THE NEW YORK TIMES — Numa tarde recente, ao longo da fronteira da Finlândia com a Rússia, um ataque vindo das bases militares russas instaladas a poucos quilômetros dali parecia uma perspectiva distante.
E não apenas porque, enquanto nova integrante da Otan, a Finlândia passou a desfrutar da proteção assegurada de 30 países, incluindo os Estados Unidos — desdobramento que o presidente Joe Biden celebrará durante visita a Helsinque na próxima semana. Mas também porque a maioria dos soldados russos estacionados na área foi lutar na Ucrânia, e muitos deles — ou a maioria, afirmam autoridades finlandesas — estão mortos.
Poderá levar anos até que a Rússia volte a representar uma ameaça militar convencional do outro lado desta floresta verdejante de pinheiros, abetos e bétulas.
Mas era possível ver alguns russos num dia de junho na passagem transfronteiriça de Vaalimaa, localizada aproximadamente na metade do caminho entre Helsinque e São Petersburgo. O pouco movimento que havia era de carros caros: um Audi Q7, uma BMW preta levando duas sofisticadas bicicletas sobre um rack.
Esses russos eram provavelmente portadores de dois passaportes, rumando possivelmente para outros países europeus onde só podem chegar por terra em razão das restrições a voos internacionais aplicadas sobre a Rússia após o início de sua invasão à Ucrânia, no ano passado.
Patrulhas terrestres de guardas de fronteira aguardam qualquer um que tente cruzar ilicitamente através da floresta. Mas seus cães farejadores têm encontrado poucos russos tentando entrar escondido na Finlândia.
“Vemos uns finlandeses tentando atravessar para lá”, afirmou o agente da Guarda de Fronteira finlandesa Matti Pitkäniitty, que guiou um visitante pela região, “mas normalmente são pessoas com problemas mentais”. A maior preocupação naquela tarde provavelmente foi um urso negro que vagueava por lá.
A paisagem pacífica destoa do temor que assombra muitos finlandeses de que, apesar do estado enfraquecido da Rússia, este ponto de trânsito transfronteiriço e seu país podem vir algum dia a se tornar alvo de Moscou.
Essa ansiedade fez com que os finlandeses buscassem aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte no ano passado, processo que se concluiu em abril, quando a Finlândia se tornou o 31.º Estado-membro da aliança — em um movimento qualificado por Biden como um revés estratégico para o presidente russo, Vladimir Putin.
Esse movimento infundiu a antiga e plácida relação entre Moscou e Helsinque de novas e acentuadas tensões. Em janeiro, as Forças Armadas russas anunciaram planos de estacionar unidades adicionais do Exército na região fronteiriça de Karelia.
E, na quinta-feira, o Ministério de Relações Exteriores da Rússia afirmou que expulsará nove diplomatas finlandeses — em retribuição à expulsão da Finlândia, no mês passado, de nove diplomatas russos acusados de ser operadores de inteligência — e fechará o consulado finlandês em São Petersburgo no próximo trimestre. Um comunicado da chancelaria russa afirmou que a adesão da Finlândia à Otan e seu apoio à Ucrânia representam “uma ameaça à segurança da Federação Russa” e constituem “ações claramente hostis”.
Posição complicada
“Na Finlândia, pensamos que poderíamos muito facilmente nos ver na mesma posição dos ucranianos”, afirmou Pitkäniitty. Apontando para a estrada que cruza a fronteira através da floresta, ele acrescentou: “Se destacamentos russos quiserem atacar Helsinque, eles têm de passar por aqui. Nós veríamos ruínas e fumaça por aqui”.
Um ataque desse tipo teria agora consequências muito mais graves, após a fronteira da Finlândia — de 1,3 mil quilômetros, que se estende de norte a sul do Mar de Barents até o Golfo da Finlândia — ter virado um limite da Otan, mais que dobrando a extensão das fronteiras da Rússia com os países da aliança. Segundo o Tratado do Atlântico Norte, um ataque russo contra a Finlândia seria considerado um ataque contra todos os membros da aliança.
Ninguém espera que essa invasão deva ocorrer proximamente. Mas a história deixa a Finlândia compreensivelmente inquieta.
A invasão e conquista de milhares de quilômetros quadrados da Finlândia por Josef Stalin, território que a Rússia mantém até hoje, está gravada na memória nacional finlandesa. O líder soviético acreditava que São Petersburgo precisava de uma zona-tampão mais ampla para sua proteção, então ele criou uma à força, sob o custo de milhares de vidas.
Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, muitos finlandeses revisitaram aquele capítulo obscuro de sua história. “É natural os finlandeses se imaginarem na mesma situação que os ucranianos. Eles já passaram por isso”, afirmou o secretário de Estado americano, Antony Blinken, durante visita a Helsinque, no início de junho. “Para muitos finlandeses, os paralelos entre 1939 e 2022 são marcantes.”
Por agora, a Otan não tem planos de instalar infraestrutura nem estacionar tropas na fronteira, apesar de seus membros estarem ávidos para aprender mais a respeito dela: autoridades americanas e europeias têm visitado a região para avaliar suas vulnerabilidades e as preparações finlandesas.
Os finlandeses dizem que não há com o que se preocupar. Em primeiro lugar, eles lembram das imensas baixas que infligiram às forças soviéticas invasoras em 1939 — empregando táticas de guerrilha com emboscadas contra um inimigo mal liderado e mal equipado muito parecidas com as que os ucranianos viriam a utilizar quase um século depois.
O sucessor de Stalin, Nikita Khrushchev, afirmou posteriormente que, ainda que os soviéticos tivessem vencido os finlandeses superados vastamente em contingente, na verdade tinham sofrido uma derrota, porque “isso estimulou a convicção dos nossos inimigos de que a União Soviética era um colosso com pés de barro”.
Em parte graças às memórias daquele conflito, a guarda de fronteira da Finlândia acumula atribuições militares. Seus integrantes recebem treinamento militar completo e suas unidades são equipadas com proteção corporal de combate e fuzis semiautomáticos, apesar de uma equipe de três agentes que patrulhava Vaalimaa em um dia recente ter deixado esse equipamento na base; os únicos inimigos visíveis eram as constantes nuvens de mosquitos.
Com seus contingentes atuais, porém, os guardas de fronteira teriam pouca utilidade contra um ataque militar russo — para o qual os finlandeses pavimentaram o caminho quase literalmente: anos atrás a Finlândia reformou a estrada entre Helsinque e Vaalimaa para atender o movimento de comércio e viagens entre Finlândia e Rússia, que foi às alturas na década recente.
Mas hoje o trânsito na fronteira é um terço menor em relação aos níveis pré-pandêmicos, e a estrada é pouco usada.
A força da Otan e o Artigo 5.º do tratado que estabelece a aliança — que determina a autodefesa coletiva entre os membros — aliviam os temores de ataque. “Esta foi a principal razão para aderirmos: obter a proteção do Artigo 5.º”, afirmou durante entrevista, em abril, o brigadeiro-general Sami Nurmi, responsável pela estratégia de defesa da Finlândia. “E também, evidentemente, pelo aspecto da dissuasão.”
Finlândia de olho na fronteira
No curto prazo, os finlandeses preocupam-se mais com um tipo de guerra bem diferente: a migração transformada em arma. A Finlândia começou a instalar sua primeira cerca de fronteira a aproximadamente 100 quilômetros ao norte de Vaalimaa.
Entre o fim de 2015 e o início de 2016, a Finlândia testemunhou um aumento no número de solicitantes de asilo entrando em seu território através da fronteira com a Rússia; a maioria dos migrantes era oriunda de outros países. As autoridades finlandesas detectaram a mão de Moscou, que vinha direcionando repetidamente migrantes para países europeus em um aparente esforço para desestabilizar sua política.
“A impressão de que alguém está organizando isso dentro da Rússia é provavelmente verdadeira”, disse na época o então ministro finlandês das Relações Exteriores, Timo Soini, à TV estatal. “É bastante óbvio que uma atividade desse tipo seja um esforço gerenciado.”
Os finlandeses foram pegos de surpresa. “Eu jamais teria imaginado, nem nos meus sonhos mais extravagantes, que nós veríamos, por exemplo, migrantes de Bangladesh chegando de bicicleta à nossa fronteira no norte, onde o sol não nasce no inverno e a temperatura não passa de -20ºC”, afirmou Pitkäniitty.
Apesar dessa experiência, Pitkäniitty afirmou que ele e seus colegas mantêm relações cordiais e profissionais com seus homólogos russos do outro lado da fronteira. Ambos lados comunicam-se entre si regularmente, afirmou ele.
“Quando conversamos com os russos, nós tentamos evitar falar de política”, afirmou Pitkäniitty. “Não há sentido em discutir. A gente só acaba em disputas sem soluções.”
Por anos, afirmou ele, os temas aceitáveis de conversa com os russos incluíram pesca, caça e esportes. “Agora nós temos de excluir os esportes, porque eles não participam mais de competições internacionais”, afirmou Pitkäniitty. “Então nós só podemos conversar tranquilamente sobre pescarias e caçadas com os oficiais russos.”
Ao mesmo tempo, “eu sei que eles não hesitarão em atirar nas minhas costas se receberem ordem para isso”, acrescentou Pitkäniitty. “E eu também faria o mesmo com eles.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL