Há muito conhecido por desempenhos improvisados e voláteis no palanque, o ex-presidente Donald Trump tende agora a terminar seus comícios em tom solene.
Música suave e meditativa soa no recinto conforme o silêncio toma conta da multidão. A entonação da voz de Trump se torna cerimoniosa e sóbria. Muitos apoiadores fecham os olhos e baixam as cabeças. Outros levantam as palmas das mãos ou murmuram como se estivessem rezando.
Nesse momento, a plateia de Trump é sua congregação, e o ex-presidente, seu pastor — que pronuncia uma fala final de aproximadamente 15 minutos similar ao chamado evangélico ao altar, a tradição emocional que conclui certos serviços religiosos cristãos com os fiéis dando testemunhos expressando seu compromisso com o Salvador.
“A grande maioria silenciosa está surgindo como nunca — e sob nossa liderança”, recita Trump lendo o texto em um teleprompter, em uma versão típica desse roteiro. “Nós rezaremos a Deus por nossa força e liberdade. Rezaremos a Deus e rezaremos com Deus. Somos um só movimento, um povo, uma família e uma gloriosa nação sob os olhos de Deus.”
O ritual meditativo pode parecer incongruente com o estridente epicentro do movimento conservador do país, mas a doutrina política de Trump se sobressai como um dos exemplos mais marcantes da transformação do Partido Republicano em uma Igreja Trumpista. A insistência do trumpismo na busca por devoção e fidelidade absoluta pode ser vista em todos os níveis do partido, do Congresso ao Comitê Nacional Republicano, ao eleitorado de base.
A capacidade de Trump de transformar a paixão de seus apoiadores em piedade é crucial para entender como ele segue sendo o líder republicano incontestável apesar de levar seu partido a repetidos fracassos políticos, e ao mesmo tempo que enfrenta dezenas de acusações de violações em quatro processos criminais. Seu sucesso em retratar esses indiciamentos como perseguições — e alertar, falsamente, que seus apoiadores poderão ser os próximos — alimentou o entusiasmo por sua pré-candidatura e o colocou, novamente, em posição de capturar a Casa Branca.
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Trump desafia há muito o senso comum encarnando o personagem de um herói evangélico improvável, ainda que irrefutável.
O ex-presidente casou três vezes, foi acusado repetidamente de assédio sexual, foi condenado por fraude empresarial e nunca mostrou muito interesses em serviços religiosos. Na semana passada, dias antes da Páscoa, ele postou em sua plataforma de rede social um vídeo em estilo de infomercial vendendo por US$ 60 Bíblias acompanhadas de cópias de alguns dos documentos que fundaram a nação e da letra da canção “God Bless the USA” (Deus abençoe os EUA), de Lee Greenwood.
Mas ainda que continue ávido para manter o apoio de eleitores evangélicos e retratar sua campanha presidencial como uma batalha pela alma do país, Trump tem tido cuidado em não falar diretamente em termos messiânicos.
“Este país tem um salvador que não sou eu — que é alguém muito mais elevado que eu”, disse Trump em 2021, no púlpito da Primeira Igreja Batista, em Dallas, que possui uma congregação com mais de 14 mil fiéis.
Mesmo assim, Trump e seus aliados se aproximaram gradualmente da comparação com Cristo. No ano passado, a deputada federal Marjorie Greene, republicana da Geórgia e aliada próxima de Trump, afirmou que tanto Jesus quanto o ex-presidente foram presos por “governos corruptos e radicais”. No sábado, Trump compartilhou um artigo na rede social intitulado “A crucificação de Donald Trump”.
Ele também é o mais novo integrante de uma longa fila de ex-presidentes e ex-candidatos presidenciais que priorizaram eleitores evangélicos. Mas muitos eleitores cristãos conservadores acreditam que Trump superou seus antecessores em acatar seus anseios, apontando especialmente para a maioria conservadora instalada por ele na Suprema Corte que aboliu os direitos federais ao aborto.
Trump conquistou uma maioria avassaladora entre eleitores evangélicos em suas duas primeiras disputas presidenciais, mas poucos — mesmo em meio às multidões em seus comícios — o comparam explicitamente com Jesus.
Em vez disso, o rebanho de Trump tende mais a descrevê-lo como uma versão moderna de heróis do Velho Testamento como Ciro ou David, indivíduos moralmente imperfeitos mas escolhidos a dedo por Deus para liderar missões profundas, destinadas a alcançar alguma justiça devida ou resistir a um mal existencial.
“Ele definitivamente foi escolhido por Deus”, disse a corretora de imóveis comerciais Marie Zere, de Long Island, que compareceu a uma Conferência do Comitê Nacional Conservador, em fevereiro, nas imediações de Washington, DC. “Ele ainda está sobrevivendo mesmo com todas essas pessoas o perseguindo, e eu não sei como explicar isso a não ser como intervenção divina.”
Para alguns apoiadores de Trump, os ataques políticos e os riscos jurídicos que ele enfrenta são absolutamente bíblicos. “Crucificaram ele. Foi pior do que a crucificação de Jesus”, afirmou Andriana Howard, de 67 anos, que trabalha no setor de restaurantes de Conway, Carolina do Sul.
Arma política e vulnerabilidade
A base sólida e devotada de eleitores de Trump formou uma das forças mais duráveis na política americana, conferindo-lhe uma vantagem clara sobre o presidente Joe Biden em relação a inspirar apoiadores.
Quarenta e oito por cento dos eleitores das primárias republicanas se dizem entusiasmados a respeito de Trump tornar-se o indicado do Partido Republicano na disputa à presidência, e 32% estão satisfeitos mas não entusiasmados com esse desfecho, de acordo com uma pesquisa New York Times/Siena College recente. Apenas 23% dos democratas se entusiasmam com Biden como candidato democrata, e 43% afirmam ficar satisfeitos mas não entusiasmados.
A intensidade dos apoiadores de Trump mais comprometidos também colaborou para as decisões de campanha do ex-presidente, de acordo com duas fontes familiarizadas com deliberações internas. A capacidade de sua equipe de depender de eleitores que votarão nele sem estímulos adicionais significa que parte do dinheiro que de outra forma seria gasto em campanhas de comparecimento às urnas pode ser investida em funcionários em campo, anúncios de TV ou outras maneiras de ajudar Trump.
Mas os democratas também percebem uma vantagem. Grande parte do apoio a Biden vem de eleitores profundamente contrários a Trump, e os conselheiros do presidente veem uma oportunidade de assustar eleitores moderados e indecisos e conquistar seu apoio a Biden classificando o movimento de Trump como uma criação similar a um culto dedicado a restringir direitos ao aborto e minar a democracia.
O governador da Califórnia, Gavin Newsom, um dos mais importantes aliados democratas de Biden, apontou para uma presença online cada vez mais agressiva por parte da campanha de reeleição do presidente, que tem buscado retratar Trump como um candidato que tende ao extremismo religioso.
“Há uma enorme oportunidade aqui”, disse Newsom em entrevista. “Trump é definido muito facilmente e reforça essa definição repetidamente. E Biden agora tem uma campanha capaz de transformar isso em arma.”
A combinação operada por Trump entre política e religião não é de nenhuma maneira um fenômeno novo. A cristandade exerce há muito tempo uma forte influência sobre o governo americano, com a maioria dos eleitores se identificando como cristãos mesmo à medida que o país fica mais secular. De acordo com uma pesquisa Gallup, 68% dos adultos se declararam cristão em 2022, contra 91% em 1948.
Mas enquanto o ex-presidente tenta se estabelecer como o único líder republicano verdadeiro, insinuações religiosas impregnam sua terceira campanha presidencial.
E-mails destinados a arrecadação de fundos redigidos em termos benevolentes prometem amor incondicional em meio a pedidos de contribuições a partir de US$ 5.
Ainda mais que em suas campanhas passadas, Trump definiu sua candidatura de 2024 como uma luta pela cristandade afirmando a uma convenção de emissoras cristãs que, “da mesma forma que nas batalhas do passado, nós ainda precisamos da mão do Nosso Senhor”.
Em sua plataforma de rede social, Trump compartilhou nos meses recentes uma imagem no mesmo estilo que os desenhos feitos durante julgamentos de si mesmo sentado ao lado de Jesus e um vídeo que proclama repetidamente, “Deus nos deu Trump” para liderar o país.
A aparente eficácia desse tipo de tática tornou Trump o primeiro grande político dos Estados Unidos a separar de forma bem-sucedida seu caráter de suas políticas para os eleitores religiosos, afirmou o professor de história John Fea, da Universidade Messiah, uma instituição evangélica na Pensilvânia.
“Trump dividiu o átomo que unia caráter e políticas”, afirmou Fea. “E o fez porque foi realmente o primeiro a ouvir suas queixas e levá-las a sério. Trump realmente se importa com os evangélicos? Não sei. Mas ele construiu uma mensagem que ressoa diretamente entre eles.”
Apoio de pastores locais
Os comícios de Trump sempre foram algo como o cruzamento entre um concerto de rock e um reavivamento bíblico. Quando Trump começou a suavizar seu discurso com fundos musicais, muitos ligaram as trilhas à música-tema do movimento conspiratório QAnon, mas a campanha se distanciou dessa noção.
Steven Cheung, um porta-voz de Trump, afirmou num comunicado: “O (ex-)presidente Trump tem usado o fim de seus discursos para estabelecer um contraste claro em relação aos quatro anos recentes da desastrosa presidência de Joe Biden e expor sua visão para tentar colocar os EUA de volta nos trilhos”.
Mas a mudança ajudou a transformar os comícios de Trump em uma experiência esteticamente mais parecida com um rito religioso.
Um comício de Trump em Las Vegas em janeiro começou com uma oração de Jesus Marquez, um ancião de uma igreja local, que citou as Escrituras para declarar que Deus quer que Trump volte a ocupar a Casa Branca.
“Deus está do nosso lado — Ele está do lado deste movimento”, afirmou Marquez, fundador do Caucus Cristão-Americano, um grupo de base.
Em um comício na Carolina do Sul em fevereiro, o pastor Greg Rodermond, da Igreja da Comunidade de Crossroads, orou para Deus intervir contra os oponentes políticos de Trump argumentando que eles “tentam roubar, assassinar e destruir nossos EUA”.
“Pai, nós estamos aqui reunidos hoje em nome de nossa nação para vê-la restituir sua grandeza”, continuou Rodermond, “e Deus, nós acreditamos que o Senhor escolheu Donald Trump como um instrumento em suas mãos para esse propósito”.
Mas alguns conservadores cristãos se enfurecem com a perspectiva de se juntar aos seus irmãos para abrir um caminho direto dos ornamentados portões de Mar-a-Lago até as peroladas portas do Céu.
Russell Moore, ex-presidente do braço dedicado a políticas públicas da Convenção Batista do Sul, afirmou que os comícios de Trump enveredaram por um “território perigoso”, com os encerramentos em estilo de chamado ao altar e orações de abertura em que pastores descrevem Trump como um enviado de Deus.
“Reivindicar autoridade divina ou a aprovação de Deus a um candidato político significa que aquela pessoa não poderá ser questionada nem contrariada por alguém que não questione ou se oponha também a Deus”, afirmou Moore. “Isso é uma violação do mandamento de não pronunciar em vão o nome do Senhor.”