Depois de 40 dias do inicio da guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução sobre a guerra do Oriente Médio. A resolução proposta por Malta, pede uma pausa nos conflitos e a criação de corredores humanitários na Faixa de Gaza. Em outubro, os EUA vetaram de forma isolada uma proposta de resolução patrocinada pelo Brasil sobre a guerra no Oriente Médio. O projeto previa pausas humanitárias no confronto e condenação dos ataques terroristas. Segundo a diplomacia dos EUA, o veto ocorreu por conta da ausência de menção ao direito de autodefesa de Israel, apoiado por Washington, o que provocou críticas do governo brasileiro sobre a eficácia das Nações Unidas na prevenção de conflitos.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o chanceler Mauro Vieira e o assessor de assuntos internacionais Celso Amorim, deram declarações céticas sobre a estrutura do conselho, que concentra o poder de veto nas mãos das potências vencedoras da 2ª Guerra (Estados Unidos, Rússia, França, China e Reino Unido).
Apesar das críticas, durante a Guerra Fria, poucas vezes houve consenso entre as potências do CS sobre conflitos globais. Com a queda do Muro de Berlim, e a reaproximação da China e da Rússia com o Ocidente, o consenso cresceu e missões de paz foram autorizadas nos Bálcãs, na África, no Haiti e no Líbano, além de sanções à Coreia do Norte e ao Irã.
Hoje, com a ascensão da China como superpotência e a hostilidade cada vez maior da Rússia em relação ao Ocidente, no que alguns analistas chamam de Nova Guerra Fria, os impasses cada vez mais frequentes no Conselho de Segurança têm lembrado a época do pós-Guerra, dizem especialistas ouvidos pelo Estadão. Apesar disso prejudicar o propósito de manter a paz e a segurança no mundo, a ONU ainda é relevante em conflitos de menor escala e em ações de órgãos associados a ela, como a Agência para Refugiados (Acnur), o Fundo para Infância (Unicef), a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre outros.
A invasão do Iraque
O primeiro abalo recente à imagem da ONU como intermediadora na resolução de conflitos ocorreu na invasão do Iraque, em 2003. “A ONU vai servir ao propósito de sua fundação ou será irrelevante?”, questionou o então presidente americano George W. Bush em seu discurso na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 12 de setembro de 2002.
De acordo com Bush, o regime iraquiano comandado por Saddam Hussein, desrespeitava as resoluções da ONU por estar desenvolvendo armas nucleares. “O regime de Saddan Hussein é um grande perigo, que está aumentando. Esse regime põe em risco um grande número de pessoas no mundo. Não podemos correr esse risco”.
O então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, declarou que caso Washington optasse por um ataque contra o Iraque sem a aprovação da ONU, violaria o direito internacional e a estabilidade global. Em fevereiro de 2003, o ex-secretário de Estado americano, Colin Powell, fez um discurso no Conselho de Segurança da ONU em que tentou convencer a comunidade internacional e apresentar supostas provas de que Bagdá desenvolvia armas de destruição em massa. Armas químicas, biológicas e nucleares nunca foram encontradas na guerra que foi iniciada no mês seguinte ao discurso de Powell, sem a chancela da ONU.
“Se levarmos em conta o processo pós-Guerra Fria, com a legitimidade que a ONU tinha nos anos 90, o processo de erosão da organização começou sem dúvida em 2003 com a guerra no Iraque″, afirma Vinicius Rodrigues Vieira, professor de relações internacionais da FGV-SP.
Configuração de poder
A perda de relevância da organização para a resolução de conflitos ocorre por conta da atual configuração de poder no globo, segundo Vieira. “Nós não temos um mundo bipolar da Guerra Fria e nem um mundo unipolar que se seguiu no pós-Guerra Fria com a queda do muro de Berlim, até a crise econômica de 2008″. Para o analista, ainda existe uma concentração de poder militar nas mãos dos EUA, mas também uma dispersão de poder dividida entre países como a China e Rússia.
“Essas alternativas de poder fazem com que os países não respeitem a autoridade que a ONU impunha anteriormente e tenham as suas próprias agendas, como é o caso de Pequim e Moscou”, destaca o professor da FGV. Além da guerra do Iraque em 2003, o especialista aponta que a guerra da Ucrânia, que começou após a invasão russa em fevereiro de 2022, mostrou o congelamento da organização.
“A ONU se viu em uma situação em que não poderia fazer nada porque Moscou tem poder de veto no Conselho de Segurança e iniciou uma guerra contra todos os princípios do direito internacional. Temos um acúmulo de questões que fizeram com que a ONU perdesse legitimidade para ser um fórum de resolução de conflitos ou pelo menos um fórum de diálogo para a resolução de conflitos”, completa Vieira.
Para Anca Agachi, analista da Rand Corporation, uma think thank americana, a ONU segue importante por conta da amplitude de diálogo que proporciona. “Todos os 193 Estados-membros podem se reunir para discutir questões globais, e realizar acordos regionais ou bilaterais e isso mostra a relevância da organização”.
Função da ONU
A ONU foi criada em 1945 depois da Segunda Guerra Mundial e serve como fórum para que países-membros expressem seus pontos de vista através da Assembleia-Geral e de outros órgãos e comissões, sendo o Conselho de Segurança o mais importante entre eles. Segundo a organização, a sua função primordial é garantir a manutenção da paz e a segurança internacional. O secretário-geral da ONU, cargo que é ocupado atualmente pelo português Antônio Guterres, é considerado o chefe administrativo da organização.
“A ONU consegue isso trabalhando para prevenir conflitos, ajudando as partes em conflito a fazer a paz, destacando forças de manutenção da paz e criando as condições para permitir que a paz se mantenha e floresça. Estas atividades muitas vezes se sobrepõem e devem se reforçar para serem eficazes”, aponta o site da ONU.
Para o professor de relações internacionais da ESPM, Gunther Rudzit, a ONU segue cumprindo a sua função de fórum multilateral de conversas entre os países. “A ONU não foi criada para ser governo do mundo e nem para resolver os problemas do mundo. A organização não tem vontade própria e só faz aquilo que os Estados membros decidem. Se a ONU não tomar nenhuma atitude é porque os Estados membros não conseguiram chegar a um consenso”.
Já o Conselho de Segurança é um organismo da ONU que se dedica a mediar e resolver conflitos internacionais. É formado de cinco membros permanentes: China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, que possuem poder de veto em todas as resoluções. Dez membros rotativos completam o grupo. Neste momento, os membros não permanentes são Brasil, Albânia, Equador, Emirados Árabes, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique e Suíça.
A formação do Conselho de Segurança foi moldada depois da Segunda Guerra Mundial, refletindo a distribuição de poder daquele momento. “Hoje os vencedores da Segunda Guerra ainda estão no Conselho, mas não tem mais pontos de convergência para administrar esse poder de veto, fazendo com que o veto seja um grande entrave para que a ONU tome qualquer decisão. Tudo que os EUA colocarem em pauta a China e a Rússia irão vetar e vice-versa”, destaca Vinicius Rodrigues Vieira, da FGV-SP.
De acordo com Rudzit, da ESPM, a concepção de que houve uma maior convergência entre os países com o fim da União Soviética não é verdadeira. “No período pós-Guerra Fria, se imaginava que o mundo tinha convergido para valores ocidentais, de que houve uma diminuição do choque de interesses e que a ONU trabalhava para o bem-estar do mundo, mas não acredito nisso, sempre teve um veto quando houve o interesse de uma das grandes potências, esse foi o praxe”.
Conflitos internacionais
O congelamento do Conselho de Segurança da ONU, que ocorre em relação a guerra na Ucrânia e também no conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas retrata o choque de interesses entre as potências. O professor de relações internacionais da ESPM-SP aponta que resoluções relacionadas a conflitos internacionais só foram aprovadas quando não havia choque de interesses.
A resolução 384 do Conselho de Segurança, que foi adotada em dezembro de 1975, teve 15 votos a favor, nenhum contra e sem abstenções, e expressava a preocupação com a deterioração com a situação do Timor-Leste, após a Indonésia invadir o país asiático. A resolução apela para que todos os Estados respeitem a integridade do Timor-Leste e o seu direito à autodeterminação, além de exigir a retirada imediata das forças indonésias do país.
De acordo com Vieira, da FGV, o Conselho de Segurança também agiu de forma unânime em relação à Guerra do Golfo, em 1990. “Era um momento único, em que a União Soviética ainda existia mas estava em franco declínio e os EUA emergiam triunfantes no que para alguns já era o fim da Guerra Fria”.
Saiba mais
A resolução 660 foi adotada no dia 2 de agosto de 1990, condenando a invasão do Kuwait pelo Iraque e demandando a retirada das forças iraquianas do país. Todos os países votaram a favor da resolução. Em novembro de 1990, o Conselho de Segurança aprovou a resolução 678, que deu um prazo limite até 15 de janeiro de 1991 para que o Iraque retirasse o seu exército do Kuwait e aprovou o uso da força militar para que isso ocorresse caso Bagdá não cumprisse o prazo. 12 membros votaram a favor, com uma abstenção da China e dois votos contra, de Cuba e Iêmen, que ocupavam as vagas temporárias.
Agachi, da Rand Corporation, destaca a mediação da ONU junto com a Turquia em um acordo assinado por Kiev e Moscou para permitir a exportação de grãos e fertilizantes pelo Mar Negro e aliviar a crise alimentar. O acordo, que foi costurado em julho de 2022, foi suspenso pela Rússia em julho de 2023, mas foi um dos raros momentos de diálogo entre Ucrânia e Rússia desde o início da guerra.
Operações de paz
Segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, é mais fácil que o Conselho de Segurança concorde com operações de paz da ONU. Neste caso, contingentes de diversos países agem em nome da ONU para contribuir na pacificação de um país ou região.
“Temos vários exemplos como no Líbano, Haiti e Timor-Leste. As tropas da ONU definitivamente não resolveram a questão, mas se não fosse a ONU seria muito pior”, aponta Vieira. O professor de relações internacionais da FGV relembrou a famosa frase do ex-secretário geral da ONU, Dag Hammarskjöld, para refletir sobre a importância das operações de paz. “A ONU não foi criada para levar as pessoas ao paraíso, mas para salvar a humanidade do inferno”, disse o norueguês em um discurso em maio de 1954.
Segundo a resolução 425, adotada pelo Conselho de Segurança em março de 1978, a ONU criou a Força Interina das Nações Unidas no Líbano (FINUL), quando as Forças de Defesa de Israel invadiram o sul do Líbano em uma operação contra militantes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que atuava no país do Oriente Médio. A operação de paz monitora a fronteira entre Líbano e Israel para evitar um novo conflito entre os dois países, que tecnicamente permanecem em estado de guerra.
O mandato das forças de paz teve que ser ajustado diversas vezes no contexto da guerra do Líbano com Israel em 1982 e o conflito entre tropas israelenses e o grupo radical islâmico libanês Hezbollah em 2006. Mesmo com as forças de paz, Israel e o Hezbollah iniciaram uma nova rodada de escaramuças que podem levar a uma guerra regional após o ataque terrorista do Hamas, no dia 7 de outubro, que levou à morte de 1.200 pessoas no sul de Israel.
Outro exemplo foi a operação de paz liderada pelas Forças Armadas do Brasil no Haiti, que foi aprovada pelo Conselho de Segurança na resolução 1542, com 15 votos a favor, em abril de 2004. A chamada Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, ou Minustah, foi criada para restaurar a ordem no país caribenho e combater a insegurança após a crise que forçou a saída do ex-presidente haitiano Jean Bertrand Aristide, em fevereiro de 2004. A missão, que inicialmente duraria seis meses, teve a duração de 13 anos e acabou em 2017.
Vieira ressalta que em muitos casos os países que recebem as operações de paz se ressentem com as tropas lideradas pela ONU. “Temos várias denúncias de soldados brasileiros que teriam estuprado mulheres haitianas e outros tipos de violência”.
Investigações internas da ONU revelam que tropas brasileiras foram acusados de abusos sexuais enquanto serviram no Haiti, chegando a oferecer alimentos em troca de sexo.
Reforma da ONU
Com diversas críticas ao funcionamento da organização, muitos países pedem uma reforma na ONU, especialmente no Conselho de Segurança. Um objetivo de longa data da chancelaria brasileira e também de países como Alemanha, Japão, Índia e África do Sul é conquistar um assento permanente no grupo, que daria o poder de veto.
“O Brasil tem interesse porque qualquer país que queira ter alguma influência no sistema internacional tem interesse em estar no Conselho de Segurança, para justamente poder ter a utilização do poder de veto para defender os seus interesses”, aponta Rudzit, professor de relações internacionais da ESPM. “Cada potência está defendendo os seus interesses. Na história dos Estados modernos nunca um país abriu mão de poder para beneficiar o outro e quem está no Conselho de Segurança não vai abrir mão disso”, afirma o especialista. Segundo o analista da ESPM, a ordem mundial neste momento consiste em uma divisão entre governos autoritários de um lado e democracias ocidentais de outro lado, sem uma disposição para reformar organismos multilaterais.
Para a analista da Rand Corporation, a ONU precisa entender como acoplar as ideias e aspirações do chamado Sul Global. “Estamos vendo diversos atores como Brasil, Turquia e Índia emergindo e desempenhando um papel muito mais importante e isso precisa ser reforçado dentro da organização”.
De acordo com professor de relações internacionais da FGV-SP, uma reforma da ONU poderia fazer com que a organização perdesse ainda mais relevância. “Lembremos do que aconteceu com a Liga das Nações, que foi criada no pós-Primeira Guerra e fracassou porque não refletia a realidade do poder internacional. Estamos em um período de transição hegemônica e o que a história nos diz, infelizmente, é que esses períodos têm grande instabilidade e de maior fechamento ao comércio, investimentos e nacionalismo”, aponta Vieira.
O especialista indica que seria necessária uma nova guerra mundial para que haja uma reforma ou a refundação da ONU. É um período turbulento, em que os incentivos para que os países formem novas organizações ou reformem as organizações que já existem são baixos”.