A Rússia pode anexar um pedaço da Ucrânia? Como funciona uma anexação de território?


Carta da ONU proíbe anexação e conquista territorial, considerando invasão da Ucrânia por tropas russas como uma ação ilegítima

Por Redação

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, formalizou nesta sexta-feira, 30, a anexação de quatro regiões no leste da Ucrânia, em um movimento que a ONU chamou de “escalada perigosa” do conflito e acusou de violar sua Carta.

Diante dos referendos pela anexação à Rússia das regiões de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, antecipou que nenhuma decisão nesse âmbito será reconhecida ou terá valor jurídico.

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Mas afinal, a Rússia pode anexar territórios da Ucrânia? Algum país pode alegar que determinado território é seu, e não de outra nação soberana? Como funciona uma anexação?

Líderes das províncias ucranianas anexadas pela Rússia comemoram reconhecimento de referendos por Vladimir Putin. Foto: Dmitry Astakhov/ AFP

Na verdade, não funciona. A lei internacional é muito clara: anexação e conquista territorial são proibidas pela Carta das Nações Unidas. O documento diz: “Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.

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Sob essa interpretação, invadir o território vizinho em 24 de fevereiro foi uma ação ilegítima, e realizar referendos em um Estado que não se governa é uma forma de ingerência que viola a soberania e a autodeterminação dos povos.

“O Conselho de Segurança, começando com a Resolução 242 de novembro de 1967, afirmou expressamente a inadmissibilidade da aquisição de território por guerra ou força em oito ocasiões, mais recentemente em 2016″, disse Michael Lynk, o Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967. Desde a 2ª Guerra, as nações do mundo rejeitaram que a guerra e a conquista continuem sendo uma forma legítima da política moderna e conquista territorial. As ações da Rússia na anexação da Crimeia foram declaradas ilegais pelas Nações Unidas.

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“Pelo direito internacional, a invasão da Ucrânia e esta anexação são ilegais e não podem sequer ser consideradas como um ato de autodefesa ou intervenção humanitária”, diz John Bellinger, especialista em Direito Internacional e de Segurança Nacional no Council on Foreign Relations, um importante centro de estudos de relações internacionais nos EUA. “A invasão da Ucrânia pela Rússia viola o Artigo 2(4) da Carta da ONU, um princípio central da carta que exige que os Estados membros da ONU se abstenham do ‘uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado’”.

Segundo analistas, a sugestão do presidente Vladimir Putin e de outras autoridades russas de que o uso da força pela Rússia é justificado pelo artigo 51 da Carta da ONU não tem respaldo de fato ou de direito. O artigo 51 dispõe que “nada na presente Carta prejudicará o direito inerente à legítima defesa individual ou coletiva se ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas”.

“A Ucrânia não cometeu ou ameaçou cometer um ataque armado contra a Rússia ou qualquer outro estado membro da ONU. Mesmo que a Rússia pudesse mostrar que a Ucrânia cometeu ou planejava cometer ataques a russos nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, o Artigo 51 não permitiria uma ação em legítima defesa coletiva, muito menos a anexação, porque Donetsk e Luhansk não são Estados-membros da ONU. De fato, eles nem mesmo se qualificam como estados sob o direito internacional, apesar de sua suposta secessão da Ucrânia e do reconhecimento da Rússia como independentes”, explica Bellinger.

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As declarações de Putin de que a Ucrânia estava cometendo “genocídio” contra russos em Donetsk e Luhansk, embora um esforço velado para justificar o uso da força pela Rússia na linguagem do direito internacional, também não dariam a Rússia o direito de lançar uma invasão da Ucrânia. A Convenção sobre Genocídio define o crime como certas ações específicas destinadas a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Não há evidências de que a Ucrânia tenha se envolvido em qualquer uma das ações definidas.

Mesmo a alegação de reconhecimento como Estados independentes de regiões separatistas que supostamente teriam maioria russa é inconsistente com a lei internacional que rege a soberania e a secessão. Em geral, o direito internacional exige respeito pela integridade territorial dos Estados e não permite que as regiões dos Estados declarem independência e se separem. Especialistas em direito internacional acreditam que a chamada secessão corretiva é permissível como último recurso quando um povo sofreu graves abusos de direitos humanos nas mãos de um governo e não conseguiu exercer a autodeterminação interna, mas essa é uma visão minoritária - e não se aplica a nenhuma das regiões anexadas.

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“As ações da Rússia são uma repetição de seus movimentos na Crimeia em 2014, quando anexou a região depois de ela se declarara independente da Ucrânia em um referendo. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus não aceitam a anexação da Crimeia pela Rússia e consideram que a Rússia está ocupando ilegalmente parte da Ucrânia”, afirma Bellinger.

Placa de publicidade pró-Rússia na cidade de Simferopol, na Crimeia, durante a invasão russa em 2014. Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times - 11/03/2014

A Rússia reconheceu anteriormente duas regiões da Geórgia como estados independentes – Ossétia do Sul e Abkhazia – depois que declararam sua independência em 2008. Apenas quatro outros estados membros da ONU – Nauru, Nicarágua, Síria e Venezuela – reconhecem as regiões como independentes.

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Em contraste, a Rússia rejeitou a declaração de independência do Kosovo em 2008 da Sérvia, alegando que os kosovares não eram um povo distinto e não se qualificavam para a secessão corretiva. Desde então, 97 estados membros da ONU reconheceram Kosovo como um estado independente. Os Estados Unidos e muitos países europeus apoiam a independência do Kosovo, mas argumentam que sua situação é única e que não abriu um precedente para outras secessões territoriais.

“A mesma coisa vai acontecer com estas regiões ucranianas que estão sendo anexadas pela Rússia hoje. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus provavelmente considerarão as regiões como ilegalmente ocupadas pela Rússia”, diz Bellinger.

A volta das guerras por território

Uma pesquisa de opinião do Pew Research Center, feita em 2019, revela que um número surpreendente de europeus não está satisfeito com as fronteiras de seu país. Questionados se existem “partes de países vizinhos que realmente nos pertencem”, 67% dos húngaros responderam que sim, assim como 60% dos gregos, 58% dos búlgaros e turcos, 53% dos russos e 48% dos poloneses. Tais sentimentos espreitam até na Europa Ocidental – 37% dos espanhóis, 36% dos italianos e 30% dos alemães também concordam com a afirmação.

Diante disso e da ascensão de governos populistas de vários matizes ideológicos, a ideia de anexação voltou à discussão política global. “Anexionistas em potencial, em todo o mundo, estão animados. Mas se a aceitação da anexação se espalhasse, resultaria em derramamento de sangue e deslocamento de populações. Como Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia, alertou: ‘As fronteiras da Europa foram traçadas com sangue e mudá-las atrairá sangue novamente’”, escreveu Gideon Rachman, analista político e colunista chefe de relações exteriores do jornal britânico Financial Times.

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Medida foi tomada no país pela última vez na 2ª Guerra, quatro regiões controladas por Moscou na Ucrânia anunciaram referendos para integração a Rússia

O assanhamento de muitos líderes internacionais no que tange a absorção de territórios de outros países por meio da força é inegável. O governo chinês sempre insistiu em seu direito de acabar com a independência de fato de Taiwan por meios militares - e tem feito manobras com suas Forças Armadas para demonstrar que pode. No Japão, o agora morto primeiro-ministro Shinzo Abe fez da recuperação de ilhas perdidas para a Rússia após a 2ª Guerra um foco central de sua campanha, embora deixando claro que tudo seria feito por meio de negociação.

As ações de Moscou são surpreendentes porque violam o que agora é aceito como uma norma contra a conquista territorial pelas nações, afirma Tanisha Fazal, professora de ciência política da Universidade de Minnesota e autora de State Death: The Politics and Geography of Conquest, Occupation, and Annexation (A morte do Estado: política e geografia na conquista, ocupação e anexação).

“Essa norma começou com empreendimentos idealistas na esteira da 1ª Guerra, incluindo a tentativa de formar a Liga das Nações e um esforço ainda mais utópico: o Tratado de Renúncia à Guerra como Instrumento de Política Nacional, muitas vezes chamado de Pacto Kellogg-Briand, assinado em 1928″, disse Fazal. “A crise atual é um exemplo da norma funcionando uma vez que foi violada por Putin, e ele enfrentou uma punição esmagadora (mas não militar) da comunidade internacional por essa violação”.

Russos comemoram a anexação de territórios ucranianos nesta sexta-feira, 30. Foto: Yuri Kochetkov/ EFE

Em um artigo no site Vox, “How war became a crime” (como a guerra se tornou um crime), o jornalista Dylan Matthews dissecou a gênese da punição à tomada à força de territórios alheios.

“Essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra justa. Em seu livro de 2017 The Internationalists: How a Radical Plan to Outlaw War Remade the World, os professores de direito de Yale, Oona Hathaway e Scott Shapiro, observam que as normas predominantes em torno da guerra antes do século 20 não eram apenas permissivas, mas defensoras das guerras de conquista”, escreve Dylan no site Vox.

A morte violenta de nações por conquista costumava ser bastante comum. A Alemanha e a Itália existem como nações em grande parte devido aos seus Estados precursores mais poderosos (Prússia e Piemonte-Sardenha) conquistando e absorvendo Estados menores como Hanôver ou Sicília.

E essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra até o século 20. Especialmente após o fim da 2ª Guerra, tudo mudou. “As invasões para conquista territorial diminuíram drasticamente desde 1945, e as conquistas bem-sucedidas de territórios também”, disse Fazal ao site Vox.

Idosa vota em referendo sobre a anexação à Rússia em Donetsk; pleito, que terminou com 97% de votos favoráveis à junção à Rússia, foi apontada como 'encenação' pelo Ocidente. Foto: AP

O estabelecimento de uma norma internacional foi chave contra a conquista territorial. Elas não apenas proibiram o uso da força, mas tiraram as consequências ou benefícios legais de ir à guerra.

Hoje, segundo o estudo de Hathaway e Shapiro citado na Vox, as chances de um Estado perder território em um determinado ano caíram de 1,33% para 0,17%. Em outras palavras, as chances de ser conquistado caíram mais de 87%. E o território médio conquistado foi de apenas 14.950 quilômetros quadrados (do tamanho de Connecticut). “Um Estado médio antes de 1928 poderia esperar uma tentativa de conquista territorial em uma geração”, escrevem. “Depois de 1948, a chance de um estado médio sofrer uma conquista caiu de uma vez na vida para uma ou duas vezes por milênio.”

Punições para os anexadores

Países que tentem anexar territórios de outras nações soberanas podem sofrer uma série de punições. Além de uma vasta gama de sanções econômicas impostas por outros países, há medidas punitivas como o isolamento em organismos internacionais e de cooperação multilateral.

Há também uma série de ações possíveis dentro da Organização das Nações Unidas. A Assembleia Geral também pode exigir uma investigação da ONU sobre as ações da Rússia, instar os Estados membros a impor sanções à Rússia ou recomendar que a Rússia seja expulsa ou suspensa de certos órgãos.

Respostas militares à tomadas de territórios são possíveis. As missões da ONU que reverteram a invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte e a invasão do Kuwait pelo Iraque são exemplos. Mas em outros casos, particularmente aqueles que envolvem um ou mais dos cinco membros permanentes com poder de veto do Conselho de Segurança da ONU – como no caso da Rússia – tal ação é impossível.

No caso da Rússia, além das sanções financeiras impostas bilateralmente pelos Estados Unidos e vários outros países, a Rússia enfrenta a condenação generalizada e isolamento em órgãos internacionais.

Enquanto isso, o Conselho de Segurança da ONU votou uma resolução vinculante condenando a invasão e exigindo que a Rússia cesse suas ações militares e se retire da Ucrânia. Mas a Rússia, como membro permanente do Conselho de Segurança, vetou a resolução.

Nestes casos, a resolução 377(V) da Assembleia Geral da ONU de 1950 (a chamada resolução Unindo pela Paz), rege que no caso de um impasse no Conselho de Segurança, a Assembleia Geral da ONU deve “considerar o assunto imediatamente com o objetivo de fazer recomendações aos membros para medidas coletivas”.

Ministro das Relações Internacionais da Ucrânia, Dmitro Kuleba fala a delegações do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/ AFP - 22/09/2022

Em 2014, a Assembleia Geral adotou uma resolução esmagadoramente contrária às ações da Rússia como uma ameaça à integridade territorial, soberania e independência política da Ucrânia, depois que a Rússia anexou a Crimeia.

Além disso, a Ucrânia também apresentou outra reclamação contra a Rússia no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) no domingo, alegando que a Rússia interpretou mal a Convenção do Genocídio para justificar a invasão da Ucrânia.

A CIJ já está ouvindo duas reclamações que a Ucrânia apresentou em 2017 relacionadas às ações da Rússia na Crimeia e no leste da Ucrânia. Putin e outras autoridades russas podem enfrentar uma investigação da CIJ por crimes de guerra cometidos durante a invasão.

Embora a Rússia não seja parte do Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Ucrânia aceitou a jurisdição do TPI para crimes que ocorreram em seu território desde 2013 (exceto o crime de agressão, para o qual o TPI não não tem jurisdição para não partes). / NYT, AP, COM RODRIGO TURRER

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, formalizou nesta sexta-feira, 30, a anexação de quatro regiões no leste da Ucrânia, em um movimento que a ONU chamou de “escalada perigosa” do conflito e acusou de violar sua Carta.

Diante dos referendos pela anexação à Rússia das regiões de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, antecipou que nenhuma decisão nesse âmbito será reconhecida ou terá valor jurídico.

Mas afinal, a Rússia pode anexar territórios da Ucrânia? Algum país pode alegar que determinado território é seu, e não de outra nação soberana? Como funciona uma anexação?

Líderes das províncias ucranianas anexadas pela Rússia comemoram reconhecimento de referendos por Vladimir Putin. Foto: Dmitry Astakhov/ AFP

Na verdade, não funciona. A lei internacional é muito clara: anexação e conquista territorial são proibidas pela Carta das Nações Unidas. O documento diz: “Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.

Sob essa interpretação, invadir o território vizinho em 24 de fevereiro foi uma ação ilegítima, e realizar referendos em um Estado que não se governa é uma forma de ingerência que viola a soberania e a autodeterminação dos povos.

“O Conselho de Segurança, começando com a Resolução 242 de novembro de 1967, afirmou expressamente a inadmissibilidade da aquisição de território por guerra ou força em oito ocasiões, mais recentemente em 2016″, disse Michael Lynk, o Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967. Desde a 2ª Guerra, as nações do mundo rejeitaram que a guerra e a conquista continuem sendo uma forma legítima da política moderna e conquista territorial. As ações da Rússia na anexação da Crimeia foram declaradas ilegais pelas Nações Unidas.

“Pelo direito internacional, a invasão da Ucrânia e esta anexação são ilegais e não podem sequer ser consideradas como um ato de autodefesa ou intervenção humanitária”, diz John Bellinger, especialista em Direito Internacional e de Segurança Nacional no Council on Foreign Relations, um importante centro de estudos de relações internacionais nos EUA. “A invasão da Ucrânia pela Rússia viola o Artigo 2(4) da Carta da ONU, um princípio central da carta que exige que os Estados membros da ONU se abstenham do ‘uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado’”.

Segundo analistas, a sugestão do presidente Vladimir Putin e de outras autoridades russas de que o uso da força pela Rússia é justificado pelo artigo 51 da Carta da ONU não tem respaldo de fato ou de direito. O artigo 51 dispõe que “nada na presente Carta prejudicará o direito inerente à legítima defesa individual ou coletiva se ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas”.

“A Ucrânia não cometeu ou ameaçou cometer um ataque armado contra a Rússia ou qualquer outro estado membro da ONU. Mesmo que a Rússia pudesse mostrar que a Ucrânia cometeu ou planejava cometer ataques a russos nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, o Artigo 51 não permitiria uma ação em legítima defesa coletiva, muito menos a anexação, porque Donetsk e Luhansk não são Estados-membros da ONU. De fato, eles nem mesmo se qualificam como estados sob o direito internacional, apesar de sua suposta secessão da Ucrânia e do reconhecimento da Rússia como independentes”, explica Bellinger.

As declarações de Putin de que a Ucrânia estava cometendo “genocídio” contra russos em Donetsk e Luhansk, embora um esforço velado para justificar o uso da força pela Rússia na linguagem do direito internacional, também não dariam a Rússia o direito de lançar uma invasão da Ucrânia. A Convenção sobre Genocídio define o crime como certas ações específicas destinadas a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Não há evidências de que a Ucrânia tenha se envolvido em qualquer uma das ações definidas.

Mesmo a alegação de reconhecimento como Estados independentes de regiões separatistas que supostamente teriam maioria russa é inconsistente com a lei internacional que rege a soberania e a secessão. Em geral, o direito internacional exige respeito pela integridade territorial dos Estados e não permite que as regiões dos Estados declarem independência e se separem. Especialistas em direito internacional acreditam que a chamada secessão corretiva é permissível como último recurso quando um povo sofreu graves abusos de direitos humanos nas mãos de um governo e não conseguiu exercer a autodeterminação interna, mas essa é uma visão minoritária - e não se aplica a nenhuma das regiões anexadas.

“As ações da Rússia são uma repetição de seus movimentos na Crimeia em 2014, quando anexou a região depois de ela se declarara independente da Ucrânia em um referendo. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus não aceitam a anexação da Crimeia pela Rússia e consideram que a Rússia está ocupando ilegalmente parte da Ucrânia”, afirma Bellinger.

Placa de publicidade pró-Rússia na cidade de Simferopol, na Crimeia, durante a invasão russa em 2014. Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times - 11/03/2014

A Rússia reconheceu anteriormente duas regiões da Geórgia como estados independentes – Ossétia do Sul e Abkhazia – depois que declararam sua independência em 2008. Apenas quatro outros estados membros da ONU – Nauru, Nicarágua, Síria e Venezuela – reconhecem as regiões como independentes.

Em contraste, a Rússia rejeitou a declaração de independência do Kosovo em 2008 da Sérvia, alegando que os kosovares não eram um povo distinto e não se qualificavam para a secessão corretiva. Desde então, 97 estados membros da ONU reconheceram Kosovo como um estado independente. Os Estados Unidos e muitos países europeus apoiam a independência do Kosovo, mas argumentam que sua situação é única e que não abriu um precedente para outras secessões territoriais.

“A mesma coisa vai acontecer com estas regiões ucranianas que estão sendo anexadas pela Rússia hoje. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus provavelmente considerarão as regiões como ilegalmente ocupadas pela Rússia”, diz Bellinger.

A volta das guerras por território

Uma pesquisa de opinião do Pew Research Center, feita em 2019, revela que um número surpreendente de europeus não está satisfeito com as fronteiras de seu país. Questionados se existem “partes de países vizinhos que realmente nos pertencem”, 67% dos húngaros responderam que sim, assim como 60% dos gregos, 58% dos búlgaros e turcos, 53% dos russos e 48% dos poloneses. Tais sentimentos espreitam até na Europa Ocidental – 37% dos espanhóis, 36% dos italianos e 30% dos alemães também concordam com a afirmação.

Diante disso e da ascensão de governos populistas de vários matizes ideológicos, a ideia de anexação voltou à discussão política global. “Anexionistas em potencial, em todo o mundo, estão animados. Mas se a aceitação da anexação se espalhasse, resultaria em derramamento de sangue e deslocamento de populações. Como Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia, alertou: ‘As fronteiras da Europa foram traçadas com sangue e mudá-las atrairá sangue novamente’”, escreveu Gideon Rachman, analista político e colunista chefe de relações exteriores do jornal britânico Financial Times.

Seu navegador não suporta esse video.

Medida foi tomada no país pela última vez na 2ª Guerra, quatro regiões controladas por Moscou na Ucrânia anunciaram referendos para integração a Rússia

O assanhamento de muitos líderes internacionais no que tange a absorção de territórios de outros países por meio da força é inegável. O governo chinês sempre insistiu em seu direito de acabar com a independência de fato de Taiwan por meios militares - e tem feito manobras com suas Forças Armadas para demonstrar que pode. No Japão, o agora morto primeiro-ministro Shinzo Abe fez da recuperação de ilhas perdidas para a Rússia após a 2ª Guerra um foco central de sua campanha, embora deixando claro que tudo seria feito por meio de negociação.

As ações de Moscou são surpreendentes porque violam o que agora é aceito como uma norma contra a conquista territorial pelas nações, afirma Tanisha Fazal, professora de ciência política da Universidade de Minnesota e autora de State Death: The Politics and Geography of Conquest, Occupation, and Annexation (A morte do Estado: política e geografia na conquista, ocupação e anexação).

“Essa norma começou com empreendimentos idealistas na esteira da 1ª Guerra, incluindo a tentativa de formar a Liga das Nações e um esforço ainda mais utópico: o Tratado de Renúncia à Guerra como Instrumento de Política Nacional, muitas vezes chamado de Pacto Kellogg-Briand, assinado em 1928″, disse Fazal. “A crise atual é um exemplo da norma funcionando uma vez que foi violada por Putin, e ele enfrentou uma punição esmagadora (mas não militar) da comunidade internacional por essa violação”.

Russos comemoram a anexação de territórios ucranianos nesta sexta-feira, 30. Foto: Yuri Kochetkov/ EFE

Em um artigo no site Vox, “How war became a crime” (como a guerra se tornou um crime), o jornalista Dylan Matthews dissecou a gênese da punição à tomada à força de territórios alheios.

“Essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra justa. Em seu livro de 2017 The Internationalists: How a Radical Plan to Outlaw War Remade the World, os professores de direito de Yale, Oona Hathaway e Scott Shapiro, observam que as normas predominantes em torno da guerra antes do século 20 não eram apenas permissivas, mas defensoras das guerras de conquista”, escreve Dylan no site Vox.

A morte violenta de nações por conquista costumava ser bastante comum. A Alemanha e a Itália existem como nações em grande parte devido aos seus Estados precursores mais poderosos (Prússia e Piemonte-Sardenha) conquistando e absorvendo Estados menores como Hanôver ou Sicília.

E essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra até o século 20. Especialmente após o fim da 2ª Guerra, tudo mudou. “As invasões para conquista territorial diminuíram drasticamente desde 1945, e as conquistas bem-sucedidas de territórios também”, disse Fazal ao site Vox.

Idosa vota em referendo sobre a anexação à Rússia em Donetsk; pleito, que terminou com 97% de votos favoráveis à junção à Rússia, foi apontada como 'encenação' pelo Ocidente. Foto: AP

O estabelecimento de uma norma internacional foi chave contra a conquista territorial. Elas não apenas proibiram o uso da força, mas tiraram as consequências ou benefícios legais de ir à guerra.

Hoje, segundo o estudo de Hathaway e Shapiro citado na Vox, as chances de um Estado perder território em um determinado ano caíram de 1,33% para 0,17%. Em outras palavras, as chances de ser conquistado caíram mais de 87%. E o território médio conquistado foi de apenas 14.950 quilômetros quadrados (do tamanho de Connecticut). “Um Estado médio antes de 1928 poderia esperar uma tentativa de conquista territorial em uma geração”, escrevem. “Depois de 1948, a chance de um estado médio sofrer uma conquista caiu de uma vez na vida para uma ou duas vezes por milênio.”

Punições para os anexadores

Países que tentem anexar territórios de outras nações soberanas podem sofrer uma série de punições. Além de uma vasta gama de sanções econômicas impostas por outros países, há medidas punitivas como o isolamento em organismos internacionais e de cooperação multilateral.

Há também uma série de ações possíveis dentro da Organização das Nações Unidas. A Assembleia Geral também pode exigir uma investigação da ONU sobre as ações da Rússia, instar os Estados membros a impor sanções à Rússia ou recomendar que a Rússia seja expulsa ou suspensa de certos órgãos.

Respostas militares à tomadas de territórios são possíveis. As missões da ONU que reverteram a invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte e a invasão do Kuwait pelo Iraque são exemplos. Mas em outros casos, particularmente aqueles que envolvem um ou mais dos cinco membros permanentes com poder de veto do Conselho de Segurança da ONU – como no caso da Rússia – tal ação é impossível.

No caso da Rússia, além das sanções financeiras impostas bilateralmente pelos Estados Unidos e vários outros países, a Rússia enfrenta a condenação generalizada e isolamento em órgãos internacionais.

Enquanto isso, o Conselho de Segurança da ONU votou uma resolução vinculante condenando a invasão e exigindo que a Rússia cesse suas ações militares e se retire da Ucrânia. Mas a Rússia, como membro permanente do Conselho de Segurança, vetou a resolução.

Nestes casos, a resolução 377(V) da Assembleia Geral da ONU de 1950 (a chamada resolução Unindo pela Paz), rege que no caso de um impasse no Conselho de Segurança, a Assembleia Geral da ONU deve “considerar o assunto imediatamente com o objetivo de fazer recomendações aos membros para medidas coletivas”.

Ministro das Relações Internacionais da Ucrânia, Dmitro Kuleba fala a delegações do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/ AFP - 22/09/2022

Em 2014, a Assembleia Geral adotou uma resolução esmagadoramente contrária às ações da Rússia como uma ameaça à integridade territorial, soberania e independência política da Ucrânia, depois que a Rússia anexou a Crimeia.

Além disso, a Ucrânia também apresentou outra reclamação contra a Rússia no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) no domingo, alegando que a Rússia interpretou mal a Convenção do Genocídio para justificar a invasão da Ucrânia.

A CIJ já está ouvindo duas reclamações que a Ucrânia apresentou em 2017 relacionadas às ações da Rússia na Crimeia e no leste da Ucrânia. Putin e outras autoridades russas podem enfrentar uma investigação da CIJ por crimes de guerra cometidos durante a invasão.

Embora a Rússia não seja parte do Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Ucrânia aceitou a jurisdição do TPI para crimes que ocorreram em seu território desde 2013 (exceto o crime de agressão, para o qual o TPI não não tem jurisdição para não partes). / NYT, AP, COM RODRIGO TURRER

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, formalizou nesta sexta-feira, 30, a anexação de quatro regiões no leste da Ucrânia, em um movimento que a ONU chamou de “escalada perigosa” do conflito e acusou de violar sua Carta.

Diante dos referendos pela anexação à Rússia das regiões de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, antecipou que nenhuma decisão nesse âmbito será reconhecida ou terá valor jurídico.

Mas afinal, a Rússia pode anexar territórios da Ucrânia? Algum país pode alegar que determinado território é seu, e não de outra nação soberana? Como funciona uma anexação?

Líderes das províncias ucranianas anexadas pela Rússia comemoram reconhecimento de referendos por Vladimir Putin. Foto: Dmitry Astakhov/ AFP

Na verdade, não funciona. A lei internacional é muito clara: anexação e conquista territorial são proibidas pela Carta das Nações Unidas. O documento diz: “Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.

Sob essa interpretação, invadir o território vizinho em 24 de fevereiro foi uma ação ilegítima, e realizar referendos em um Estado que não se governa é uma forma de ingerência que viola a soberania e a autodeterminação dos povos.

“O Conselho de Segurança, começando com a Resolução 242 de novembro de 1967, afirmou expressamente a inadmissibilidade da aquisição de território por guerra ou força em oito ocasiões, mais recentemente em 2016″, disse Michael Lynk, o Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967. Desde a 2ª Guerra, as nações do mundo rejeitaram que a guerra e a conquista continuem sendo uma forma legítima da política moderna e conquista territorial. As ações da Rússia na anexação da Crimeia foram declaradas ilegais pelas Nações Unidas.

“Pelo direito internacional, a invasão da Ucrânia e esta anexação são ilegais e não podem sequer ser consideradas como um ato de autodefesa ou intervenção humanitária”, diz John Bellinger, especialista em Direito Internacional e de Segurança Nacional no Council on Foreign Relations, um importante centro de estudos de relações internacionais nos EUA. “A invasão da Ucrânia pela Rússia viola o Artigo 2(4) da Carta da ONU, um princípio central da carta que exige que os Estados membros da ONU se abstenham do ‘uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado’”.

Segundo analistas, a sugestão do presidente Vladimir Putin e de outras autoridades russas de que o uso da força pela Rússia é justificado pelo artigo 51 da Carta da ONU não tem respaldo de fato ou de direito. O artigo 51 dispõe que “nada na presente Carta prejudicará o direito inerente à legítima defesa individual ou coletiva se ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas”.

“A Ucrânia não cometeu ou ameaçou cometer um ataque armado contra a Rússia ou qualquer outro estado membro da ONU. Mesmo que a Rússia pudesse mostrar que a Ucrânia cometeu ou planejava cometer ataques a russos nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, o Artigo 51 não permitiria uma ação em legítima defesa coletiva, muito menos a anexação, porque Donetsk e Luhansk não são Estados-membros da ONU. De fato, eles nem mesmo se qualificam como estados sob o direito internacional, apesar de sua suposta secessão da Ucrânia e do reconhecimento da Rússia como independentes”, explica Bellinger.

As declarações de Putin de que a Ucrânia estava cometendo “genocídio” contra russos em Donetsk e Luhansk, embora um esforço velado para justificar o uso da força pela Rússia na linguagem do direito internacional, também não dariam a Rússia o direito de lançar uma invasão da Ucrânia. A Convenção sobre Genocídio define o crime como certas ações específicas destinadas a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Não há evidências de que a Ucrânia tenha se envolvido em qualquer uma das ações definidas.

Mesmo a alegação de reconhecimento como Estados independentes de regiões separatistas que supostamente teriam maioria russa é inconsistente com a lei internacional que rege a soberania e a secessão. Em geral, o direito internacional exige respeito pela integridade territorial dos Estados e não permite que as regiões dos Estados declarem independência e se separem. Especialistas em direito internacional acreditam que a chamada secessão corretiva é permissível como último recurso quando um povo sofreu graves abusos de direitos humanos nas mãos de um governo e não conseguiu exercer a autodeterminação interna, mas essa é uma visão minoritária - e não se aplica a nenhuma das regiões anexadas.

“As ações da Rússia são uma repetição de seus movimentos na Crimeia em 2014, quando anexou a região depois de ela se declarara independente da Ucrânia em um referendo. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus não aceitam a anexação da Crimeia pela Rússia e consideram que a Rússia está ocupando ilegalmente parte da Ucrânia”, afirma Bellinger.

Placa de publicidade pró-Rússia na cidade de Simferopol, na Crimeia, durante a invasão russa em 2014. Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times - 11/03/2014

A Rússia reconheceu anteriormente duas regiões da Geórgia como estados independentes – Ossétia do Sul e Abkhazia – depois que declararam sua independência em 2008. Apenas quatro outros estados membros da ONU – Nauru, Nicarágua, Síria e Venezuela – reconhecem as regiões como independentes.

Em contraste, a Rússia rejeitou a declaração de independência do Kosovo em 2008 da Sérvia, alegando que os kosovares não eram um povo distinto e não se qualificavam para a secessão corretiva. Desde então, 97 estados membros da ONU reconheceram Kosovo como um estado independente. Os Estados Unidos e muitos países europeus apoiam a independência do Kosovo, mas argumentam que sua situação é única e que não abriu um precedente para outras secessões territoriais.

“A mesma coisa vai acontecer com estas regiões ucranianas que estão sendo anexadas pela Rússia hoje. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus provavelmente considerarão as regiões como ilegalmente ocupadas pela Rússia”, diz Bellinger.

A volta das guerras por território

Uma pesquisa de opinião do Pew Research Center, feita em 2019, revela que um número surpreendente de europeus não está satisfeito com as fronteiras de seu país. Questionados se existem “partes de países vizinhos que realmente nos pertencem”, 67% dos húngaros responderam que sim, assim como 60% dos gregos, 58% dos búlgaros e turcos, 53% dos russos e 48% dos poloneses. Tais sentimentos espreitam até na Europa Ocidental – 37% dos espanhóis, 36% dos italianos e 30% dos alemães também concordam com a afirmação.

Diante disso e da ascensão de governos populistas de vários matizes ideológicos, a ideia de anexação voltou à discussão política global. “Anexionistas em potencial, em todo o mundo, estão animados. Mas se a aceitação da anexação se espalhasse, resultaria em derramamento de sangue e deslocamento de populações. Como Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia, alertou: ‘As fronteiras da Europa foram traçadas com sangue e mudá-las atrairá sangue novamente’”, escreveu Gideon Rachman, analista político e colunista chefe de relações exteriores do jornal britânico Financial Times.

Seu navegador não suporta esse video.

Medida foi tomada no país pela última vez na 2ª Guerra, quatro regiões controladas por Moscou na Ucrânia anunciaram referendos para integração a Rússia

O assanhamento de muitos líderes internacionais no que tange a absorção de territórios de outros países por meio da força é inegável. O governo chinês sempre insistiu em seu direito de acabar com a independência de fato de Taiwan por meios militares - e tem feito manobras com suas Forças Armadas para demonstrar que pode. No Japão, o agora morto primeiro-ministro Shinzo Abe fez da recuperação de ilhas perdidas para a Rússia após a 2ª Guerra um foco central de sua campanha, embora deixando claro que tudo seria feito por meio de negociação.

As ações de Moscou são surpreendentes porque violam o que agora é aceito como uma norma contra a conquista territorial pelas nações, afirma Tanisha Fazal, professora de ciência política da Universidade de Minnesota e autora de State Death: The Politics and Geography of Conquest, Occupation, and Annexation (A morte do Estado: política e geografia na conquista, ocupação e anexação).

“Essa norma começou com empreendimentos idealistas na esteira da 1ª Guerra, incluindo a tentativa de formar a Liga das Nações e um esforço ainda mais utópico: o Tratado de Renúncia à Guerra como Instrumento de Política Nacional, muitas vezes chamado de Pacto Kellogg-Briand, assinado em 1928″, disse Fazal. “A crise atual é um exemplo da norma funcionando uma vez que foi violada por Putin, e ele enfrentou uma punição esmagadora (mas não militar) da comunidade internacional por essa violação”.

Russos comemoram a anexação de territórios ucranianos nesta sexta-feira, 30. Foto: Yuri Kochetkov/ EFE

Em um artigo no site Vox, “How war became a crime” (como a guerra se tornou um crime), o jornalista Dylan Matthews dissecou a gênese da punição à tomada à força de territórios alheios.

“Essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra justa. Em seu livro de 2017 The Internationalists: How a Radical Plan to Outlaw War Remade the World, os professores de direito de Yale, Oona Hathaway e Scott Shapiro, observam que as normas predominantes em torno da guerra antes do século 20 não eram apenas permissivas, mas defensoras das guerras de conquista”, escreve Dylan no site Vox.

A morte violenta de nações por conquista costumava ser bastante comum. A Alemanha e a Itália existem como nações em grande parte devido aos seus Estados precursores mais poderosos (Prússia e Piemonte-Sardenha) conquistando e absorvendo Estados menores como Hanôver ou Sicília.

E essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra até o século 20. Especialmente após o fim da 2ª Guerra, tudo mudou. “As invasões para conquista territorial diminuíram drasticamente desde 1945, e as conquistas bem-sucedidas de territórios também”, disse Fazal ao site Vox.

Idosa vota em referendo sobre a anexação à Rússia em Donetsk; pleito, que terminou com 97% de votos favoráveis à junção à Rússia, foi apontada como 'encenação' pelo Ocidente. Foto: AP

O estabelecimento de uma norma internacional foi chave contra a conquista territorial. Elas não apenas proibiram o uso da força, mas tiraram as consequências ou benefícios legais de ir à guerra.

Hoje, segundo o estudo de Hathaway e Shapiro citado na Vox, as chances de um Estado perder território em um determinado ano caíram de 1,33% para 0,17%. Em outras palavras, as chances de ser conquistado caíram mais de 87%. E o território médio conquistado foi de apenas 14.950 quilômetros quadrados (do tamanho de Connecticut). “Um Estado médio antes de 1928 poderia esperar uma tentativa de conquista territorial em uma geração”, escrevem. “Depois de 1948, a chance de um estado médio sofrer uma conquista caiu de uma vez na vida para uma ou duas vezes por milênio.”

Punições para os anexadores

Países que tentem anexar territórios de outras nações soberanas podem sofrer uma série de punições. Além de uma vasta gama de sanções econômicas impostas por outros países, há medidas punitivas como o isolamento em organismos internacionais e de cooperação multilateral.

Há também uma série de ações possíveis dentro da Organização das Nações Unidas. A Assembleia Geral também pode exigir uma investigação da ONU sobre as ações da Rússia, instar os Estados membros a impor sanções à Rússia ou recomendar que a Rússia seja expulsa ou suspensa de certos órgãos.

Respostas militares à tomadas de territórios são possíveis. As missões da ONU que reverteram a invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte e a invasão do Kuwait pelo Iraque são exemplos. Mas em outros casos, particularmente aqueles que envolvem um ou mais dos cinco membros permanentes com poder de veto do Conselho de Segurança da ONU – como no caso da Rússia – tal ação é impossível.

No caso da Rússia, além das sanções financeiras impostas bilateralmente pelos Estados Unidos e vários outros países, a Rússia enfrenta a condenação generalizada e isolamento em órgãos internacionais.

Enquanto isso, o Conselho de Segurança da ONU votou uma resolução vinculante condenando a invasão e exigindo que a Rússia cesse suas ações militares e se retire da Ucrânia. Mas a Rússia, como membro permanente do Conselho de Segurança, vetou a resolução.

Nestes casos, a resolução 377(V) da Assembleia Geral da ONU de 1950 (a chamada resolução Unindo pela Paz), rege que no caso de um impasse no Conselho de Segurança, a Assembleia Geral da ONU deve “considerar o assunto imediatamente com o objetivo de fazer recomendações aos membros para medidas coletivas”.

Ministro das Relações Internacionais da Ucrânia, Dmitro Kuleba fala a delegações do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/ AFP - 22/09/2022

Em 2014, a Assembleia Geral adotou uma resolução esmagadoramente contrária às ações da Rússia como uma ameaça à integridade territorial, soberania e independência política da Ucrânia, depois que a Rússia anexou a Crimeia.

Além disso, a Ucrânia também apresentou outra reclamação contra a Rússia no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) no domingo, alegando que a Rússia interpretou mal a Convenção do Genocídio para justificar a invasão da Ucrânia.

A CIJ já está ouvindo duas reclamações que a Ucrânia apresentou em 2017 relacionadas às ações da Rússia na Crimeia e no leste da Ucrânia. Putin e outras autoridades russas podem enfrentar uma investigação da CIJ por crimes de guerra cometidos durante a invasão.

Embora a Rússia não seja parte do Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Ucrânia aceitou a jurisdição do TPI para crimes que ocorreram em seu território desde 2013 (exceto o crime de agressão, para o qual o TPI não não tem jurisdição para não partes). / NYT, AP, COM RODRIGO TURRER

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, formalizou nesta sexta-feira, 30, a anexação de quatro regiões no leste da Ucrânia, em um movimento que a ONU chamou de “escalada perigosa” do conflito e acusou de violar sua Carta.

Diante dos referendos pela anexação à Rússia das regiões de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, antecipou que nenhuma decisão nesse âmbito será reconhecida ou terá valor jurídico.

Mas afinal, a Rússia pode anexar territórios da Ucrânia? Algum país pode alegar que determinado território é seu, e não de outra nação soberana? Como funciona uma anexação?

Líderes das províncias ucranianas anexadas pela Rússia comemoram reconhecimento de referendos por Vladimir Putin. Foto: Dmitry Astakhov/ AFP

Na verdade, não funciona. A lei internacional é muito clara: anexação e conquista territorial são proibidas pela Carta das Nações Unidas. O documento diz: “Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.

Sob essa interpretação, invadir o território vizinho em 24 de fevereiro foi uma ação ilegítima, e realizar referendos em um Estado que não se governa é uma forma de ingerência que viola a soberania e a autodeterminação dos povos.

“O Conselho de Segurança, começando com a Resolução 242 de novembro de 1967, afirmou expressamente a inadmissibilidade da aquisição de território por guerra ou força em oito ocasiões, mais recentemente em 2016″, disse Michael Lynk, o Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967. Desde a 2ª Guerra, as nações do mundo rejeitaram que a guerra e a conquista continuem sendo uma forma legítima da política moderna e conquista territorial. As ações da Rússia na anexação da Crimeia foram declaradas ilegais pelas Nações Unidas.

“Pelo direito internacional, a invasão da Ucrânia e esta anexação são ilegais e não podem sequer ser consideradas como um ato de autodefesa ou intervenção humanitária”, diz John Bellinger, especialista em Direito Internacional e de Segurança Nacional no Council on Foreign Relations, um importante centro de estudos de relações internacionais nos EUA. “A invasão da Ucrânia pela Rússia viola o Artigo 2(4) da Carta da ONU, um princípio central da carta que exige que os Estados membros da ONU se abstenham do ‘uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado’”.

Segundo analistas, a sugestão do presidente Vladimir Putin e de outras autoridades russas de que o uso da força pela Rússia é justificado pelo artigo 51 da Carta da ONU não tem respaldo de fato ou de direito. O artigo 51 dispõe que “nada na presente Carta prejudicará o direito inerente à legítima defesa individual ou coletiva se ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas”.

“A Ucrânia não cometeu ou ameaçou cometer um ataque armado contra a Rússia ou qualquer outro estado membro da ONU. Mesmo que a Rússia pudesse mostrar que a Ucrânia cometeu ou planejava cometer ataques a russos nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, o Artigo 51 não permitiria uma ação em legítima defesa coletiva, muito menos a anexação, porque Donetsk e Luhansk não são Estados-membros da ONU. De fato, eles nem mesmo se qualificam como estados sob o direito internacional, apesar de sua suposta secessão da Ucrânia e do reconhecimento da Rússia como independentes”, explica Bellinger.

As declarações de Putin de que a Ucrânia estava cometendo “genocídio” contra russos em Donetsk e Luhansk, embora um esforço velado para justificar o uso da força pela Rússia na linguagem do direito internacional, também não dariam a Rússia o direito de lançar uma invasão da Ucrânia. A Convenção sobre Genocídio define o crime como certas ações específicas destinadas a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Não há evidências de que a Ucrânia tenha se envolvido em qualquer uma das ações definidas.

Mesmo a alegação de reconhecimento como Estados independentes de regiões separatistas que supostamente teriam maioria russa é inconsistente com a lei internacional que rege a soberania e a secessão. Em geral, o direito internacional exige respeito pela integridade territorial dos Estados e não permite que as regiões dos Estados declarem independência e se separem. Especialistas em direito internacional acreditam que a chamada secessão corretiva é permissível como último recurso quando um povo sofreu graves abusos de direitos humanos nas mãos de um governo e não conseguiu exercer a autodeterminação interna, mas essa é uma visão minoritária - e não se aplica a nenhuma das regiões anexadas.

“As ações da Rússia são uma repetição de seus movimentos na Crimeia em 2014, quando anexou a região depois de ela se declarara independente da Ucrânia em um referendo. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus não aceitam a anexação da Crimeia pela Rússia e consideram que a Rússia está ocupando ilegalmente parte da Ucrânia”, afirma Bellinger.

Placa de publicidade pró-Rússia na cidade de Simferopol, na Crimeia, durante a invasão russa em 2014. Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times - 11/03/2014

A Rússia reconheceu anteriormente duas regiões da Geórgia como estados independentes – Ossétia do Sul e Abkhazia – depois que declararam sua independência em 2008. Apenas quatro outros estados membros da ONU – Nauru, Nicarágua, Síria e Venezuela – reconhecem as regiões como independentes.

Em contraste, a Rússia rejeitou a declaração de independência do Kosovo em 2008 da Sérvia, alegando que os kosovares não eram um povo distinto e não se qualificavam para a secessão corretiva. Desde então, 97 estados membros da ONU reconheceram Kosovo como um estado independente. Os Estados Unidos e muitos países europeus apoiam a independência do Kosovo, mas argumentam que sua situação é única e que não abriu um precedente para outras secessões territoriais.

“A mesma coisa vai acontecer com estas regiões ucranianas que estão sendo anexadas pela Rússia hoje. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus provavelmente considerarão as regiões como ilegalmente ocupadas pela Rússia”, diz Bellinger.

A volta das guerras por território

Uma pesquisa de opinião do Pew Research Center, feita em 2019, revela que um número surpreendente de europeus não está satisfeito com as fronteiras de seu país. Questionados se existem “partes de países vizinhos que realmente nos pertencem”, 67% dos húngaros responderam que sim, assim como 60% dos gregos, 58% dos búlgaros e turcos, 53% dos russos e 48% dos poloneses. Tais sentimentos espreitam até na Europa Ocidental – 37% dos espanhóis, 36% dos italianos e 30% dos alemães também concordam com a afirmação.

Diante disso e da ascensão de governos populistas de vários matizes ideológicos, a ideia de anexação voltou à discussão política global. “Anexionistas em potencial, em todo o mundo, estão animados. Mas se a aceitação da anexação se espalhasse, resultaria em derramamento de sangue e deslocamento de populações. Como Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia, alertou: ‘As fronteiras da Europa foram traçadas com sangue e mudá-las atrairá sangue novamente’”, escreveu Gideon Rachman, analista político e colunista chefe de relações exteriores do jornal britânico Financial Times.

Seu navegador não suporta esse video.

Medida foi tomada no país pela última vez na 2ª Guerra, quatro regiões controladas por Moscou na Ucrânia anunciaram referendos para integração a Rússia

O assanhamento de muitos líderes internacionais no que tange a absorção de territórios de outros países por meio da força é inegável. O governo chinês sempre insistiu em seu direito de acabar com a independência de fato de Taiwan por meios militares - e tem feito manobras com suas Forças Armadas para demonstrar que pode. No Japão, o agora morto primeiro-ministro Shinzo Abe fez da recuperação de ilhas perdidas para a Rússia após a 2ª Guerra um foco central de sua campanha, embora deixando claro que tudo seria feito por meio de negociação.

As ações de Moscou são surpreendentes porque violam o que agora é aceito como uma norma contra a conquista territorial pelas nações, afirma Tanisha Fazal, professora de ciência política da Universidade de Minnesota e autora de State Death: The Politics and Geography of Conquest, Occupation, and Annexation (A morte do Estado: política e geografia na conquista, ocupação e anexação).

“Essa norma começou com empreendimentos idealistas na esteira da 1ª Guerra, incluindo a tentativa de formar a Liga das Nações e um esforço ainda mais utópico: o Tratado de Renúncia à Guerra como Instrumento de Política Nacional, muitas vezes chamado de Pacto Kellogg-Briand, assinado em 1928″, disse Fazal. “A crise atual é um exemplo da norma funcionando uma vez que foi violada por Putin, e ele enfrentou uma punição esmagadora (mas não militar) da comunidade internacional por essa violação”.

Russos comemoram a anexação de territórios ucranianos nesta sexta-feira, 30. Foto: Yuri Kochetkov/ EFE

Em um artigo no site Vox, “How war became a crime” (como a guerra se tornou um crime), o jornalista Dylan Matthews dissecou a gênese da punição à tomada à força de territórios alheios.

“Essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra justa. Em seu livro de 2017 The Internationalists: How a Radical Plan to Outlaw War Remade the World, os professores de direito de Yale, Oona Hathaway e Scott Shapiro, observam que as normas predominantes em torno da guerra antes do século 20 não eram apenas permissivas, mas defensoras das guerras de conquista”, escreve Dylan no site Vox.

A morte violenta de nações por conquista costumava ser bastante comum. A Alemanha e a Itália existem como nações em grande parte devido aos seus Estados precursores mais poderosos (Prússia e Piemonte-Sardenha) conquistando e absorvendo Estados menores como Hanôver ou Sicília.

E essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra até o século 20. Especialmente após o fim da 2ª Guerra, tudo mudou. “As invasões para conquista territorial diminuíram drasticamente desde 1945, e as conquistas bem-sucedidas de territórios também”, disse Fazal ao site Vox.

Idosa vota em referendo sobre a anexação à Rússia em Donetsk; pleito, que terminou com 97% de votos favoráveis à junção à Rússia, foi apontada como 'encenação' pelo Ocidente. Foto: AP

O estabelecimento de uma norma internacional foi chave contra a conquista territorial. Elas não apenas proibiram o uso da força, mas tiraram as consequências ou benefícios legais de ir à guerra.

Hoje, segundo o estudo de Hathaway e Shapiro citado na Vox, as chances de um Estado perder território em um determinado ano caíram de 1,33% para 0,17%. Em outras palavras, as chances de ser conquistado caíram mais de 87%. E o território médio conquistado foi de apenas 14.950 quilômetros quadrados (do tamanho de Connecticut). “Um Estado médio antes de 1928 poderia esperar uma tentativa de conquista territorial em uma geração”, escrevem. “Depois de 1948, a chance de um estado médio sofrer uma conquista caiu de uma vez na vida para uma ou duas vezes por milênio.”

Punições para os anexadores

Países que tentem anexar territórios de outras nações soberanas podem sofrer uma série de punições. Além de uma vasta gama de sanções econômicas impostas por outros países, há medidas punitivas como o isolamento em organismos internacionais e de cooperação multilateral.

Há também uma série de ações possíveis dentro da Organização das Nações Unidas. A Assembleia Geral também pode exigir uma investigação da ONU sobre as ações da Rússia, instar os Estados membros a impor sanções à Rússia ou recomendar que a Rússia seja expulsa ou suspensa de certos órgãos.

Respostas militares à tomadas de territórios são possíveis. As missões da ONU que reverteram a invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte e a invasão do Kuwait pelo Iraque são exemplos. Mas em outros casos, particularmente aqueles que envolvem um ou mais dos cinco membros permanentes com poder de veto do Conselho de Segurança da ONU – como no caso da Rússia – tal ação é impossível.

No caso da Rússia, além das sanções financeiras impostas bilateralmente pelos Estados Unidos e vários outros países, a Rússia enfrenta a condenação generalizada e isolamento em órgãos internacionais.

Enquanto isso, o Conselho de Segurança da ONU votou uma resolução vinculante condenando a invasão e exigindo que a Rússia cesse suas ações militares e se retire da Ucrânia. Mas a Rússia, como membro permanente do Conselho de Segurança, vetou a resolução.

Nestes casos, a resolução 377(V) da Assembleia Geral da ONU de 1950 (a chamada resolução Unindo pela Paz), rege que no caso de um impasse no Conselho de Segurança, a Assembleia Geral da ONU deve “considerar o assunto imediatamente com o objetivo de fazer recomendações aos membros para medidas coletivas”.

Ministro das Relações Internacionais da Ucrânia, Dmitro Kuleba fala a delegações do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/ AFP - 22/09/2022

Em 2014, a Assembleia Geral adotou uma resolução esmagadoramente contrária às ações da Rússia como uma ameaça à integridade territorial, soberania e independência política da Ucrânia, depois que a Rússia anexou a Crimeia.

Além disso, a Ucrânia também apresentou outra reclamação contra a Rússia no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) no domingo, alegando que a Rússia interpretou mal a Convenção do Genocídio para justificar a invasão da Ucrânia.

A CIJ já está ouvindo duas reclamações que a Ucrânia apresentou em 2017 relacionadas às ações da Rússia na Crimeia e no leste da Ucrânia. Putin e outras autoridades russas podem enfrentar uma investigação da CIJ por crimes de guerra cometidos durante a invasão.

Embora a Rússia não seja parte do Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Ucrânia aceitou a jurisdição do TPI para crimes que ocorreram em seu território desde 2013 (exceto o crime de agressão, para o qual o TPI não não tem jurisdição para não partes). / NYT, AP, COM RODRIGO TURRER

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, formalizou nesta sexta-feira, 30, a anexação de quatro regiões no leste da Ucrânia, em um movimento que a ONU chamou de “escalada perigosa” do conflito e acusou de violar sua Carta.

Diante dos referendos pela anexação à Rússia das regiões de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, antecipou que nenhuma decisão nesse âmbito será reconhecida ou terá valor jurídico.

Mas afinal, a Rússia pode anexar territórios da Ucrânia? Algum país pode alegar que determinado território é seu, e não de outra nação soberana? Como funciona uma anexação?

Líderes das províncias ucranianas anexadas pela Rússia comemoram reconhecimento de referendos por Vladimir Putin. Foto: Dmitry Astakhov/ AFP

Na verdade, não funciona. A lei internacional é muito clara: anexação e conquista territorial são proibidas pela Carta das Nações Unidas. O documento diz: “Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.

Sob essa interpretação, invadir o território vizinho em 24 de fevereiro foi uma ação ilegítima, e realizar referendos em um Estado que não se governa é uma forma de ingerência que viola a soberania e a autodeterminação dos povos.

“O Conselho de Segurança, começando com a Resolução 242 de novembro de 1967, afirmou expressamente a inadmissibilidade da aquisição de território por guerra ou força em oito ocasiões, mais recentemente em 2016″, disse Michael Lynk, o Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967. Desde a 2ª Guerra, as nações do mundo rejeitaram que a guerra e a conquista continuem sendo uma forma legítima da política moderna e conquista territorial. As ações da Rússia na anexação da Crimeia foram declaradas ilegais pelas Nações Unidas.

“Pelo direito internacional, a invasão da Ucrânia e esta anexação são ilegais e não podem sequer ser consideradas como um ato de autodefesa ou intervenção humanitária”, diz John Bellinger, especialista em Direito Internacional e de Segurança Nacional no Council on Foreign Relations, um importante centro de estudos de relações internacionais nos EUA. “A invasão da Ucrânia pela Rússia viola o Artigo 2(4) da Carta da ONU, um princípio central da carta que exige que os Estados membros da ONU se abstenham do ‘uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado’”.

Segundo analistas, a sugestão do presidente Vladimir Putin e de outras autoridades russas de que o uso da força pela Rússia é justificado pelo artigo 51 da Carta da ONU não tem respaldo de fato ou de direito. O artigo 51 dispõe que “nada na presente Carta prejudicará o direito inerente à legítima defesa individual ou coletiva se ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas”.

“A Ucrânia não cometeu ou ameaçou cometer um ataque armado contra a Rússia ou qualquer outro estado membro da ONU. Mesmo que a Rússia pudesse mostrar que a Ucrânia cometeu ou planejava cometer ataques a russos nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, o Artigo 51 não permitiria uma ação em legítima defesa coletiva, muito menos a anexação, porque Donetsk e Luhansk não são Estados-membros da ONU. De fato, eles nem mesmo se qualificam como estados sob o direito internacional, apesar de sua suposta secessão da Ucrânia e do reconhecimento da Rússia como independentes”, explica Bellinger.

As declarações de Putin de que a Ucrânia estava cometendo “genocídio” contra russos em Donetsk e Luhansk, embora um esforço velado para justificar o uso da força pela Rússia na linguagem do direito internacional, também não dariam a Rússia o direito de lançar uma invasão da Ucrânia. A Convenção sobre Genocídio define o crime como certas ações específicas destinadas a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Não há evidências de que a Ucrânia tenha se envolvido em qualquer uma das ações definidas.

Mesmo a alegação de reconhecimento como Estados independentes de regiões separatistas que supostamente teriam maioria russa é inconsistente com a lei internacional que rege a soberania e a secessão. Em geral, o direito internacional exige respeito pela integridade territorial dos Estados e não permite que as regiões dos Estados declarem independência e se separem. Especialistas em direito internacional acreditam que a chamada secessão corretiva é permissível como último recurso quando um povo sofreu graves abusos de direitos humanos nas mãos de um governo e não conseguiu exercer a autodeterminação interna, mas essa é uma visão minoritária - e não se aplica a nenhuma das regiões anexadas.

“As ações da Rússia são uma repetição de seus movimentos na Crimeia em 2014, quando anexou a região depois de ela se declarara independente da Ucrânia em um referendo. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus não aceitam a anexação da Crimeia pela Rússia e consideram que a Rússia está ocupando ilegalmente parte da Ucrânia”, afirma Bellinger.

Placa de publicidade pró-Rússia na cidade de Simferopol, na Crimeia, durante a invasão russa em 2014. Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times - 11/03/2014

A Rússia reconheceu anteriormente duas regiões da Geórgia como estados independentes – Ossétia do Sul e Abkhazia – depois que declararam sua independência em 2008. Apenas quatro outros estados membros da ONU – Nauru, Nicarágua, Síria e Venezuela – reconhecem as regiões como independentes.

Em contraste, a Rússia rejeitou a declaração de independência do Kosovo em 2008 da Sérvia, alegando que os kosovares não eram um povo distinto e não se qualificavam para a secessão corretiva. Desde então, 97 estados membros da ONU reconheceram Kosovo como um estado independente. Os Estados Unidos e muitos países europeus apoiam a independência do Kosovo, mas argumentam que sua situação é única e que não abriu um precedente para outras secessões territoriais.

“A mesma coisa vai acontecer com estas regiões ucranianas que estão sendo anexadas pela Rússia hoje. A ONU, os Estados Unidos e a maioria dos países europeus provavelmente considerarão as regiões como ilegalmente ocupadas pela Rússia”, diz Bellinger.

A volta das guerras por território

Uma pesquisa de opinião do Pew Research Center, feita em 2019, revela que um número surpreendente de europeus não está satisfeito com as fronteiras de seu país. Questionados se existem “partes de países vizinhos que realmente nos pertencem”, 67% dos húngaros responderam que sim, assim como 60% dos gregos, 58% dos búlgaros e turcos, 53% dos russos e 48% dos poloneses. Tais sentimentos espreitam até na Europa Ocidental – 37% dos espanhóis, 36% dos italianos e 30% dos alemães também concordam com a afirmação.

Diante disso e da ascensão de governos populistas de vários matizes ideológicos, a ideia de anexação voltou à discussão política global. “Anexionistas em potencial, em todo o mundo, estão animados. Mas se a aceitação da anexação se espalhasse, resultaria em derramamento de sangue e deslocamento de populações. Como Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia, alertou: ‘As fronteiras da Europa foram traçadas com sangue e mudá-las atrairá sangue novamente’”, escreveu Gideon Rachman, analista político e colunista chefe de relações exteriores do jornal britânico Financial Times.

Seu navegador não suporta esse video.

Medida foi tomada no país pela última vez na 2ª Guerra, quatro regiões controladas por Moscou na Ucrânia anunciaram referendos para integração a Rússia

O assanhamento de muitos líderes internacionais no que tange a absorção de territórios de outros países por meio da força é inegável. O governo chinês sempre insistiu em seu direito de acabar com a independência de fato de Taiwan por meios militares - e tem feito manobras com suas Forças Armadas para demonstrar que pode. No Japão, o agora morto primeiro-ministro Shinzo Abe fez da recuperação de ilhas perdidas para a Rússia após a 2ª Guerra um foco central de sua campanha, embora deixando claro que tudo seria feito por meio de negociação.

As ações de Moscou são surpreendentes porque violam o que agora é aceito como uma norma contra a conquista territorial pelas nações, afirma Tanisha Fazal, professora de ciência política da Universidade de Minnesota e autora de State Death: The Politics and Geography of Conquest, Occupation, and Annexation (A morte do Estado: política e geografia na conquista, ocupação e anexação).

“Essa norma começou com empreendimentos idealistas na esteira da 1ª Guerra, incluindo a tentativa de formar a Liga das Nações e um esforço ainda mais utópico: o Tratado de Renúncia à Guerra como Instrumento de Política Nacional, muitas vezes chamado de Pacto Kellogg-Briand, assinado em 1928″, disse Fazal. “A crise atual é um exemplo da norma funcionando uma vez que foi violada por Putin, e ele enfrentou uma punição esmagadora (mas não militar) da comunidade internacional por essa violação”.

Russos comemoram a anexação de territórios ucranianos nesta sexta-feira, 30. Foto: Yuri Kochetkov/ EFE

Em um artigo no site Vox, “How war became a crime” (como a guerra se tornou um crime), o jornalista Dylan Matthews dissecou a gênese da punição à tomada à força de territórios alheios.

“Essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra justa. Em seu livro de 2017 The Internationalists: How a Radical Plan to Outlaw War Remade the World, os professores de direito de Yale, Oona Hathaway e Scott Shapiro, observam que as normas predominantes em torno da guerra antes do século 20 não eram apenas permissivas, mas defensoras das guerras de conquista”, escreve Dylan no site Vox.

A morte violenta de nações por conquista costumava ser bastante comum. A Alemanha e a Itália existem como nações em grande parte devido aos seus Estados precursores mais poderosos (Prússia e Piemonte-Sardenha) conquistando e absorvendo Estados menores como Hanôver ou Sicília.

E essa forma de guerra pela conquista foi institucionalizada na lei e no raciocínio da guerra até o século 20. Especialmente após o fim da 2ª Guerra, tudo mudou. “As invasões para conquista territorial diminuíram drasticamente desde 1945, e as conquistas bem-sucedidas de territórios também”, disse Fazal ao site Vox.

Idosa vota em referendo sobre a anexação à Rússia em Donetsk; pleito, que terminou com 97% de votos favoráveis à junção à Rússia, foi apontada como 'encenação' pelo Ocidente. Foto: AP

O estabelecimento de uma norma internacional foi chave contra a conquista territorial. Elas não apenas proibiram o uso da força, mas tiraram as consequências ou benefícios legais de ir à guerra.

Hoje, segundo o estudo de Hathaway e Shapiro citado na Vox, as chances de um Estado perder território em um determinado ano caíram de 1,33% para 0,17%. Em outras palavras, as chances de ser conquistado caíram mais de 87%. E o território médio conquistado foi de apenas 14.950 quilômetros quadrados (do tamanho de Connecticut). “Um Estado médio antes de 1928 poderia esperar uma tentativa de conquista territorial em uma geração”, escrevem. “Depois de 1948, a chance de um estado médio sofrer uma conquista caiu de uma vez na vida para uma ou duas vezes por milênio.”

Punições para os anexadores

Países que tentem anexar territórios de outras nações soberanas podem sofrer uma série de punições. Além de uma vasta gama de sanções econômicas impostas por outros países, há medidas punitivas como o isolamento em organismos internacionais e de cooperação multilateral.

Há também uma série de ações possíveis dentro da Organização das Nações Unidas. A Assembleia Geral também pode exigir uma investigação da ONU sobre as ações da Rússia, instar os Estados membros a impor sanções à Rússia ou recomendar que a Rússia seja expulsa ou suspensa de certos órgãos.

Respostas militares à tomadas de territórios são possíveis. As missões da ONU que reverteram a invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte e a invasão do Kuwait pelo Iraque são exemplos. Mas em outros casos, particularmente aqueles que envolvem um ou mais dos cinco membros permanentes com poder de veto do Conselho de Segurança da ONU – como no caso da Rússia – tal ação é impossível.

No caso da Rússia, além das sanções financeiras impostas bilateralmente pelos Estados Unidos e vários outros países, a Rússia enfrenta a condenação generalizada e isolamento em órgãos internacionais.

Enquanto isso, o Conselho de Segurança da ONU votou uma resolução vinculante condenando a invasão e exigindo que a Rússia cesse suas ações militares e se retire da Ucrânia. Mas a Rússia, como membro permanente do Conselho de Segurança, vetou a resolução.

Nestes casos, a resolução 377(V) da Assembleia Geral da ONU de 1950 (a chamada resolução Unindo pela Paz), rege que no caso de um impasse no Conselho de Segurança, a Assembleia Geral da ONU deve “considerar o assunto imediatamente com o objetivo de fazer recomendações aos membros para medidas coletivas”.

Ministro das Relações Internacionais da Ucrânia, Dmitro Kuleba fala a delegações do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/ AFP - 22/09/2022

Em 2014, a Assembleia Geral adotou uma resolução esmagadoramente contrária às ações da Rússia como uma ameaça à integridade territorial, soberania e independência política da Ucrânia, depois que a Rússia anexou a Crimeia.

Além disso, a Ucrânia também apresentou outra reclamação contra a Rússia no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) no domingo, alegando que a Rússia interpretou mal a Convenção do Genocídio para justificar a invasão da Ucrânia.

A CIJ já está ouvindo duas reclamações que a Ucrânia apresentou em 2017 relacionadas às ações da Rússia na Crimeia e no leste da Ucrânia. Putin e outras autoridades russas podem enfrentar uma investigação da CIJ por crimes de guerra cometidos durante a invasão.

Embora a Rússia não seja parte do Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), a Ucrânia aceitou a jurisdição do TPI para crimes que ocorreram em seu território desde 2013 (exceto o crime de agressão, para o qual o TPI não não tem jurisdição para não partes). / NYT, AP, COM RODRIGO TURRER

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