Num espasmo de ressentimento ideológico, na semana passada, a deputada de extrema direita Lauren Boebert (republicana do Colorado) escarneceu dos manifestantes que protestavam contra as políticas pró-Israel em universidades de todos os Estados Unidos.
“Desconfio estranhamente de que todos esses estudantes de Columbia e da UCLA que perambulam de um lado para o outro gritando ‘Palestina Livre’ não aproveitariam uma oportunidade de cursar um semestre no exterior em Gaza”, escreveu ela em uma rede social, antes de comparecer a um acampamento de protesto na Universidade George Washington e quase se digladiar com estudantes enquanto tentava tirar uma bandeira palestina de suas mãos.
O escárnio de Boebert é compartilhado até mesmo por alguns de seus oponentes no establishment de Washington — muitos dos quais qualificam as manifestações dos universitários como, na melhor das hipóteses, agitação e propaganda improdutiva da extrema esquerda; ou, mais sobriamente, como comportamentos antissemitas que devem ser expurgados da academia. Centenas de alunos manifestantes foram presos nos dias recentes em operações policiais realizadas da Califórnia a Nova York.
O comentário de Boebert, porém, virou chacota por dois motivos: primeiramente, por manifestantes furiosos com os supostos crimes de guerra israelenses em Gaza precisarem ir ao próprio território sitiado para justificar sua fúria; e, em segundo lugar, por implicar que seria possível aos estudantes cursar “um semestre no exterior” em Gaza, onde Israel passou os últimos seis meses destruindo a maioria de as instituições educacionais, incluindo todas as as universidades.
Por meses, ativistas palestinos da sociedade civil organizada chamaram a atenção para a constante erradicação do patrimônio cultural de Gaza. A punitiva campanha de Israel contra o grupo militante Hamas reduziu a escombros grande parte do território — em alguns casos, por meio de demolições deliberadas praticadas pelos israelenses. Milhares de artefatos de várias coleções, incluindo moedas romanas e outros itens do passado pré-islâmico de Gaza, possivelmente se perderam durante a guerra.
A histeria em relação aos protestos nas universidades dos Estados Unidos tirou a atenção dos americanos da dimensão da calamidade atual em Gaza. Autoridades da ONU e agências de ajuda ainda não deram conta da escala da destruição no território, onde dúzias de pessoas ainda morrem todos os dias. Desde que o Hamas lançou seu ataque terrorista de 7 de outubro contra o sul de Israel, mais de 34.500 palestinos foram mortos no enclave — muitos deles mulheres e crianças. Cerca de 5% da população total de Gaza foi morta ou ferida, de acordo com um relatório da ONU que cita dados locais.
Esse número não inclui as mais de 10 mil pessoas que estão desaparecidas, soterradas pelos escombros, segundo estima a ONU, citando a Defesa Civil Palestina (DCP). O desafio de encontrar os desaparecidos fica cada vez mais difícil em razão da destruição generalizada de maquinários pesados e equipamentos necessários para escavar os destroços.
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“As temperaturas em elevação poderão acelerar a decomposição dos corpos e disseminar doenças”, declarou o escritório de assuntos humanitários da ONU em um comunicado, acrescentando que a DCP pede para “todos os atores relevantes intervirem urgentemente para permitir a entrada do equipamento necessário, incluindo tratores e escavadeiras, para evitar uma catástrofe de saúde pública, facilitar enterros dignos e salvar as vidas de pessoas feridas.”
Retirar e peneirar os escombros de Gaza não será uma tarefa simples. Israel atacou o enclave com uma enorme quantidade de artilharia. O diretor do Serviço de Ação Antiminas nos territórios palestinos, Mungo Birch, afirmou na semana passada que a quantidade de bombas e mísseis não detonados sob os destroços é “sem precedente” desde a 2.ª Guerra. Ele disse que a minúscula Gaza está coberta por 37 milhões de toneladas de escombros — mais do que foi gerado na Ucrânia durante a guerra da Rússia — além de 800 mil toneladas de amianto e outros materiais tóxicos. Segundo Birch, sua agência tem apenas uma fração do financiamento de que precisa para iniciar as operações de limpeza depois que a guerra acabar.
Ao longo do fim de semana, autoridades americanas e egípcias tentaram facilitar um último esforço para intermediar uma trégua entre Israel e Hamas. Uma delegação do grupo militante palestino esteve no Cairo e expressou otimismo em relação à possibilidade de um avanço ser alcançado. De fato, a proposta foi aceita pelo Hamas nesta segunda, 6. O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, alvo protestos massivos contra sua permanência na função, mostrou-se mais desconfiado em relação ao acordo e continua dedicado a realizar uma ofensiva total contra a cidade de Rafah, no sul de Gaza, onde mais de 1 milhão de palestinos já deslocados no território buscaram abrigo.
Autoridades graduadas da ONU afirmam que uma crise de fome já acomete partes de Gaza. Além do gotejamento desesperadamente insuficiente de ajuda humanitária ao território, a guerra também “prejudicou severamente a capacidade de Gaza para produzir alimentos e água potável”, de acordo com meus colegas. “Ataques e escavadeiras israelenses aniquilaram fazendas e pomares. Safras abandonadas por agricultores que buscaram segurança no sul de Gaza definharam, e o gado foi deixado à própria sorte.”
Tanto o medo em relação a Rafah quanto a incerteza sobre um possível cessar-fogo encaram a realidade futura sobre a magnitude da dificuldade na recuperação de Gaza. Mais de 70% de todas as habitações no território foram destruídas. Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) constatou que a guerra fez retroceder em 40 anos o desenvolvimento e as melhorias em indicadores sociais como expectativa de vida, saúde e grau de educação em Gaza.
A agência estimou que a reconstrução, neste ponto, custaria de US$ 40 bilhões a US$ 50 bilhões. E se a guerra seguir o ritmo observado após conflitos anteriores, o PNUD estima que levará “aproximadamente 80 anos para restaurar as unidades habitacionais completamente destruídas” em Gaza.
“Minha maior preocupação, para além dos números, é com o rompimento de comunidades e famílias em Gaza”, disse ao Washington Post o diretor regional do PNUD, Abdallah al-Dardari. “Se você sabe que 60 pessoas de sua família foram mortas, como nosso colega Issam al-Mughrabi, que foi morto com 60 pessoas de sua família durante um ataque, você fica paralisado”, afirmou Dardari. “As consequências desta guerra permanecerão entre nós por muito tempo.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO