residentes mais vulneráveisRecife incrustado notopo de uma montanha de 4 mil metros foi todoconstruído por algas e outros organismos vivosA abundância de tubarões e raias sempre foi um dos principais atrativos da biodiversidade do Atol das Rocas, tanto pelo fascínio quanto pelo medo que esses grandes peixes cartilaginosos - chamados elasmobrânquios - inspiram no imaginário popular. Ambos podem ser vistos com facilidade nas águas rasas e cristalinas da reserva, tanto na área interna quanto do lado de fora do anel recifal. Ou pelo menos podiam, até recentemente.Nos cinco dias que passamos mergulhando em diferentes pontos do atol, no início deste mês, não vimos nenhuma raia. E não foi por falta de atenção, segundo o oceanógrafo Paulo Oliveira, do Departamento de Pesca da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Um trabalho publicado em 2008 estimou que havia cerca de cem raias-prego (Dasyatis americana) vivendo no atol. Desde então, segundo ele, as raias vêm "desaparecendo" da reserva, por razões desconhecidas. "É uma preocupação nossa", diz o pesquisador. "Estamos bolando algumas hipóteses para tentar explicar isso."A primeira possibilidade que vem à mente é a pesca. Mas Oliveira acredita que não seja o caso, considerando que nos últimos anos a pesca ilegal foi quase que erradicada da reserva. Uma possibilidade, segundo ele, é que a população de raias residentes da reserva tenha "empobrecido" geneticamente ao longo do tempo, por falta de conectividade com outras populações. O Atol das Rocas é um hábitat excelente, porém isolado no topo de uma montanha submarina, rodeada por extensas planícies com milhares de metros de profundidade. Uma barreira natural à dispersão das raias-prego, que vivem associadas ao substrato de águas rasas. "Como não há indivíduos de outras populações chegando, a variabilidade genética da população diminui e a taxa de mortalidade natural acaba superando a de natalidade", diz Oliveira, que planeja coletar amostras para estudos genéticos em sua próxima expedição ao atol - se encontrar raias suficientes para isso. Uma hipótese mais animadora é que seja uma oscilação populacional natural, relacionada a algum tipo de comportamento das raias. Sem dados históricos, porém, não há como saber isso.Tubarões. O número de tubarões na reserva também parece estar diminuindo, "mas não em nível preocupante como o das raias", segundo Oliveira. Uma observação corroborada por pescadores e velejadores de longa data do atol. Também nesse caso, o isolamento geográfico pode se tornar uma ameaça. As duas espécies mais comuns do atol são o tubarão-limão e o tubarão-lixa, ambas residentes, que passam todo o seu ciclo de vida associados aos ecossistemas recifais do atol. "São populações exclusivas da reserva. Se a gente mexer com elas, não virão mais tubarões de outros locais para repovoá-la", alerta Oliveira. "Isso as torna muito mais vulneráveis à extinção."No inverno, os tubarões-lixa predominam no interior do atol, que serve como um berçário perfeito. Circulam pelas águas transparentes do areal central durante a maré alta e entocando-se nas piscinas naturais de suas bordas durante a maré baixa.No verão, é a vez do tubarão-limão, cujos filhotes vêm se refugiar nas praias para escapar dos próprios pais. A espécie não tem hábitos de cuidado parental. O filhote que der bobeira pode acabar sendo devorado por um adulto. "O tubarão nasce e já nada para longe da mãe", diz Oliveira. Sorte dos pesquisadores, que nem precisam ir atrás dos tubarões. Basta esperar na praia que os tubarões vêm até eles. A formação do Atol das Rocas é uma história que exige no mínimo três disciplinas para ser contada: geologia, oceanografia e biologia. O atol fica no topo de um monte submarino de origem vulcânica, de aproximadamente 4 mil metros de altitude (mil metros a mais que o Pico da Neblina, a montanha mais alta do Brasil na superfície). Mas sua estrutura não é vulcânica. Tudo que se vê e se toca em Rocas é de origem biogênica, construído por organismos vivos.O atol é essencialmente um recife circular que começou a se formar mais de 5 mil anos atrás, crescendo como uma coroa ao redor do pico da montanha, que hoje está 25 metros abaixo da superfície, segundo o pesquisador Ruy Kikuchi, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia. "Para crescer até atingir o nível do mar, deve ter levado cerca de 4 mil anos. E para tomar o formato de anel fechado, mais uns mil anos", estima ele, com base em amostras de sedimento extraídas do interior do atol.Os principais responsáveis pela construção do recife, curiosamente, não foram os tradicionais corais, que são minoria em Rocas. Cerca de 70% da obra foi realizada por algas coralinas incrustantes, que têm a mesma capacidade para precipitar carbonato de cálcio da água do mar. O atol, nesse sentido, pode ser visto como uma grande comunidade rígida de algas coralinas em forma de estádio de futebol, dentro e ao redor da qual vivem outros organismos marinhos.A área do atol é de 5,5 km², suficiente para acomodar cerca de 70 Maracanãs. Ainda assim, é um dos menores atóis do mundo, e o único do Atlântico Sul. "Poucos montes submarinos estiveram em profundidade ideal para acumular carbonato de cálcio tempo suficiente para formar um anel recifal no entorno de elevações", explica Kikuchi.A cadeia de montanhas submersas à qual ele pertence estende-se numa linha oeste-leste desde a costa do Ceará até Fernando de Noronha, que é o topo emerso do último monte - e que poderá, também, se transformar em um atol no futuro, com mais alguns milhares de anos de erosão e subsidência, processo pelo qual o assoalho oceânico "afunda" à medida que resfria e fica mais pesado, puxando o topo das montanhas oceânicas para baixo. "Rocas pode ser o amanhã de Noronha", avisa Kikuchi.Milhões de anos atrás, quando o nível do mar chegou a estar mais de cem metros abaixo do nível atual, o topo da montanha de Rocas estava na superfície e é possível que ele tenha sido um vulcão ativo - como foi Fernando de Noronha. Mas não há evidências disponíveis para determinar isso por enquanto. "Ninguém tem amostras dessa rocha vulcânica de Rocas", diz o geólogo marinho Natan Pereira, da Universidade Federal de Pernambuco, que produziu um mapa geomorfológico do atol para seu trabalho de mestrado. Em Noronha, elas estão expostas na superfície. Em Rocas, estão enterradas no substrato marinho.Mais a fundo. Também há muita biodiversidade "escondida" do lado de fora do anel recifal de Rocas. Talvez até mais.Um grupo de pesquisadores está mapeando a superfície do platô que se estende a leste e oeste do atol, em profundidades de até cem metros. Resultados das primeiras expedições, iniciadas em 2011, já revelam a presença de muitos recifes coralíneos. "A cobertura de corais na área funda é bem maior que no raso", diz o pesquisador Rodrigo Leão Moura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Também foram detectados bancos de rodolitos - esferas de algas coralinas que podem ser "coladas" umas nas outras por esponjas (foto abaixo), dando origem a estruturas recifais maiores que podem ser importantes na geomorfologia do atol.