Abstenção sobre Gaza na ONU aumenta crise entre Biden e Netanyahu; entenda


A notável mudança de rumo transformou a crescente discórdia entre Biden e Netanyahu em uma briga pública

Por Karen DeYoung, Yasmeen Abutaleb e Toluse Olorunnipa

Graduadas autoridades do governo Biden acharam que tinham deixado evidente para seus homólogos israelenses durante as incessantes negociações deste fim de semana a possibilidade dos Estados Unidos se absterem da votação — e vez de vetar a proposta — de uma resolução no Conselho de Segurança da ONU pedindo um cessar-fogo imediato em Gaza.

Mas a Casa Branca acabou boquiaberta pelo que aconteceu após a abstenção americana ser registrada: o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu cancelou abruptamente a viagem de uma delegação israelense de alto nível a Washington solicitada especificamente pelo presidente Joe Biden em um telefonema na semana passada para discutir preocupações dos EUA em relação aos planos de Israel para uma grande operação militar na cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza.

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Em uma reação que minimizou o choque do governo americano, o porta-voz do Departamento de Estado Matthew Miller classificou o cancelamento como “surpreendente e lamentável”.

A notável mudança de rumo transformou a crescente discórdia entre Biden e Netanyahu em uma briga pública. Autoridades americanas apressaram-se para insistir que não houve nenhuma mudança de política da parte dos EUA, que os planos israelenses para uma operação em Rafah não eram iminentes em nenhum caso, que as negociações pela libertação dos reféns continuariam e que tinham expectativa de conversas futuras com Netanyahu e seu governo.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em Tel-Aviv, Israel  Foto: Kenny Holston/ NYT
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Apesar das extensas consultas no fim de semana — e depois de Netanyahu não se esforçar de nenhuma maneira para entrar em contato diretamente com Biden — o primeiro-ministro israelense afirmou em um comunicado emitido por seu gabinete após a votação que os EUA “abandonaram sua política na ONU hoje. (…) Lamentavelmente, os EUA não vetaram a nova resolução, que pede um cessar-fogo não condicionado a libertações de reféns” — o que, afirmou o comunicado, é “um claro desvio da posição americana”.

A reunião de alto nível foi cancelada — uma delegação liderada por Ron Dermer, conselheiro estratégico sênior de Netanyahu, não viajará a Washington conforme agendado.

A própria resolução de uma página nasceu de uma tentativa de superar diferenças que tinham feito o Conselho de Segurança — o principal organismo mundial para manutenção da paz e da segurança internacional — parecer fraco e ineficaz em múltiplas tentativas de impedir a catástrofe humanitária em Gaza. Os EUA tinham vetado três resoluções de cessar-fogo anteriores, e a proposta americana da sexta-feira, condicionando um cessar-fogo imediato a uma libertação de reféns, foi vetada por Rússia e China.

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A resolução da segunda-feira foi apresentada pelos 10 membros não permanentes do organismo, representando o restante do mundo para além dos cinco países com poder de veto: Reino Unido, China, França, Rússia e EUA.

O embaixador da Palestina na ONU, Riyad Mansour, participa de sessão da ONU, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Craig Ruttle / AP

Israel tinha expressado objeção sobre grande parte da terminologia, pedindo a remoção da palavra “permanente” atrelada ao termo “cessar-fogo” e insistindo que uma demanda pela libertação dos israelenses mantidos reféns pelo Hamas fosse amarrada a qualquer cessação nas hostilidades. Os EUA compartilharam dessas preocupações: persuadiram os países que apresentaram a proposta a retirar a palavra “permanente” e ao menos colocar o cessar-fogo e uma libertação de reféns no mesmo parágrafo.

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A versão final pediu um “cessar-fogo imediato” que dure pelo menos até o fim do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, que termina em duas semanas, “ocasionando um duradouro e sustentável” fim dos combates.

Na mesma extensa oração, o texto também exigiu a libertação “imediata e incondicional de todos os reféns, assim como garantia de acesso humanitário”. A proposta não mencionou pelo nome nem Israel nem o Hamas.

“Nós não concordamos com tudo” na versão final do documento, disse ao Conselho de Segurança a embaixadora americana nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield. Os EUA ainda queriam uma condenação clara ao Hamas e uma ligação entre a libertação de reféns e um cessar-fogo, em linha com o que Washington continua a buscar nas negociações Israel-Hamas em andamento.

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Mas no fim Washington sentiu que era suficiente.

A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Tomas-Greenfield opta pela abstenção na resolução que pede um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza  Foto: Angela Weiss/AFP

Tensão

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Horas depois da votação, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, buscou minimizar a sensação de tensão bilateral, dizendo a jornalistas que a Casa Branca e os EUA continuarão a “se prontificar a defender Israel” e pressionarão pela libertação de todos os reféns mantidos pelo Hamas.

Ainda assim, Kirby classificou a decisão de Netanyahu de cancelar a viagem da delegação como decepcionante. “Nós estamos meio perplexos com isso”, afirmou ele, reiterando a posição do governo americano de que a abstenção não representou uma mudança na política. “Parece que o gabinete do primeiro-ministro está escolhendo criar uma perceção de claridade por aqui, mas eles não precisam fazer isso.”

Para Biden, que tem uma ligação profunda e visceral com Israel e reluta muito em romper com Netanyahu, essa fissura marcou a culminação de meses de frustrações. Desde que a guerra começou, com o ataque do Hamas, em 7 de outubro, que matou cerca de 1,2 mil israelenses e terminou com pelo menos 250 reféns capturados, Biden e seus conselheiros mais próximos apoiaram Israel em quase todos os desdobramentos.

O apoio continuou mesmo enquanto Netanyahu desafiou publicamente os EUA em praticamente todos os principais temas, incluindo o desejo de Washington de ver o retorno da Autoridade Palestina à Faixa de Gaza, um aumento massivo na quantidade de ajuda humanitária ao enclave e um caminho para um Estado palestino.

Israelenses protestam por um acordo que permita a soltura de reféns israelenses que estão na Faixa de Gaza desde o dia 7 de outubro do ano passado  Foto: Atef Safadi/EFE

Encarando um isolamento internacional cada vez maior em razão das dezenas de milhares de palestinos mortos por ataques israelenses aéreos e terrestres em Gaza e das centenas de milhares de pessoas famintas, o governo dos EUA respondeu afirmando seu apoio ao “direito de Israel de se defender” e continuou a enviar armas para o país.

Frank Lowenstein, ex-autoridade do Departamento de Estado americano que ajudou a liderar as negociações israelo-palestinas em 2014, afirmou que três fatores importantes provavelmente ocasionaram os eventos da segunda-feira: as profundas discordâncias entre Washington e Israel sobre uma invasão em grande escala a Rafah, onde mais de 1 milhão de palestinos de Gaza buscaram refúgio dos ataques israelenses realizados mais ao norte; a situação humanitária catastrófica; e os anúncios feitos por Israel de novos assentamentos coloniais enquanto o secretário de Estado Antony Blinken visitava o país, na sexta-feira.

“Biden fez tudo o que pôde, por meses, para evitar uma grande briga pública”, afirmou Lowenstein. “Isso reflete uma mudança séria na posição da Casa Branca em relação à maneira de lidar com os israelenses no restante desta guerra. Ou os israelenses despertam agora ou nós provavelmente continuaremos nesse caminho.”

Durante o fim de semana, Israel afirmou que não permitirá mais à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), o principal organismo da ONU operando dentro de Gaza, realizar entregas de ajuda humanitária no norte do enclave. Apesar dos EUA insistirem nisso privadamente, Israel tem se recusado a adotar medidas para acelerar a entrada de caminhões carregados com ajuda em Gaza, assim como sua circulação dentro do território, o que motivou Biden a determinar que os militares americanos enviassem ajuda por via aérea e construíssem um píer na costa do enclave para iniciar um fornecimento marítimo de itens de ajuda humanitária.

Ajuda humanitária é lançada para civis palestinos na Faixa de Gaza  Foto: Mahmoud Essa/AP

O governo americano irritou-se especialmente com atividades agressivas de militares israelenses e colonos judeus contra palestinos na Cisjordânia, assim como em relação aos anúncios de novos assentamentos coloniais, descritos por Washington como ilegais. Autoridades da Casa Branca disseram a Israel que as novas construções minam sua segurança a longo prazo por enfurecer e radicalizar ainda mais a população palestina e evitar a possibilidade de uma solução de dois Estados.

Na sexta-feira, quando Blinken visitava Tel-Aviv para se reunir com Netanyahu e graduados conselheiros do primeiro-ministro, Israel anunciou seu maior confisco de terra na Cisjordânia desde 1993. O movimento foi visto como um enorme sinal de desrespeito. O ministro israelense das Finanças, Bezalel Smotrich, um político de extrema direita que os EUA consideram um membro especialmente problemático do governo Netanyahu, e o ministro da Segurança Nacional, Ben Gvir, se gabaram dos assentamentos.

De acordo com Mara Rudman, que atuou como enviada ao Oriente Médio do governo Obama, ainda que a relação subjacente possa resistir à discórdia recente, “a dinâmica pessoal entre Biden e Netanyahu provavelmente está bem tensionada”, de maneiras que evidenciam por que o líder israelense enfrenta chamados crescentes por uma mudança na liderança.

“As relações geopolíticas, da mesma forma que as relações pessoais, atravessam períodos difíceis mesmo entre os cônjuges mais comprometidos”, afirmou ela. “EUA e Israel estão em um momento assim.”

Netanyahu também teve uma relação tensa com o ex-presidente Barack Obama, e a decisão dos EUA de se abster de uma votação no Conselho de Segurança da ONU condenando Israel no fim de 2016 inflamou ainda mais as tensões entre eles. No ano anterior, Netanyahu tinha viajado a Washington para entregar uma declaração conjunta ao Congresso criticando a proposta de Obama para o pacto nuclear com o Irã, ignorando o protocolo tradicional, o que causou indignação das autoridades da Casa Branca.

Esperava-se que a relação com Biden, que remonta a várias décadas, fosse ser diferente. Biden, que com frequência afirmava, “Eu te amo, Bibi, mesmo que não te suporte”, fala de sua história com Israel desde a época que era senador. Mesmo assim, Biden tem enfrentado pressões políticas e internacionais imensas nos meses recentes para romper publicamente com o líder israelense e seu governo de extrema direita.

O presidente americano tem sido recebido por manifestantes em eventos políticos e visto eleitores de Estados cruciais retirar seu apoio na disputa presidencial deste ano. Mais de 100 mil eleitores da primária do Estado de Michigan escreveram em suas cédulas a expressão “Não Envolvido”, e muitos eleitores árabe-americanos têm afirmado que decidiram deixar de votar em Biden em novembro.

Ainda que a votação da segunda-feira no Conselho de Segurança da ONU tenha agradado alguns ativistas, outros pediram que Biden vá além e restrinja o envio de armas americanas para Israel.

“Estamos felizes que os EUA não estejam mais bloqueando ativamente chamados por um cessar-fogo em Gaza, mas passou muito da hora de Washington usar seu peso — incluindo por meio da suspensão de transferências de armas — para pressionar por um cessar-fogo imediato e duradouro, trocas de reféns e quantidades massivas de ajuda a Gaza”, afirmou a presidente do grupo judaico americano IfNotNow, Eva Borgwardt, que se opõe à campanha de Israel em Gaza.

O esforço extrapolou os ativistas e incluiu legisladores proeminentes do Partido Democrata, de Biden. Alguns, entre eles o líder da maioria no Senado, Charles Schumer (Nova York), usaram sua plataforma para sugerir publicamente que Netanyahu seja substituído. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Graduadas autoridades do governo Biden acharam que tinham deixado evidente para seus homólogos israelenses durante as incessantes negociações deste fim de semana a possibilidade dos Estados Unidos se absterem da votação — e vez de vetar a proposta — de uma resolução no Conselho de Segurança da ONU pedindo um cessar-fogo imediato em Gaza.

Mas a Casa Branca acabou boquiaberta pelo que aconteceu após a abstenção americana ser registrada: o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu cancelou abruptamente a viagem de uma delegação israelense de alto nível a Washington solicitada especificamente pelo presidente Joe Biden em um telefonema na semana passada para discutir preocupações dos EUA em relação aos planos de Israel para uma grande operação militar na cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza.

Em uma reação que minimizou o choque do governo americano, o porta-voz do Departamento de Estado Matthew Miller classificou o cancelamento como “surpreendente e lamentável”.

A notável mudança de rumo transformou a crescente discórdia entre Biden e Netanyahu em uma briga pública. Autoridades americanas apressaram-se para insistir que não houve nenhuma mudança de política da parte dos EUA, que os planos israelenses para uma operação em Rafah não eram iminentes em nenhum caso, que as negociações pela libertação dos reféns continuariam e que tinham expectativa de conversas futuras com Netanyahu e seu governo.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em Tel-Aviv, Israel  Foto: Kenny Holston/ NYT

Apesar das extensas consultas no fim de semana — e depois de Netanyahu não se esforçar de nenhuma maneira para entrar em contato diretamente com Biden — o primeiro-ministro israelense afirmou em um comunicado emitido por seu gabinete após a votação que os EUA “abandonaram sua política na ONU hoje. (…) Lamentavelmente, os EUA não vetaram a nova resolução, que pede um cessar-fogo não condicionado a libertações de reféns” — o que, afirmou o comunicado, é “um claro desvio da posição americana”.

A reunião de alto nível foi cancelada — uma delegação liderada por Ron Dermer, conselheiro estratégico sênior de Netanyahu, não viajará a Washington conforme agendado.

A própria resolução de uma página nasceu de uma tentativa de superar diferenças que tinham feito o Conselho de Segurança — o principal organismo mundial para manutenção da paz e da segurança internacional — parecer fraco e ineficaz em múltiplas tentativas de impedir a catástrofe humanitária em Gaza. Os EUA tinham vetado três resoluções de cessar-fogo anteriores, e a proposta americana da sexta-feira, condicionando um cessar-fogo imediato a uma libertação de reféns, foi vetada por Rússia e China.

A resolução da segunda-feira foi apresentada pelos 10 membros não permanentes do organismo, representando o restante do mundo para além dos cinco países com poder de veto: Reino Unido, China, França, Rússia e EUA.

O embaixador da Palestina na ONU, Riyad Mansour, participa de sessão da ONU, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Craig Ruttle / AP

Israel tinha expressado objeção sobre grande parte da terminologia, pedindo a remoção da palavra “permanente” atrelada ao termo “cessar-fogo” e insistindo que uma demanda pela libertação dos israelenses mantidos reféns pelo Hamas fosse amarrada a qualquer cessação nas hostilidades. Os EUA compartilharam dessas preocupações: persuadiram os países que apresentaram a proposta a retirar a palavra “permanente” e ao menos colocar o cessar-fogo e uma libertação de reféns no mesmo parágrafo.

A versão final pediu um “cessar-fogo imediato” que dure pelo menos até o fim do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, que termina em duas semanas, “ocasionando um duradouro e sustentável” fim dos combates.

Na mesma extensa oração, o texto também exigiu a libertação “imediata e incondicional de todos os reféns, assim como garantia de acesso humanitário”. A proposta não mencionou pelo nome nem Israel nem o Hamas.

“Nós não concordamos com tudo” na versão final do documento, disse ao Conselho de Segurança a embaixadora americana nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield. Os EUA ainda queriam uma condenação clara ao Hamas e uma ligação entre a libertação de reféns e um cessar-fogo, em linha com o que Washington continua a buscar nas negociações Israel-Hamas em andamento.

Mas no fim Washington sentiu que era suficiente.

A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Tomas-Greenfield opta pela abstenção na resolução que pede um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza  Foto: Angela Weiss/AFP

Tensão

Horas depois da votação, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, buscou minimizar a sensação de tensão bilateral, dizendo a jornalistas que a Casa Branca e os EUA continuarão a “se prontificar a defender Israel” e pressionarão pela libertação de todos os reféns mantidos pelo Hamas.

Ainda assim, Kirby classificou a decisão de Netanyahu de cancelar a viagem da delegação como decepcionante. “Nós estamos meio perplexos com isso”, afirmou ele, reiterando a posição do governo americano de que a abstenção não representou uma mudança na política. “Parece que o gabinete do primeiro-ministro está escolhendo criar uma perceção de claridade por aqui, mas eles não precisam fazer isso.”

Para Biden, que tem uma ligação profunda e visceral com Israel e reluta muito em romper com Netanyahu, essa fissura marcou a culminação de meses de frustrações. Desde que a guerra começou, com o ataque do Hamas, em 7 de outubro, que matou cerca de 1,2 mil israelenses e terminou com pelo menos 250 reféns capturados, Biden e seus conselheiros mais próximos apoiaram Israel em quase todos os desdobramentos.

O apoio continuou mesmo enquanto Netanyahu desafiou publicamente os EUA em praticamente todos os principais temas, incluindo o desejo de Washington de ver o retorno da Autoridade Palestina à Faixa de Gaza, um aumento massivo na quantidade de ajuda humanitária ao enclave e um caminho para um Estado palestino.

Israelenses protestam por um acordo que permita a soltura de reféns israelenses que estão na Faixa de Gaza desde o dia 7 de outubro do ano passado  Foto: Atef Safadi/EFE

Encarando um isolamento internacional cada vez maior em razão das dezenas de milhares de palestinos mortos por ataques israelenses aéreos e terrestres em Gaza e das centenas de milhares de pessoas famintas, o governo dos EUA respondeu afirmando seu apoio ao “direito de Israel de se defender” e continuou a enviar armas para o país.

Frank Lowenstein, ex-autoridade do Departamento de Estado americano que ajudou a liderar as negociações israelo-palestinas em 2014, afirmou que três fatores importantes provavelmente ocasionaram os eventos da segunda-feira: as profundas discordâncias entre Washington e Israel sobre uma invasão em grande escala a Rafah, onde mais de 1 milhão de palestinos de Gaza buscaram refúgio dos ataques israelenses realizados mais ao norte; a situação humanitária catastrófica; e os anúncios feitos por Israel de novos assentamentos coloniais enquanto o secretário de Estado Antony Blinken visitava o país, na sexta-feira.

“Biden fez tudo o que pôde, por meses, para evitar uma grande briga pública”, afirmou Lowenstein. “Isso reflete uma mudança séria na posição da Casa Branca em relação à maneira de lidar com os israelenses no restante desta guerra. Ou os israelenses despertam agora ou nós provavelmente continuaremos nesse caminho.”

Durante o fim de semana, Israel afirmou que não permitirá mais à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), o principal organismo da ONU operando dentro de Gaza, realizar entregas de ajuda humanitária no norte do enclave. Apesar dos EUA insistirem nisso privadamente, Israel tem se recusado a adotar medidas para acelerar a entrada de caminhões carregados com ajuda em Gaza, assim como sua circulação dentro do território, o que motivou Biden a determinar que os militares americanos enviassem ajuda por via aérea e construíssem um píer na costa do enclave para iniciar um fornecimento marítimo de itens de ajuda humanitária.

Ajuda humanitária é lançada para civis palestinos na Faixa de Gaza  Foto: Mahmoud Essa/AP

O governo americano irritou-se especialmente com atividades agressivas de militares israelenses e colonos judeus contra palestinos na Cisjordânia, assim como em relação aos anúncios de novos assentamentos coloniais, descritos por Washington como ilegais. Autoridades da Casa Branca disseram a Israel que as novas construções minam sua segurança a longo prazo por enfurecer e radicalizar ainda mais a população palestina e evitar a possibilidade de uma solução de dois Estados.

Na sexta-feira, quando Blinken visitava Tel-Aviv para se reunir com Netanyahu e graduados conselheiros do primeiro-ministro, Israel anunciou seu maior confisco de terra na Cisjordânia desde 1993. O movimento foi visto como um enorme sinal de desrespeito. O ministro israelense das Finanças, Bezalel Smotrich, um político de extrema direita que os EUA consideram um membro especialmente problemático do governo Netanyahu, e o ministro da Segurança Nacional, Ben Gvir, se gabaram dos assentamentos.

De acordo com Mara Rudman, que atuou como enviada ao Oriente Médio do governo Obama, ainda que a relação subjacente possa resistir à discórdia recente, “a dinâmica pessoal entre Biden e Netanyahu provavelmente está bem tensionada”, de maneiras que evidenciam por que o líder israelense enfrenta chamados crescentes por uma mudança na liderança.

“As relações geopolíticas, da mesma forma que as relações pessoais, atravessam períodos difíceis mesmo entre os cônjuges mais comprometidos”, afirmou ela. “EUA e Israel estão em um momento assim.”

Netanyahu também teve uma relação tensa com o ex-presidente Barack Obama, e a decisão dos EUA de se abster de uma votação no Conselho de Segurança da ONU condenando Israel no fim de 2016 inflamou ainda mais as tensões entre eles. No ano anterior, Netanyahu tinha viajado a Washington para entregar uma declaração conjunta ao Congresso criticando a proposta de Obama para o pacto nuclear com o Irã, ignorando o protocolo tradicional, o que causou indignação das autoridades da Casa Branca.

Esperava-se que a relação com Biden, que remonta a várias décadas, fosse ser diferente. Biden, que com frequência afirmava, “Eu te amo, Bibi, mesmo que não te suporte”, fala de sua história com Israel desde a época que era senador. Mesmo assim, Biden tem enfrentado pressões políticas e internacionais imensas nos meses recentes para romper publicamente com o líder israelense e seu governo de extrema direita.

O presidente americano tem sido recebido por manifestantes em eventos políticos e visto eleitores de Estados cruciais retirar seu apoio na disputa presidencial deste ano. Mais de 100 mil eleitores da primária do Estado de Michigan escreveram em suas cédulas a expressão “Não Envolvido”, e muitos eleitores árabe-americanos têm afirmado que decidiram deixar de votar em Biden em novembro.

Ainda que a votação da segunda-feira no Conselho de Segurança da ONU tenha agradado alguns ativistas, outros pediram que Biden vá além e restrinja o envio de armas americanas para Israel.

“Estamos felizes que os EUA não estejam mais bloqueando ativamente chamados por um cessar-fogo em Gaza, mas passou muito da hora de Washington usar seu peso — incluindo por meio da suspensão de transferências de armas — para pressionar por um cessar-fogo imediato e duradouro, trocas de reféns e quantidades massivas de ajuda a Gaza”, afirmou a presidente do grupo judaico americano IfNotNow, Eva Borgwardt, que se opõe à campanha de Israel em Gaza.

O esforço extrapolou os ativistas e incluiu legisladores proeminentes do Partido Democrata, de Biden. Alguns, entre eles o líder da maioria no Senado, Charles Schumer (Nova York), usaram sua plataforma para sugerir publicamente que Netanyahu seja substituído. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Graduadas autoridades do governo Biden acharam que tinham deixado evidente para seus homólogos israelenses durante as incessantes negociações deste fim de semana a possibilidade dos Estados Unidos se absterem da votação — e vez de vetar a proposta — de uma resolução no Conselho de Segurança da ONU pedindo um cessar-fogo imediato em Gaza.

Mas a Casa Branca acabou boquiaberta pelo que aconteceu após a abstenção americana ser registrada: o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu cancelou abruptamente a viagem de uma delegação israelense de alto nível a Washington solicitada especificamente pelo presidente Joe Biden em um telefonema na semana passada para discutir preocupações dos EUA em relação aos planos de Israel para uma grande operação militar na cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza.

Em uma reação que minimizou o choque do governo americano, o porta-voz do Departamento de Estado Matthew Miller classificou o cancelamento como “surpreendente e lamentável”.

A notável mudança de rumo transformou a crescente discórdia entre Biden e Netanyahu em uma briga pública. Autoridades americanas apressaram-se para insistir que não houve nenhuma mudança de política da parte dos EUA, que os planos israelenses para uma operação em Rafah não eram iminentes em nenhum caso, que as negociações pela libertação dos reféns continuariam e que tinham expectativa de conversas futuras com Netanyahu e seu governo.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em Tel-Aviv, Israel  Foto: Kenny Holston/ NYT

Apesar das extensas consultas no fim de semana — e depois de Netanyahu não se esforçar de nenhuma maneira para entrar em contato diretamente com Biden — o primeiro-ministro israelense afirmou em um comunicado emitido por seu gabinete após a votação que os EUA “abandonaram sua política na ONU hoje. (…) Lamentavelmente, os EUA não vetaram a nova resolução, que pede um cessar-fogo não condicionado a libertações de reféns” — o que, afirmou o comunicado, é “um claro desvio da posição americana”.

A reunião de alto nível foi cancelada — uma delegação liderada por Ron Dermer, conselheiro estratégico sênior de Netanyahu, não viajará a Washington conforme agendado.

A própria resolução de uma página nasceu de uma tentativa de superar diferenças que tinham feito o Conselho de Segurança — o principal organismo mundial para manutenção da paz e da segurança internacional — parecer fraco e ineficaz em múltiplas tentativas de impedir a catástrofe humanitária em Gaza. Os EUA tinham vetado três resoluções de cessar-fogo anteriores, e a proposta americana da sexta-feira, condicionando um cessar-fogo imediato a uma libertação de reféns, foi vetada por Rússia e China.

A resolução da segunda-feira foi apresentada pelos 10 membros não permanentes do organismo, representando o restante do mundo para além dos cinco países com poder de veto: Reino Unido, China, França, Rússia e EUA.

O embaixador da Palestina na ONU, Riyad Mansour, participa de sessão da ONU, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Craig Ruttle / AP

Israel tinha expressado objeção sobre grande parte da terminologia, pedindo a remoção da palavra “permanente” atrelada ao termo “cessar-fogo” e insistindo que uma demanda pela libertação dos israelenses mantidos reféns pelo Hamas fosse amarrada a qualquer cessação nas hostilidades. Os EUA compartilharam dessas preocupações: persuadiram os países que apresentaram a proposta a retirar a palavra “permanente” e ao menos colocar o cessar-fogo e uma libertação de reféns no mesmo parágrafo.

A versão final pediu um “cessar-fogo imediato” que dure pelo menos até o fim do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, que termina em duas semanas, “ocasionando um duradouro e sustentável” fim dos combates.

Na mesma extensa oração, o texto também exigiu a libertação “imediata e incondicional de todos os reféns, assim como garantia de acesso humanitário”. A proposta não mencionou pelo nome nem Israel nem o Hamas.

“Nós não concordamos com tudo” na versão final do documento, disse ao Conselho de Segurança a embaixadora americana nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield. Os EUA ainda queriam uma condenação clara ao Hamas e uma ligação entre a libertação de reféns e um cessar-fogo, em linha com o que Washington continua a buscar nas negociações Israel-Hamas em andamento.

Mas no fim Washington sentiu que era suficiente.

A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Tomas-Greenfield opta pela abstenção na resolução que pede um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza  Foto: Angela Weiss/AFP

Tensão

Horas depois da votação, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, buscou minimizar a sensação de tensão bilateral, dizendo a jornalistas que a Casa Branca e os EUA continuarão a “se prontificar a defender Israel” e pressionarão pela libertação de todos os reféns mantidos pelo Hamas.

Ainda assim, Kirby classificou a decisão de Netanyahu de cancelar a viagem da delegação como decepcionante. “Nós estamos meio perplexos com isso”, afirmou ele, reiterando a posição do governo americano de que a abstenção não representou uma mudança na política. “Parece que o gabinete do primeiro-ministro está escolhendo criar uma perceção de claridade por aqui, mas eles não precisam fazer isso.”

Para Biden, que tem uma ligação profunda e visceral com Israel e reluta muito em romper com Netanyahu, essa fissura marcou a culminação de meses de frustrações. Desde que a guerra começou, com o ataque do Hamas, em 7 de outubro, que matou cerca de 1,2 mil israelenses e terminou com pelo menos 250 reféns capturados, Biden e seus conselheiros mais próximos apoiaram Israel em quase todos os desdobramentos.

O apoio continuou mesmo enquanto Netanyahu desafiou publicamente os EUA em praticamente todos os principais temas, incluindo o desejo de Washington de ver o retorno da Autoridade Palestina à Faixa de Gaza, um aumento massivo na quantidade de ajuda humanitária ao enclave e um caminho para um Estado palestino.

Israelenses protestam por um acordo que permita a soltura de reféns israelenses que estão na Faixa de Gaza desde o dia 7 de outubro do ano passado  Foto: Atef Safadi/EFE

Encarando um isolamento internacional cada vez maior em razão das dezenas de milhares de palestinos mortos por ataques israelenses aéreos e terrestres em Gaza e das centenas de milhares de pessoas famintas, o governo dos EUA respondeu afirmando seu apoio ao “direito de Israel de se defender” e continuou a enviar armas para o país.

Frank Lowenstein, ex-autoridade do Departamento de Estado americano que ajudou a liderar as negociações israelo-palestinas em 2014, afirmou que três fatores importantes provavelmente ocasionaram os eventos da segunda-feira: as profundas discordâncias entre Washington e Israel sobre uma invasão em grande escala a Rafah, onde mais de 1 milhão de palestinos de Gaza buscaram refúgio dos ataques israelenses realizados mais ao norte; a situação humanitária catastrófica; e os anúncios feitos por Israel de novos assentamentos coloniais enquanto o secretário de Estado Antony Blinken visitava o país, na sexta-feira.

“Biden fez tudo o que pôde, por meses, para evitar uma grande briga pública”, afirmou Lowenstein. “Isso reflete uma mudança séria na posição da Casa Branca em relação à maneira de lidar com os israelenses no restante desta guerra. Ou os israelenses despertam agora ou nós provavelmente continuaremos nesse caminho.”

Durante o fim de semana, Israel afirmou que não permitirá mais à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), o principal organismo da ONU operando dentro de Gaza, realizar entregas de ajuda humanitária no norte do enclave. Apesar dos EUA insistirem nisso privadamente, Israel tem se recusado a adotar medidas para acelerar a entrada de caminhões carregados com ajuda em Gaza, assim como sua circulação dentro do território, o que motivou Biden a determinar que os militares americanos enviassem ajuda por via aérea e construíssem um píer na costa do enclave para iniciar um fornecimento marítimo de itens de ajuda humanitária.

Ajuda humanitária é lançada para civis palestinos na Faixa de Gaza  Foto: Mahmoud Essa/AP

O governo americano irritou-se especialmente com atividades agressivas de militares israelenses e colonos judeus contra palestinos na Cisjordânia, assim como em relação aos anúncios de novos assentamentos coloniais, descritos por Washington como ilegais. Autoridades da Casa Branca disseram a Israel que as novas construções minam sua segurança a longo prazo por enfurecer e radicalizar ainda mais a população palestina e evitar a possibilidade de uma solução de dois Estados.

Na sexta-feira, quando Blinken visitava Tel-Aviv para se reunir com Netanyahu e graduados conselheiros do primeiro-ministro, Israel anunciou seu maior confisco de terra na Cisjordânia desde 1993. O movimento foi visto como um enorme sinal de desrespeito. O ministro israelense das Finanças, Bezalel Smotrich, um político de extrema direita que os EUA consideram um membro especialmente problemático do governo Netanyahu, e o ministro da Segurança Nacional, Ben Gvir, se gabaram dos assentamentos.

De acordo com Mara Rudman, que atuou como enviada ao Oriente Médio do governo Obama, ainda que a relação subjacente possa resistir à discórdia recente, “a dinâmica pessoal entre Biden e Netanyahu provavelmente está bem tensionada”, de maneiras que evidenciam por que o líder israelense enfrenta chamados crescentes por uma mudança na liderança.

“As relações geopolíticas, da mesma forma que as relações pessoais, atravessam períodos difíceis mesmo entre os cônjuges mais comprometidos”, afirmou ela. “EUA e Israel estão em um momento assim.”

Netanyahu também teve uma relação tensa com o ex-presidente Barack Obama, e a decisão dos EUA de se abster de uma votação no Conselho de Segurança da ONU condenando Israel no fim de 2016 inflamou ainda mais as tensões entre eles. No ano anterior, Netanyahu tinha viajado a Washington para entregar uma declaração conjunta ao Congresso criticando a proposta de Obama para o pacto nuclear com o Irã, ignorando o protocolo tradicional, o que causou indignação das autoridades da Casa Branca.

Esperava-se que a relação com Biden, que remonta a várias décadas, fosse ser diferente. Biden, que com frequência afirmava, “Eu te amo, Bibi, mesmo que não te suporte”, fala de sua história com Israel desde a época que era senador. Mesmo assim, Biden tem enfrentado pressões políticas e internacionais imensas nos meses recentes para romper publicamente com o líder israelense e seu governo de extrema direita.

O presidente americano tem sido recebido por manifestantes em eventos políticos e visto eleitores de Estados cruciais retirar seu apoio na disputa presidencial deste ano. Mais de 100 mil eleitores da primária do Estado de Michigan escreveram em suas cédulas a expressão “Não Envolvido”, e muitos eleitores árabe-americanos têm afirmado que decidiram deixar de votar em Biden em novembro.

Ainda que a votação da segunda-feira no Conselho de Segurança da ONU tenha agradado alguns ativistas, outros pediram que Biden vá além e restrinja o envio de armas americanas para Israel.

“Estamos felizes que os EUA não estejam mais bloqueando ativamente chamados por um cessar-fogo em Gaza, mas passou muito da hora de Washington usar seu peso — incluindo por meio da suspensão de transferências de armas — para pressionar por um cessar-fogo imediato e duradouro, trocas de reféns e quantidades massivas de ajuda a Gaza”, afirmou a presidente do grupo judaico americano IfNotNow, Eva Borgwardt, que se opõe à campanha de Israel em Gaza.

O esforço extrapolou os ativistas e incluiu legisladores proeminentes do Partido Democrata, de Biden. Alguns, entre eles o líder da maioria no Senado, Charles Schumer (Nova York), usaram sua plataforma para sugerir publicamente que Netanyahu seja substituído. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Graduadas autoridades do governo Biden acharam que tinham deixado evidente para seus homólogos israelenses durante as incessantes negociações deste fim de semana a possibilidade dos Estados Unidos se absterem da votação — e vez de vetar a proposta — de uma resolução no Conselho de Segurança da ONU pedindo um cessar-fogo imediato em Gaza.

Mas a Casa Branca acabou boquiaberta pelo que aconteceu após a abstenção americana ser registrada: o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu cancelou abruptamente a viagem de uma delegação israelense de alto nível a Washington solicitada especificamente pelo presidente Joe Biden em um telefonema na semana passada para discutir preocupações dos EUA em relação aos planos de Israel para uma grande operação militar na cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza.

Em uma reação que minimizou o choque do governo americano, o porta-voz do Departamento de Estado Matthew Miller classificou o cancelamento como “surpreendente e lamentável”.

A notável mudança de rumo transformou a crescente discórdia entre Biden e Netanyahu em uma briga pública. Autoridades americanas apressaram-se para insistir que não houve nenhuma mudança de política da parte dos EUA, que os planos israelenses para uma operação em Rafah não eram iminentes em nenhum caso, que as negociações pela libertação dos reféns continuariam e que tinham expectativa de conversas futuras com Netanyahu e seu governo.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em Tel-Aviv, Israel  Foto: Kenny Holston/ NYT

Apesar das extensas consultas no fim de semana — e depois de Netanyahu não se esforçar de nenhuma maneira para entrar em contato diretamente com Biden — o primeiro-ministro israelense afirmou em um comunicado emitido por seu gabinete após a votação que os EUA “abandonaram sua política na ONU hoje. (…) Lamentavelmente, os EUA não vetaram a nova resolução, que pede um cessar-fogo não condicionado a libertações de reféns” — o que, afirmou o comunicado, é “um claro desvio da posição americana”.

A reunião de alto nível foi cancelada — uma delegação liderada por Ron Dermer, conselheiro estratégico sênior de Netanyahu, não viajará a Washington conforme agendado.

A própria resolução de uma página nasceu de uma tentativa de superar diferenças que tinham feito o Conselho de Segurança — o principal organismo mundial para manutenção da paz e da segurança internacional — parecer fraco e ineficaz em múltiplas tentativas de impedir a catástrofe humanitária em Gaza. Os EUA tinham vetado três resoluções de cessar-fogo anteriores, e a proposta americana da sexta-feira, condicionando um cessar-fogo imediato a uma libertação de reféns, foi vetada por Rússia e China.

A resolução da segunda-feira foi apresentada pelos 10 membros não permanentes do organismo, representando o restante do mundo para além dos cinco países com poder de veto: Reino Unido, China, França, Rússia e EUA.

O embaixador da Palestina na ONU, Riyad Mansour, participa de sessão da ONU, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Craig Ruttle / AP

Israel tinha expressado objeção sobre grande parte da terminologia, pedindo a remoção da palavra “permanente” atrelada ao termo “cessar-fogo” e insistindo que uma demanda pela libertação dos israelenses mantidos reféns pelo Hamas fosse amarrada a qualquer cessação nas hostilidades. Os EUA compartilharam dessas preocupações: persuadiram os países que apresentaram a proposta a retirar a palavra “permanente” e ao menos colocar o cessar-fogo e uma libertação de reféns no mesmo parágrafo.

A versão final pediu um “cessar-fogo imediato” que dure pelo menos até o fim do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, que termina em duas semanas, “ocasionando um duradouro e sustentável” fim dos combates.

Na mesma extensa oração, o texto também exigiu a libertação “imediata e incondicional de todos os reféns, assim como garantia de acesso humanitário”. A proposta não mencionou pelo nome nem Israel nem o Hamas.

“Nós não concordamos com tudo” na versão final do documento, disse ao Conselho de Segurança a embaixadora americana nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield. Os EUA ainda queriam uma condenação clara ao Hamas e uma ligação entre a libertação de reféns e um cessar-fogo, em linha com o que Washington continua a buscar nas negociações Israel-Hamas em andamento.

Mas no fim Washington sentiu que era suficiente.

A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Tomas-Greenfield opta pela abstenção na resolução que pede um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza  Foto: Angela Weiss/AFP

Tensão

Horas depois da votação, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, buscou minimizar a sensação de tensão bilateral, dizendo a jornalistas que a Casa Branca e os EUA continuarão a “se prontificar a defender Israel” e pressionarão pela libertação de todos os reféns mantidos pelo Hamas.

Ainda assim, Kirby classificou a decisão de Netanyahu de cancelar a viagem da delegação como decepcionante. “Nós estamos meio perplexos com isso”, afirmou ele, reiterando a posição do governo americano de que a abstenção não representou uma mudança na política. “Parece que o gabinete do primeiro-ministro está escolhendo criar uma perceção de claridade por aqui, mas eles não precisam fazer isso.”

Para Biden, que tem uma ligação profunda e visceral com Israel e reluta muito em romper com Netanyahu, essa fissura marcou a culminação de meses de frustrações. Desde que a guerra começou, com o ataque do Hamas, em 7 de outubro, que matou cerca de 1,2 mil israelenses e terminou com pelo menos 250 reféns capturados, Biden e seus conselheiros mais próximos apoiaram Israel em quase todos os desdobramentos.

O apoio continuou mesmo enquanto Netanyahu desafiou publicamente os EUA em praticamente todos os principais temas, incluindo o desejo de Washington de ver o retorno da Autoridade Palestina à Faixa de Gaza, um aumento massivo na quantidade de ajuda humanitária ao enclave e um caminho para um Estado palestino.

Israelenses protestam por um acordo que permita a soltura de reféns israelenses que estão na Faixa de Gaza desde o dia 7 de outubro do ano passado  Foto: Atef Safadi/EFE

Encarando um isolamento internacional cada vez maior em razão das dezenas de milhares de palestinos mortos por ataques israelenses aéreos e terrestres em Gaza e das centenas de milhares de pessoas famintas, o governo dos EUA respondeu afirmando seu apoio ao “direito de Israel de se defender” e continuou a enviar armas para o país.

Frank Lowenstein, ex-autoridade do Departamento de Estado americano que ajudou a liderar as negociações israelo-palestinas em 2014, afirmou que três fatores importantes provavelmente ocasionaram os eventos da segunda-feira: as profundas discordâncias entre Washington e Israel sobre uma invasão em grande escala a Rafah, onde mais de 1 milhão de palestinos de Gaza buscaram refúgio dos ataques israelenses realizados mais ao norte; a situação humanitária catastrófica; e os anúncios feitos por Israel de novos assentamentos coloniais enquanto o secretário de Estado Antony Blinken visitava o país, na sexta-feira.

“Biden fez tudo o que pôde, por meses, para evitar uma grande briga pública”, afirmou Lowenstein. “Isso reflete uma mudança séria na posição da Casa Branca em relação à maneira de lidar com os israelenses no restante desta guerra. Ou os israelenses despertam agora ou nós provavelmente continuaremos nesse caminho.”

Durante o fim de semana, Israel afirmou que não permitirá mais à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), o principal organismo da ONU operando dentro de Gaza, realizar entregas de ajuda humanitária no norte do enclave. Apesar dos EUA insistirem nisso privadamente, Israel tem se recusado a adotar medidas para acelerar a entrada de caminhões carregados com ajuda em Gaza, assim como sua circulação dentro do território, o que motivou Biden a determinar que os militares americanos enviassem ajuda por via aérea e construíssem um píer na costa do enclave para iniciar um fornecimento marítimo de itens de ajuda humanitária.

Ajuda humanitária é lançada para civis palestinos na Faixa de Gaza  Foto: Mahmoud Essa/AP

O governo americano irritou-se especialmente com atividades agressivas de militares israelenses e colonos judeus contra palestinos na Cisjordânia, assim como em relação aos anúncios de novos assentamentos coloniais, descritos por Washington como ilegais. Autoridades da Casa Branca disseram a Israel que as novas construções minam sua segurança a longo prazo por enfurecer e radicalizar ainda mais a população palestina e evitar a possibilidade de uma solução de dois Estados.

Na sexta-feira, quando Blinken visitava Tel-Aviv para se reunir com Netanyahu e graduados conselheiros do primeiro-ministro, Israel anunciou seu maior confisco de terra na Cisjordânia desde 1993. O movimento foi visto como um enorme sinal de desrespeito. O ministro israelense das Finanças, Bezalel Smotrich, um político de extrema direita que os EUA consideram um membro especialmente problemático do governo Netanyahu, e o ministro da Segurança Nacional, Ben Gvir, se gabaram dos assentamentos.

De acordo com Mara Rudman, que atuou como enviada ao Oriente Médio do governo Obama, ainda que a relação subjacente possa resistir à discórdia recente, “a dinâmica pessoal entre Biden e Netanyahu provavelmente está bem tensionada”, de maneiras que evidenciam por que o líder israelense enfrenta chamados crescentes por uma mudança na liderança.

“As relações geopolíticas, da mesma forma que as relações pessoais, atravessam períodos difíceis mesmo entre os cônjuges mais comprometidos”, afirmou ela. “EUA e Israel estão em um momento assim.”

Netanyahu também teve uma relação tensa com o ex-presidente Barack Obama, e a decisão dos EUA de se abster de uma votação no Conselho de Segurança da ONU condenando Israel no fim de 2016 inflamou ainda mais as tensões entre eles. No ano anterior, Netanyahu tinha viajado a Washington para entregar uma declaração conjunta ao Congresso criticando a proposta de Obama para o pacto nuclear com o Irã, ignorando o protocolo tradicional, o que causou indignação das autoridades da Casa Branca.

Esperava-se que a relação com Biden, que remonta a várias décadas, fosse ser diferente. Biden, que com frequência afirmava, “Eu te amo, Bibi, mesmo que não te suporte”, fala de sua história com Israel desde a época que era senador. Mesmo assim, Biden tem enfrentado pressões políticas e internacionais imensas nos meses recentes para romper publicamente com o líder israelense e seu governo de extrema direita.

O presidente americano tem sido recebido por manifestantes em eventos políticos e visto eleitores de Estados cruciais retirar seu apoio na disputa presidencial deste ano. Mais de 100 mil eleitores da primária do Estado de Michigan escreveram em suas cédulas a expressão “Não Envolvido”, e muitos eleitores árabe-americanos têm afirmado que decidiram deixar de votar em Biden em novembro.

Ainda que a votação da segunda-feira no Conselho de Segurança da ONU tenha agradado alguns ativistas, outros pediram que Biden vá além e restrinja o envio de armas americanas para Israel.

“Estamos felizes que os EUA não estejam mais bloqueando ativamente chamados por um cessar-fogo em Gaza, mas passou muito da hora de Washington usar seu peso — incluindo por meio da suspensão de transferências de armas — para pressionar por um cessar-fogo imediato e duradouro, trocas de reféns e quantidades massivas de ajuda a Gaza”, afirmou a presidente do grupo judaico americano IfNotNow, Eva Borgwardt, que se opõe à campanha de Israel em Gaza.

O esforço extrapolou os ativistas e incluiu legisladores proeminentes do Partido Democrata, de Biden. Alguns, entre eles o líder da maioria no Senado, Charles Schumer (Nova York), usaram sua plataforma para sugerir publicamente que Netanyahu seja substituído. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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