Deveria ser um momento de celebração, uma repetição da anexação da Crimeia, mas em escala maior. Os referendos no sul e leste da Ucrânia deveriam marcar o sucesso da “operação militar especial” de Vladimir Putin. Os habitantes dos territórios conquistados deveriam estar chorando de gratidão pela libertação dos “fascistas” ucranianos.
Na Rússia, os súditos de Putin deveriam estar festejando seu czar, agradecendo-lhe o retorno de terras russas históricas e por fazê-los sentir-se orgulhosos – como muitos se sentiram em 2014, quando ele trouxe a Crimeia de volta. O Exército da Ucrânia deveria ter se desintegrado, o governo do país, colapsado, e seu presidente, fugido para o exílio. A Europa, dependente da energia russa, deveria ter se curvado. Tudo isso a tempo do 70.º aniversário de Putin, em 7 de outubro.
Em vez disso, o Exército russo está sendo massacrado, os ucranianos estão amaldiçoando Putin e os russos estão fugindo com medo de serem mandados para o front. A ameaça de Putin de congelar a Europa foi exacerbada por explosões misteriosas que impossibilitaram o funcionamento dos gasodutos Nord Stream, construídos sob as águas do Mar Báltico a um custo de US$ 18 bilhões. Mas o Ocidente está mais determinado do que nunca em ajudar a Ucrânia.
Entre 23 e 27 de setembro, a Rússia organizou referendos fraudulentos nas regiões ocupadas de Kherson, Zaporizhzia, Donetsk e Luhansk, perguntando aos habitantes se querem que seu território seja anexado pela potência invasora. Trata-se de uma farsa providenciada às pressas: os votos foram coletados em bancos de parques, lojas e delegacias de polícia. Em Zaporizhzia, guardas armados garantiram que os eleitores marcassem nas cédulas a opção favorável à anexação.
Então, ao que parece, as autoridades decidiram facilitar sua própria tarefa, encorajando possíveis defensores do “não” a fugir. Em 26 de setembro, os invasores levantaram as cancelas de seus postos de controle e permitiram a saída de ucranianos. A Economist contou centenas de veículos deixando o território controlado pelos russos. Dois dias depois, os governos da ocupação russa anunciaram resultados que variaram entre 87% a favor do “sim”, em Zaporizhzia, e 99%, em Donetsk.
Em certo nível, esses referendos são irrelevantes. Mas são sinal do pânico que acometeu o Kremlin desde suas espetaculares derrotas no início de setembro, quando as forças ucranianas libertaram mais território em poucos dias do que a Rússia havia tomado durante os cinco meses anteriores.
Enquanto comentaristas russos lamentavam as perdas e nacionalistas exigiam vingança, Putin decidiu escalar. Ele conclamou a anexação de território, anunciou a mobilização dos reservistas e pronunciou mais ameaças nucleares.
Objetivos
A mobilização teve dois objetivos: reforçar o estraçalhado Exército russo, que enfrenta dificuldades para manter uma linha de frente de 1.000 quilômetros, e impulsionar o sentimento patriótico para o esforço de guerra. A anexação foi um aviso para a Ucrânia parar seu avanço e os aliados ocidentais pararem de ajudar os ucranianos. Até agora, nada funcionou.
A convocação dos reservistas minou o apoio dos russos à “operação militar especial” de Putin, deixando clara a existência de uma guerra grande e dura, que ainda cobrará a vida de muitos russos. A manobra também expôs algumas mentiras e fracassos de Putin.
Em 21 de setembro, Putin prometeu que apenas homens com experiência militar seriam convocados. Depois, porém, notificações estavam sendo entregues a qualquer um que os capangas do Estado conseguissem agarrar – professores, médicos e doentes crônicos. As autoridades enviaram cotas de convocação para empresas privadas e autoridades locais de vilarejos remotos. A alguns novos conscritos foi recomendado que comprassem o próprio kit de primeiros socorros.
Como resultado, não apenas os ucranianos tentam escapar, os russos também. Pelo menos 260 mil pessoas fugiram da Rússia desde 21 de setembro. Filas nas fronteiras com Casaquistão e Geórgia se estenderam por vários quilômetros. “Traidores”, disse Viacheslav Volodin, presidente da Duma (a Câmara Baixa do Parlamento). “Talvez seja melhor eles irem.”
A guerra de Putin
Ao mesmo tempo, as autoridades manobraram para estancar o êxodo e encurralar os fugitivos instalando postos de alistamento nas fronteiras com Geórgia e Finlândia. A Ossétia do Norte, região russa fronteiriça à Geórgia, proibiu a entrada de cidadãos de outras partes da Rússia.
Quem não consegue escapar busca sabotar os planos de Putin. Cerca de 20 postos de alistamento foram incendiados. No Daguestão, república muçulmana insubmissa no Cáucaso, as pessoas têm entrado em confrontos com a polícia. Nove mil quilômetros a nordeste, em Yakutsk, região rica em recursos naturais, que foi atingida duramente pela convocação militar, as pessoas protestaram.
Na própria Moscou, o governo e seus propagandistas tentam desesperadamente conter o pânico. Serguei Sobianin, o prefeito, afirmou que a organização de alistamento militar na capital conduziria uma análise e corrigirá o que ele qualificou como notificações de convocação emitidas equivocadamente.
Os propagandistas do Estado russo estão mudando de tom. Bravatas e exultações desapareceram. Agora, eles reclamam de oficiais militares ineptos que prejudicam a reputação de Putin. Uma das principais vozes em defesa da guerra, Margarita Simonian, da emissora estatal Russia Today, falou do risco de motim. Vladimir Soloviov, outro fanático do conflito, tem vociferado a respeito da falta de preparo do Exército russo.
Em vez de reforçar sua posição, Putin revelou fraqueza. Ele tem poucas boas opções. Mas anexando territórios que ainda nem sequer controla, arrisca minar a própria integridade territorial da Rússia, que poderá se tornar um país com fronteiras fluidas e não reconhecidas internacionalmente.
Ao declarar a anexação de toda a região de Donbas, Putin está afirmando que partes da Rússia estão ocupadas por tropas ucranianas – e pode parecer fraco se não conseguir expulsá-las. Se ele tivesse anexado apenas o território que ocupava antes da invasão, seria uma admissão de que sua guerra não conquistou nada. Putin esperava fazer da Rússia um país maior. Em vez disso, ela se tornou muito mais sinistra. Não haverá muito o que comemorar no seu aniversário de 70 anos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL