Análise|A África do Sul está se afastando do legado de Mandela, e isso não é bom


Trinta anos após o fim do apartheid, a África do Sul passa por outra transformação complexa; seu futuro é incerto, mas dada a fragmentação do país, dificilmente será boa

Por William Shoki
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - A cerimônia passou virtualmente despercebida. Em um dia nublado de abril, na capital administrativa da África do Sul, Pretória, o presidente Cyril Ramaphosa pronunciou um discurso apagado em celebração ao fim do governo da minoria branca na África do Sul. Quando Nelson Mandela tomou posse como primeiro presidente negro do país, os céus estavam ensolarados de esperança. Trinta anos depois, a imagem enfraquecida de Ramaphosa em um cenário cinzento simbolizou um declínio. O Congresso Nacional Africano (CNA), partido do presidente, dominou a política da África do Sul desde a primeira eleição democrática no país, em 1994. Nas eleições gerais desta quarta-feira, poderá perder a maioria no Parlamento pela primeira vez.

São águas desconhecidas. Em várias ocasiões, o ex-presidente sul-africano Jacob Zuma proclamou que o CNA governaria “até a segunda vinda de Jesus”. Agora, Zuma espera tirar do poder o partido que possibilitou sua notória corrupção. Fundado em dezembro do ano passado, o partido uMkhonto weSizwe, ou MK, batizado com o nome do antigo braço militar do CNA, apresenta o ex-presidente como sua cara. Mesmo que Zuma tenha sido desqualificado para disputar a eleição pela Suprema Corte, seu partido mobilizou o apoio de milhares de correligionários à sua plataforma populista. Se for capaz de superar as batalhas de seus grupos internos e problemas na Justiça, o MK poderá representar um dos maiores riscos eleitorais para o CNA, tirando-lhe votos e forçando-o a estabelecer uma coalizão.

O surgimento do MK é um dos muitos sintomas de morbidez na África do Sul dos dias de hoje. O CNA perdeu seu propósito, é uma sombra do que foi no passado, e o país do qual o partido cuida há tanto tempo enfrenta problemas em meio a infraestruturas arruinadas, corrupção sistêmica, uma autoridade central enfraquecida e crimes violentos. Trinta anos após o fim do apartheid, a África do Sul passa por outra transformação complexa. Seu futuro é incerto, mas dada a fragmentação do país, dificilmente será boa.

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Imagem mostra presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em um discurso da Cosatu na Cidade do Cabo, no início de maio Foto: Esa Alexander/Reuters

Como chegamos a este ponto? Em seu discurso sobre o estado da união, em fevereiro, Ramaphosa fez uma alegoria sobre a trajetória do país depois do apartheid por meio da figura ficcional de Tintswalo, uma mulher nascida em 1994, que se beneficiou da expansão desracializada de serviços sociais como educação, habitação, fornecimento de eletricidade e assistência de saúde. Como muitos apontaram, esse dividendo democrático persistiu por ao menos 15 anos na história da África do Sul pós-apartheid, quando a economia esteve forte, as condições do mercado internacional foram favoráveis e a gestão do Estado era competente.

O ponto de inflexão ocorreu em 2009 — quando Zuma assumiu o poder, um ano depois da crise financeira global. O que se seguiu foi um amplo retrocesso em termos de opções de vida, expectativas políticas e prospectos econômicos. A hegemonia do CNA foi pontuada por uma série de episódios arrasadores para o consenso: o massacre de Marikana, em 2012, no qual 34 mineiros foram mortos pela polícia; a formação dos Combatentes da Liberdade Econômica, em 2013, por um jovem líder do CNA; a expulsão do Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da maior federação sindical do país, que é formalmente aliada ao CNA; e os protestos estudantis que se espalharam pelo país em 2015 e 2016.

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Todos esses desdobramentos colocaram em dúvida os fundamentos conceituais do acordo pós-apartheid, principalmente da “Nação Arco-Íris”, o mito fundador de um jovem Estado democrático, não racista e cooperativista em uma marcha progressista adiante destinada a curar feridas abertas pelo apartheid e o colonialismo. Essa visão universalista, contida na afirmação da Carta da Liberdade do CNA, de 1955, de que “a África do Sul pertence a todos que nela vivem”, foi gradualmente minada por duradouras desigualdades e um Estado varrido por corrupção. Em seu lugar, ficou um vazio.

Nenhuma força política, apesar de toda perda de apoio do CNA, emergiu para ocupá-lo. Os Combatentes da Liberdade Econômica, liderados pelo militante Julius Malema, foram no passado um dos partidos mais animadores a entrar no panorama eleitoral. Mas seu perfil nacional não deslanchou, e onde governou — como nas coalizões com o CNA em Johannesburgo e Durban — o partido deixou um registro pouco inspirador. A alegação do CLE de concretizar mais autenticamente a política de libertação nacional do CNA, disposto a confrontar o que classifica como monopólio branco do capital lhe dificulta as coisas. Isso pode não ser um problema em relação à especulação de que o partido busca um lugar no governo como parceiro menor de coalizão.

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O outro partido importante de oposição, a Aliança Democrática, tomou outra rota. Enquanto o ressentimento que anima os Combatentes da Liberdade Econômica é a democracia pós-apartheid ter feito pouco para entregar o controle político e econômico para os sul-africanos negros. Tendo abandonado há muito a estratégia de cultivar lideranças negras no partido, sua campanha consistiu-se principalmente de alertas alarmistas sobre o governo contínuo do CNA — o que seus aliados chamam de Zimbabueficação — ao mesmo tempo que flerta com sentimentos separatistas em seu reduto, a Província do Cabo Ocidental.

A vida política da África do Sul partia de premissas como cidadania comum; os políticos discordavam sobre questões de governança e distribuição, mas havia um compromisso compartilhado, mesmo que por vezes relutante, com o processo democrático e a convicção na integração de todos os sul-africanos à coisa pública. Agora, a dita questão nacional domina o espectro político. A dúvida sobre quem somos sobrepujou questões mais programáticas a respeito do tipo de sociedade em que os sul-africanos querem viver.

Neste vácuo de imaginação política, identidades se tornaram as linhas que dividem a sociedade. À direita, os maiores partidos são forças mais abertamente chauvinistas. Partidos como o AçãoSA, liderado por um ex-prefeito de Johannesburgo, combinam narrativas de dureza na segurança pública com políticas anti-migração. Essa postura é compartilhada pela Aliança Patriótica, uma legenda liderada por um ex-gângster que consolidou sua base — eleitores em sua maioria de cor, como são chamados os sul-africanos multiétnicos — por meio de um nacionalismo de cor revigorado. O partido Rise Mzansi, liderado por um ex-jornalista de negócios que compara a si próprio com o presidente francês, Emmanuel Macron, diverge desse roteiro. Mas seu limitado apelo entre trabalhadores urbanos fará pouco para dissipar a crescente sensação de que as divisões no país são intransponíveis.

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Em meio ao descontentamento global com a democracia liberal, a África do Sul não é o único país a testemunhar revanchismos reformularem o panorama político. A resposta do público geralmente tem sido resignação. Em 1994, com um comparecimento às urnas de 86% do eleitorado, mais de 12 milhões de sul-africanos votaram em Mandela. Após séculos de opressão, exploração e dificuldades, as pessoas se alimentaram da esperança de que a democracia lhes traria uma vida melhor. Na última eleição nacional, em 2019, o comparecimento às urnas caiu para 20%, e o CNA perdeu mais de 2 milhões de eleitores. Fartos da incapacidade do governo melhorar suas vidas, muitos sul-africanos simplesmente desistiram da política.

É difícil conciliar esse processo de desmobilização — manifesto na participação cada vez menor em sindicatos, associações cívicas e partidos políticos — com as imagens do movimento multirracial, multiétnico, que permeou variadas classes contra o apartheid, que convenceu o mundo a acreditar que os sul-africanos são dotados singularmente de níveis elevados de consciência social e boa vontade. Conforme sua história nacional perde coerência, o país se reinventa. Como Tintswalo, a nova África do Sul alcançou a maioridade e está prestes a se transformar em algo diferente. Neste momento, não sabemos o quê. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - A cerimônia passou virtualmente despercebida. Em um dia nublado de abril, na capital administrativa da África do Sul, Pretória, o presidente Cyril Ramaphosa pronunciou um discurso apagado em celebração ao fim do governo da minoria branca na África do Sul. Quando Nelson Mandela tomou posse como primeiro presidente negro do país, os céus estavam ensolarados de esperança. Trinta anos depois, a imagem enfraquecida de Ramaphosa em um cenário cinzento simbolizou um declínio. O Congresso Nacional Africano (CNA), partido do presidente, dominou a política da África do Sul desde a primeira eleição democrática no país, em 1994. Nas eleições gerais desta quarta-feira, poderá perder a maioria no Parlamento pela primeira vez.

São águas desconhecidas. Em várias ocasiões, o ex-presidente sul-africano Jacob Zuma proclamou que o CNA governaria “até a segunda vinda de Jesus”. Agora, Zuma espera tirar do poder o partido que possibilitou sua notória corrupção. Fundado em dezembro do ano passado, o partido uMkhonto weSizwe, ou MK, batizado com o nome do antigo braço militar do CNA, apresenta o ex-presidente como sua cara. Mesmo que Zuma tenha sido desqualificado para disputar a eleição pela Suprema Corte, seu partido mobilizou o apoio de milhares de correligionários à sua plataforma populista. Se for capaz de superar as batalhas de seus grupos internos e problemas na Justiça, o MK poderá representar um dos maiores riscos eleitorais para o CNA, tirando-lhe votos e forçando-o a estabelecer uma coalizão.

O surgimento do MK é um dos muitos sintomas de morbidez na África do Sul dos dias de hoje. O CNA perdeu seu propósito, é uma sombra do que foi no passado, e o país do qual o partido cuida há tanto tempo enfrenta problemas em meio a infraestruturas arruinadas, corrupção sistêmica, uma autoridade central enfraquecida e crimes violentos. Trinta anos após o fim do apartheid, a África do Sul passa por outra transformação complexa. Seu futuro é incerto, mas dada a fragmentação do país, dificilmente será boa.

Imagem mostra presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em um discurso da Cosatu na Cidade do Cabo, no início de maio Foto: Esa Alexander/Reuters

Como chegamos a este ponto? Em seu discurso sobre o estado da união, em fevereiro, Ramaphosa fez uma alegoria sobre a trajetória do país depois do apartheid por meio da figura ficcional de Tintswalo, uma mulher nascida em 1994, que se beneficiou da expansão desracializada de serviços sociais como educação, habitação, fornecimento de eletricidade e assistência de saúde. Como muitos apontaram, esse dividendo democrático persistiu por ao menos 15 anos na história da África do Sul pós-apartheid, quando a economia esteve forte, as condições do mercado internacional foram favoráveis e a gestão do Estado era competente.

O ponto de inflexão ocorreu em 2009 — quando Zuma assumiu o poder, um ano depois da crise financeira global. O que se seguiu foi um amplo retrocesso em termos de opções de vida, expectativas políticas e prospectos econômicos. A hegemonia do CNA foi pontuada por uma série de episódios arrasadores para o consenso: o massacre de Marikana, em 2012, no qual 34 mineiros foram mortos pela polícia; a formação dos Combatentes da Liberdade Econômica, em 2013, por um jovem líder do CNA; a expulsão do Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da maior federação sindical do país, que é formalmente aliada ao CNA; e os protestos estudantis que se espalharam pelo país em 2015 e 2016.

Todos esses desdobramentos colocaram em dúvida os fundamentos conceituais do acordo pós-apartheid, principalmente da “Nação Arco-Íris”, o mito fundador de um jovem Estado democrático, não racista e cooperativista em uma marcha progressista adiante destinada a curar feridas abertas pelo apartheid e o colonialismo. Essa visão universalista, contida na afirmação da Carta da Liberdade do CNA, de 1955, de que “a África do Sul pertence a todos que nela vivem”, foi gradualmente minada por duradouras desigualdades e um Estado varrido por corrupção. Em seu lugar, ficou um vazio.

Nenhuma força política, apesar de toda perda de apoio do CNA, emergiu para ocupá-lo. Os Combatentes da Liberdade Econômica, liderados pelo militante Julius Malema, foram no passado um dos partidos mais animadores a entrar no panorama eleitoral. Mas seu perfil nacional não deslanchou, e onde governou — como nas coalizões com o CNA em Johannesburgo e Durban — o partido deixou um registro pouco inspirador. A alegação do CLE de concretizar mais autenticamente a política de libertação nacional do CNA, disposto a confrontar o que classifica como monopólio branco do capital lhe dificulta as coisas. Isso pode não ser um problema em relação à especulação de que o partido busca um lugar no governo como parceiro menor de coalizão.

O outro partido importante de oposição, a Aliança Democrática, tomou outra rota. Enquanto o ressentimento que anima os Combatentes da Liberdade Econômica é a democracia pós-apartheid ter feito pouco para entregar o controle político e econômico para os sul-africanos negros. Tendo abandonado há muito a estratégia de cultivar lideranças negras no partido, sua campanha consistiu-se principalmente de alertas alarmistas sobre o governo contínuo do CNA — o que seus aliados chamam de Zimbabueficação — ao mesmo tempo que flerta com sentimentos separatistas em seu reduto, a Província do Cabo Ocidental.

A vida política da África do Sul partia de premissas como cidadania comum; os políticos discordavam sobre questões de governança e distribuição, mas havia um compromisso compartilhado, mesmo que por vezes relutante, com o processo democrático e a convicção na integração de todos os sul-africanos à coisa pública. Agora, a dita questão nacional domina o espectro político. A dúvida sobre quem somos sobrepujou questões mais programáticas a respeito do tipo de sociedade em que os sul-africanos querem viver.

Neste vácuo de imaginação política, identidades se tornaram as linhas que dividem a sociedade. À direita, os maiores partidos são forças mais abertamente chauvinistas. Partidos como o AçãoSA, liderado por um ex-prefeito de Johannesburgo, combinam narrativas de dureza na segurança pública com políticas anti-migração. Essa postura é compartilhada pela Aliança Patriótica, uma legenda liderada por um ex-gângster que consolidou sua base — eleitores em sua maioria de cor, como são chamados os sul-africanos multiétnicos — por meio de um nacionalismo de cor revigorado. O partido Rise Mzansi, liderado por um ex-jornalista de negócios que compara a si próprio com o presidente francês, Emmanuel Macron, diverge desse roteiro. Mas seu limitado apelo entre trabalhadores urbanos fará pouco para dissipar a crescente sensação de que as divisões no país são intransponíveis.

Em meio ao descontentamento global com a democracia liberal, a África do Sul não é o único país a testemunhar revanchismos reformularem o panorama político. A resposta do público geralmente tem sido resignação. Em 1994, com um comparecimento às urnas de 86% do eleitorado, mais de 12 milhões de sul-africanos votaram em Mandela. Após séculos de opressão, exploração e dificuldades, as pessoas se alimentaram da esperança de que a democracia lhes traria uma vida melhor. Na última eleição nacional, em 2019, o comparecimento às urnas caiu para 20%, e o CNA perdeu mais de 2 milhões de eleitores. Fartos da incapacidade do governo melhorar suas vidas, muitos sul-africanos simplesmente desistiram da política.

É difícil conciliar esse processo de desmobilização — manifesto na participação cada vez menor em sindicatos, associações cívicas e partidos políticos — com as imagens do movimento multirracial, multiétnico, que permeou variadas classes contra o apartheid, que convenceu o mundo a acreditar que os sul-africanos são dotados singularmente de níveis elevados de consciência social e boa vontade. Conforme sua história nacional perde coerência, o país se reinventa. Como Tintswalo, a nova África do Sul alcançou a maioridade e está prestes a se transformar em algo diferente. Neste momento, não sabemos o quê. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - A cerimônia passou virtualmente despercebida. Em um dia nublado de abril, na capital administrativa da África do Sul, Pretória, o presidente Cyril Ramaphosa pronunciou um discurso apagado em celebração ao fim do governo da minoria branca na África do Sul. Quando Nelson Mandela tomou posse como primeiro presidente negro do país, os céus estavam ensolarados de esperança. Trinta anos depois, a imagem enfraquecida de Ramaphosa em um cenário cinzento simbolizou um declínio. O Congresso Nacional Africano (CNA), partido do presidente, dominou a política da África do Sul desde a primeira eleição democrática no país, em 1994. Nas eleições gerais desta quarta-feira, poderá perder a maioria no Parlamento pela primeira vez.

São águas desconhecidas. Em várias ocasiões, o ex-presidente sul-africano Jacob Zuma proclamou que o CNA governaria “até a segunda vinda de Jesus”. Agora, Zuma espera tirar do poder o partido que possibilitou sua notória corrupção. Fundado em dezembro do ano passado, o partido uMkhonto weSizwe, ou MK, batizado com o nome do antigo braço militar do CNA, apresenta o ex-presidente como sua cara. Mesmo que Zuma tenha sido desqualificado para disputar a eleição pela Suprema Corte, seu partido mobilizou o apoio de milhares de correligionários à sua plataforma populista. Se for capaz de superar as batalhas de seus grupos internos e problemas na Justiça, o MK poderá representar um dos maiores riscos eleitorais para o CNA, tirando-lhe votos e forçando-o a estabelecer uma coalizão.

O surgimento do MK é um dos muitos sintomas de morbidez na África do Sul dos dias de hoje. O CNA perdeu seu propósito, é uma sombra do que foi no passado, e o país do qual o partido cuida há tanto tempo enfrenta problemas em meio a infraestruturas arruinadas, corrupção sistêmica, uma autoridade central enfraquecida e crimes violentos. Trinta anos após o fim do apartheid, a África do Sul passa por outra transformação complexa. Seu futuro é incerto, mas dada a fragmentação do país, dificilmente será boa.

Imagem mostra presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em um discurso da Cosatu na Cidade do Cabo, no início de maio Foto: Esa Alexander/Reuters

Como chegamos a este ponto? Em seu discurso sobre o estado da união, em fevereiro, Ramaphosa fez uma alegoria sobre a trajetória do país depois do apartheid por meio da figura ficcional de Tintswalo, uma mulher nascida em 1994, que se beneficiou da expansão desracializada de serviços sociais como educação, habitação, fornecimento de eletricidade e assistência de saúde. Como muitos apontaram, esse dividendo democrático persistiu por ao menos 15 anos na história da África do Sul pós-apartheid, quando a economia esteve forte, as condições do mercado internacional foram favoráveis e a gestão do Estado era competente.

O ponto de inflexão ocorreu em 2009 — quando Zuma assumiu o poder, um ano depois da crise financeira global. O que se seguiu foi um amplo retrocesso em termos de opções de vida, expectativas políticas e prospectos econômicos. A hegemonia do CNA foi pontuada por uma série de episódios arrasadores para o consenso: o massacre de Marikana, em 2012, no qual 34 mineiros foram mortos pela polícia; a formação dos Combatentes da Liberdade Econômica, em 2013, por um jovem líder do CNA; a expulsão do Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da maior federação sindical do país, que é formalmente aliada ao CNA; e os protestos estudantis que se espalharam pelo país em 2015 e 2016.

Todos esses desdobramentos colocaram em dúvida os fundamentos conceituais do acordo pós-apartheid, principalmente da “Nação Arco-Íris”, o mito fundador de um jovem Estado democrático, não racista e cooperativista em uma marcha progressista adiante destinada a curar feridas abertas pelo apartheid e o colonialismo. Essa visão universalista, contida na afirmação da Carta da Liberdade do CNA, de 1955, de que “a África do Sul pertence a todos que nela vivem”, foi gradualmente minada por duradouras desigualdades e um Estado varrido por corrupção. Em seu lugar, ficou um vazio.

Nenhuma força política, apesar de toda perda de apoio do CNA, emergiu para ocupá-lo. Os Combatentes da Liberdade Econômica, liderados pelo militante Julius Malema, foram no passado um dos partidos mais animadores a entrar no panorama eleitoral. Mas seu perfil nacional não deslanchou, e onde governou — como nas coalizões com o CNA em Johannesburgo e Durban — o partido deixou um registro pouco inspirador. A alegação do CLE de concretizar mais autenticamente a política de libertação nacional do CNA, disposto a confrontar o que classifica como monopólio branco do capital lhe dificulta as coisas. Isso pode não ser um problema em relação à especulação de que o partido busca um lugar no governo como parceiro menor de coalizão.

O outro partido importante de oposição, a Aliança Democrática, tomou outra rota. Enquanto o ressentimento que anima os Combatentes da Liberdade Econômica é a democracia pós-apartheid ter feito pouco para entregar o controle político e econômico para os sul-africanos negros. Tendo abandonado há muito a estratégia de cultivar lideranças negras no partido, sua campanha consistiu-se principalmente de alertas alarmistas sobre o governo contínuo do CNA — o que seus aliados chamam de Zimbabueficação — ao mesmo tempo que flerta com sentimentos separatistas em seu reduto, a Província do Cabo Ocidental.

A vida política da África do Sul partia de premissas como cidadania comum; os políticos discordavam sobre questões de governança e distribuição, mas havia um compromisso compartilhado, mesmo que por vezes relutante, com o processo democrático e a convicção na integração de todos os sul-africanos à coisa pública. Agora, a dita questão nacional domina o espectro político. A dúvida sobre quem somos sobrepujou questões mais programáticas a respeito do tipo de sociedade em que os sul-africanos querem viver.

Neste vácuo de imaginação política, identidades se tornaram as linhas que dividem a sociedade. À direita, os maiores partidos são forças mais abertamente chauvinistas. Partidos como o AçãoSA, liderado por um ex-prefeito de Johannesburgo, combinam narrativas de dureza na segurança pública com políticas anti-migração. Essa postura é compartilhada pela Aliança Patriótica, uma legenda liderada por um ex-gângster que consolidou sua base — eleitores em sua maioria de cor, como são chamados os sul-africanos multiétnicos — por meio de um nacionalismo de cor revigorado. O partido Rise Mzansi, liderado por um ex-jornalista de negócios que compara a si próprio com o presidente francês, Emmanuel Macron, diverge desse roteiro. Mas seu limitado apelo entre trabalhadores urbanos fará pouco para dissipar a crescente sensação de que as divisões no país são intransponíveis.

Em meio ao descontentamento global com a democracia liberal, a África do Sul não é o único país a testemunhar revanchismos reformularem o panorama político. A resposta do público geralmente tem sido resignação. Em 1994, com um comparecimento às urnas de 86% do eleitorado, mais de 12 milhões de sul-africanos votaram em Mandela. Após séculos de opressão, exploração e dificuldades, as pessoas se alimentaram da esperança de que a democracia lhes traria uma vida melhor. Na última eleição nacional, em 2019, o comparecimento às urnas caiu para 20%, e o CNA perdeu mais de 2 milhões de eleitores. Fartos da incapacidade do governo melhorar suas vidas, muitos sul-africanos simplesmente desistiram da política.

É difícil conciliar esse processo de desmobilização — manifesto na participação cada vez menor em sindicatos, associações cívicas e partidos políticos — com as imagens do movimento multirracial, multiétnico, que permeou variadas classes contra o apartheid, que convenceu o mundo a acreditar que os sul-africanos são dotados singularmente de níveis elevados de consciência social e boa vontade. Conforme sua história nacional perde coerência, o país se reinventa. Como Tintswalo, a nova África do Sul alcançou a maioridade e está prestes a se transformar em algo diferente. Neste momento, não sabemos o quê. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - A cerimônia passou virtualmente despercebida. Em um dia nublado de abril, na capital administrativa da África do Sul, Pretória, o presidente Cyril Ramaphosa pronunciou um discurso apagado em celebração ao fim do governo da minoria branca na África do Sul. Quando Nelson Mandela tomou posse como primeiro presidente negro do país, os céus estavam ensolarados de esperança. Trinta anos depois, a imagem enfraquecida de Ramaphosa em um cenário cinzento simbolizou um declínio. O Congresso Nacional Africano (CNA), partido do presidente, dominou a política da África do Sul desde a primeira eleição democrática no país, em 1994. Nas eleições gerais desta quarta-feira, poderá perder a maioria no Parlamento pela primeira vez.

São águas desconhecidas. Em várias ocasiões, o ex-presidente sul-africano Jacob Zuma proclamou que o CNA governaria “até a segunda vinda de Jesus”. Agora, Zuma espera tirar do poder o partido que possibilitou sua notória corrupção. Fundado em dezembro do ano passado, o partido uMkhonto weSizwe, ou MK, batizado com o nome do antigo braço militar do CNA, apresenta o ex-presidente como sua cara. Mesmo que Zuma tenha sido desqualificado para disputar a eleição pela Suprema Corte, seu partido mobilizou o apoio de milhares de correligionários à sua plataforma populista. Se for capaz de superar as batalhas de seus grupos internos e problemas na Justiça, o MK poderá representar um dos maiores riscos eleitorais para o CNA, tirando-lhe votos e forçando-o a estabelecer uma coalizão.

O surgimento do MK é um dos muitos sintomas de morbidez na África do Sul dos dias de hoje. O CNA perdeu seu propósito, é uma sombra do que foi no passado, e o país do qual o partido cuida há tanto tempo enfrenta problemas em meio a infraestruturas arruinadas, corrupção sistêmica, uma autoridade central enfraquecida e crimes violentos. Trinta anos após o fim do apartheid, a África do Sul passa por outra transformação complexa. Seu futuro é incerto, mas dada a fragmentação do país, dificilmente será boa.

Imagem mostra presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em um discurso da Cosatu na Cidade do Cabo, no início de maio Foto: Esa Alexander/Reuters

Como chegamos a este ponto? Em seu discurso sobre o estado da união, em fevereiro, Ramaphosa fez uma alegoria sobre a trajetória do país depois do apartheid por meio da figura ficcional de Tintswalo, uma mulher nascida em 1994, que se beneficiou da expansão desracializada de serviços sociais como educação, habitação, fornecimento de eletricidade e assistência de saúde. Como muitos apontaram, esse dividendo democrático persistiu por ao menos 15 anos na história da África do Sul pós-apartheid, quando a economia esteve forte, as condições do mercado internacional foram favoráveis e a gestão do Estado era competente.

O ponto de inflexão ocorreu em 2009 — quando Zuma assumiu o poder, um ano depois da crise financeira global. O que se seguiu foi um amplo retrocesso em termos de opções de vida, expectativas políticas e prospectos econômicos. A hegemonia do CNA foi pontuada por uma série de episódios arrasadores para o consenso: o massacre de Marikana, em 2012, no qual 34 mineiros foram mortos pela polícia; a formação dos Combatentes da Liberdade Econômica, em 2013, por um jovem líder do CNA; a expulsão do Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da maior federação sindical do país, que é formalmente aliada ao CNA; e os protestos estudantis que se espalharam pelo país em 2015 e 2016.

Todos esses desdobramentos colocaram em dúvida os fundamentos conceituais do acordo pós-apartheid, principalmente da “Nação Arco-Íris”, o mito fundador de um jovem Estado democrático, não racista e cooperativista em uma marcha progressista adiante destinada a curar feridas abertas pelo apartheid e o colonialismo. Essa visão universalista, contida na afirmação da Carta da Liberdade do CNA, de 1955, de que “a África do Sul pertence a todos que nela vivem”, foi gradualmente minada por duradouras desigualdades e um Estado varrido por corrupção. Em seu lugar, ficou um vazio.

Nenhuma força política, apesar de toda perda de apoio do CNA, emergiu para ocupá-lo. Os Combatentes da Liberdade Econômica, liderados pelo militante Julius Malema, foram no passado um dos partidos mais animadores a entrar no panorama eleitoral. Mas seu perfil nacional não deslanchou, e onde governou — como nas coalizões com o CNA em Johannesburgo e Durban — o partido deixou um registro pouco inspirador. A alegação do CLE de concretizar mais autenticamente a política de libertação nacional do CNA, disposto a confrontar o que classifica como monopólio branco do capital lhe dificulta as coisas. Isso pode não ser um problema em relação à especulação de que o partido busca um lugar no governo como parceiro menor de coalizão.

O outro partido importante de oposição, a Aliança Democrática, tomou outra rota. Enquanto o ressentimento que anima os Combatentes da Liberdade Econômica é a democracia pós-apartheid ter feito pouco para entregar o controle político e econômico para os sul-africanos negros. Tendo abandonado há muito a estratégia de cultivar lideranças negras no partido, sua campanha consistiu-se principalmente de alertas alarmistas sobre o governo contínuo do CNA — o que seus aliados chamam de Zimbabueficação — ao mesmo tempo que flerta com sentimentos separatistas em seu reduto, a Província do Cabo Ocidental.

A vida política da África do Sul partia de premissas como cidadania comum; os políticos discordavam sobre questões de governança e distribuição, mas havia um compromisso compartilhado, mesmo que por vezes relutante, com o processo democrático e a convicção na integração de todos os sul-africanos à coisa pública. Agora, a dita questão nacional domina o espectro político. A dúvida sobre quem somos sobrepujou questões mais programáticas a respeito do tipo de sociedade em que os sul-africanos querem viver.

Neste vácuo de imaginação política, identidades se tornaram as linhas que dividem a sociedade. À direita, os maiores partidos são forças mais abertamente chauvinistas. Partidos como o AçãoSA, liderado por um ex-prefeito de Johannesburgo, combinam narrativas de dureza na segurança pública com políticas anti-migração. Essa postura é compartilhada pela Aliança Patriótica, uma legenda liderada por um ex-gângster que consolidou sua base — eleitores em sua maioria de cor, como são chamados os sul-africanos multiétnicos — por meio de um nacionalismo de cor revigorado. O partido Rise Mzansi, liderado por um ex-jornalista de negócios que compara a si próprio com o presidente francês, Emmanuel Macron, diverge desse roteiro. Mas seu limitado apelo entre trabalhadores urbanos fará pouco para dissipar a crescente sensação de que as divisões no país são intransponíveis.

Em meio ao descontentamento global com a democracia liberal, a África do Sul não é o único país a testemunhar revanchismos reformularem o panorama político. A resposta do público geralmente tem sido resignação. Em 1994, com um comparecimento às urnas de 86% do eleitorado, mais de 12 milhões de sul-africanos votaram em Mandela. Após séculos de opressão, exploração e dificuldades, as pessoas se alimentaram da esperança de que a democracia lhes traria uma vida melhor. Na última eleição nacional, em 2019, o comparecimento às urnas caiu para 20%, e o CNA perdeu mais de 2 milhões de eleitores. Fartos da incapacidade do governo melhorar suas vidas, muitos sul-africanos simplesmente desistiram da política.

É difícil conciliar esse processo de desmobilização — manifesto na participação cada vez menor em sindicatos, associações cívicas e partidos políticos — com as imagens do movimento multirracial, multiétnico, que permeou variadas classes contra o apartheid, que convenceu o mundo a acreditar que os sul-africanos são dotados singularmente de níveis elevados de consciência social e boa vontade. Conforme sua história nacional perde coerência, o país se reinventa. Como Tintswalo, a nova África do Sul alcançou a maioridade e está prestes a se transformar em algo diferente. Neste momento, não sabemos o quê. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - A cerimônia passou virtualmente despercebida. Em um dia nublado de abril, na capital administrativa da África do Sul, Pretória, o presidente Cyril Ramaphosa pronunciou um discurso apagado em celebração ao fim do governo da minoria branca na África do Sul. Quando Nelson Mandela tomou posse como primeiro presidente negro do país, os céus estavam ensolarados de esperança. Trinta anos depois, a imagem enfraquecida de Ramaphosa em um cenário cinzento simbolizou um declínio. O Congresso Nacional Africano (CNA), partido do presidente, dominou a política da África do Sul desde a primeira eleição democrática no país, em 1994. Nas eleições gerais desta quarta-feira, poderá perder a maioria no Parlamento pela primeira vez.

São águas desconhecidas. Em várias ocasiões, o ex-presidente sul-africano Jacob Zuma proclamou que o CNA governaria “até a segunda vinda de Jesus”. Agora, Zuma espera tirar do poder o partido que possibilitou sua notória corrupção. Fundado em dezembro do ano passado, o partido uMkhonto weSizwe, ou MK, batizado com o nome do antigo braço militar do CNA, apresenta o ex-presidente como sua cara. Mesmo que Zuma tenha sido desqualificado para disputar a eleição pela Suprema Corte, seu partido mobilizou o apoio de milhares de correligionários à sua plataforma populista. Se for capaz de superar as batalhas de seus grupos internos e problemas na Justiça, o MK poderá representar um dos maiores riscos eleitorais para o CNA, tirando-lhe votos e forçando-o a estabelecer uma coalizão.

O surgimento do MK é um dos muitos sintomas de morbidez na África do Sul dos dias de hoje. O CNA perdeu seu propósito, é uma sombra do que foi no passado, e o país do qual o partido cuida há tanto tempo enfrenta problemas em meio a infraestruturas arruinadas, corrupção sistêmica, uma autoridade central enfraquecida e crimes violentos. Trinta anos após o fim do apartheid, a África do Sul passa por outra transformação complexa. Seu futuro é incerto, mas dada a fragmentação do país, dificilmente será boa.

Imagem mostra presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em um discurso da Cosatu na Cidade do Cabo, no início de maio Foto: Esa Alexander/Reuters

Como chegamos a este ponto? Em seu discurso sobre o estado da união, em fevereiro, Ramaphosa fez uma alegoria sobre a trajetória do país depois do apartheid por meio da figura ficcional de Tintswalo, uma mulher nascida em 1994, que se beneficiou da expansão desracializada de serviços sociais como educação, habitação, fornecimento de eletricidade e assistência de saúde. Como muitos apontaram, esse dividendo democrático persistiu por ao menos 15 anos na história da África do Sul pós-apartheid, quando a economia esteve forte, as condições do mercado internacional foram favoráveis e a gestão do Estado era competente.

O ponto de inflexão ocorreu em 2009 — quando Zuma assumiu o poder, um ano depois da crise financeira global. O que se seguiu foi um amplo retrocesso em termos de opções de vida, expectativas políticas e prospectos econômicos. A hegemonia do CNA foi pontuada por uma série de episódios arrasadores para o consenso: o massacre de Marikana, em 2012, no qual 34 mineiros foram mortos pela polícia; a formação dos Combatentes da Liberdade Econômica, em 2013, por um jovem líder do CNA; a expulsão do Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da maior federação sindical do país, que é formalmente aliada ao CNA; e os protestos estudantis que se espalharam pelo país em 2015 e 2016.

Todos esses desdobramentos colocaram em dúvida os fundamentos conceituais do acordo pós-apartheid, principalmente da “Nação Arco-Íris”, o mito fundador de um jovem Estado democrático, não racista e cooperativista em uma marcha progressista adiante destinada a curar feridas abertas pelo apartheid e o colonialismo. Essa visão universalista, contida na afirmação da Carta da Liberdade do CNA, de 1955, de que “a África do Sul pertence a todos que nela vivem”, foi gradualmente minada por duradouras desigualdades e um Estado varrido por corrupção. Em seu lugar, ficou um vazio.

Nenhuma força política, apesar de toda perda de apoio do CNA, emergiu para ocupá-lo. Os Combatentes da Liberdade Econômica, liderados pelo militante Julius Malema, foram no passado um dos partidos mais animadores a entrar no panorama eleitoral. Mas seu perfil nacional não deslanchou, e onde governou — como nas coalizões com o CNA em Johannesburgo e Durban — o partido deixou um registro pouco inspirador. A alegação do CLE de concretizar mais autenticamente a política de libertação nacional do CNA, disposto a confrontar o que classifica como monopólio branco do capital lhe dificulta as coisas. Isso pode não ser um problema em relação à especulação de que o partido busca um lugar no governo como parceiro menor de coalizão.

O outro partido importante de oposição, a Aliança Democrática, tomou outra rota. Enquanto o ressentimento que anima os Combatentes da Liberdade Econômica é a democracia pós-apartheid ter feito pouco para entregar o controle político e econômico para os sul-africanos negros. Tendo abandonado há muito a estratégia de cultivar lideranças negras no partido, sua campanha consistiu-se principalmente de alertas alarmistas sobre o governo contínuo do CNA — o que seus aliados chamam de Zimbabueficação — ao mesmo tempo que flerta com sentimentos separatistas em seu reduto, a Província do Cabo Ocidental.

A vida política da África do Sul partia de premissas como cidadania comum; os políticos discordavam sobre questões de governança e distribuição, mas havia um compromisso compartilhado, mesmo que por vezes relutante, com o processo democrático e a convicção na integração de todos os sul-africanos à coisa pública. Agora, a dita questão nacional domina o espectro político. A dúvida sobre quem somos sobrepujou questões mais programáticas a respeito do tipo de sociedade em que os sul-africanos querem viver.

Neste vácuo de imaginação política, identidades se tornaram as linhas que dividem a sociedade. À direita, os maiores partidos são forças mais abertamente chauvinistas. Partidos como o AçãoSA, liderado por um ex-prefeito de Johannesburgo, combinam narrativas de dureza na segurança pública com políticas anti-migração. Essa postura é compartilhada pela Aliança Patriótica, uma legenda liderada por um ex-gângster que consolidou sua base — eleitores em sua maioria de cor, como são chamados os sul-africanos multiétnicos — por meio de um nacionalismo de cor revigorado. O partido Rise Mzansi, liderado por um ex-jornalista de negócios que compara a si próprio com o presidente francês, Emmanuel Macron, diverge desse roteiro. Mas seu limitado apelo entre trabalhadores urbanos fará pouco para dissipar a crescente sensação de que as divisões no país são intransponíveis.

Em meio ao descontentamento global com a democracia liberal, a África do Sul não é o único país a testemunhar revanchismos reformularem o panorama político. A resposta do público geralmente tem sido resignação. Em 1994, com um comparecimento às urnas de 86% do eleitorado, mais de 12 milhões de sul-africanos votaram em Mandela. Após séculos de opressão, exploração e dificuldades, as pessoas se alimentaram da esperança de que a democracia lhes traria uma vida melhor. Na última eleição nacional, em 2019, o comparecimento às urnas caiu para 20%, e o CNA perdeu mais de 2 milhões de eleitores. Fartos da incapacidade do governo melhorar suas vidas, muitos sul-africanos simplesmente desistiram da política.

É difícil conciliar esse processo de desmobilização — manifesto na participação cada vez menor em sindicatos, associações cívicas e partidos políticos — com as imagens do movimento multirracial, multiétnico, que permeou variadas classes contra o apartheid, que convenceu o mundo a acreditar que os sul-africanos são dotados singularmente de níveis elevados de consciência social e boa vontade. Conforme sua história nacional perde coerência, o país se reinventa. Como Tintswalo, a nova África do Sul alcançou a maioridade e está prestes a se transformar em algo diferente. Neste momento, não sabemos o quê. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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