“Eu já não voto mais”, desabafou o motorista José durante uma viagem de três horas de Buenos Aires a Rosário. Desacreditado diante da grande crise econômica que a Argentina amarga, ele diz que não acredita que nem o governo, nem a oposição, muito menos a terceira via libertária, vá salvar o país de seu futuro sombrio.
A desilusão do motorista aparece em outros eleitores e preocupa a autoridade eleitoral do país, que fez campanha nos últimos meses para aumentar a presença dos eleitores nos pleitos deste ano.
Assim como no Brasil, o voto na Argentina é obrigatório, inclusive nas primárias, chamadas PASO (Primarias, Abiertas, Simultáneas y Obligatorias), a serem realizadas em 13 de agosto. Para o pleito geral, em outubro, 71% dos eleitores dão certeza que vão votar nas eleições deste ano, segundo informe de julho da consultoria Zuban Córdoba, em um país cujo histórico de participação costuma ficar acima dos 80% desde o retorno da democracia.
O que ligou o alerta nas autoridades e nas campanhas, porém, não foram as pesquisas eleitorais, mas o resultado concreto das eleições nas províncias argentinas. Além do pleito nacional, o país realizou ao longo de 2023 eleições para prefeitos, vereadores, deputados locais e governadores. Até o momento, 17 departamentos realizaram votações. Em todos, as taxas de abstenção superaram a de anos anteriores.
Segundo levantamento do jornal Clarín, mais de 5 milhões de eleitores não compareceram às urnas nos pleitos realizados até o domingo 23 de julho, uma taxa de 31,88% dos eleitores habilitados nessas regiões (mais de 16,5 milhões). O número é um recorde. O levantamento, porém, desconsidera o pleito de Chubut que foi em 30 de agosto, cuja participação foi de 69%.
Os porcentuais variam de uma província para outra, com casos como de Tucumán, onde a ausência foi de 15% contra Chaco, que até então detém o recorde com mais de 40%. Chamam atenção também casos de departamentos com grande número de eleitores, como Corrientes e Santa Fé, onde as taxas ficaram acima de 33%.
O caso que surpreendeu mais foi o de Córdoba, que concentra o terceiro maior eleitorado do país e onde mais de 900 mil pessoas não foram votar, cerca de 31% do eleitorado. A província, porém, passou por duas eleições em um mesmo mês, para prefeitos (cuja abstenção foi de 40%) e governador, o que poderia causar um “cansaço” eleitoral.
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“O caso de Córdoba é muito interessante e costuma saltar a vista porque esse é um dos maiores eleitorados do país, então se algo passa ali, pode haver reminiscência nacional, porque estamos falando de uma fatia grande de eleitores”, afirma Facundo Cruz, cientista político e analista de dados do Centro de Investigação para a Qualidade Democrática (CICad, na sigla em espanhol), um think tank para promoção da participação eleitoral.
Cruz, junto com outros colegas do CICad, comparou as taxas de participação nas eleições já celebradas deste ano com os mesmos números de 2019. Com exceção de Tucumán, todos os departamentos apresentaram queda nos níveis de comparecimento.
Ao todo, 4% menos pessoas foram votar este ano em comparação com o último pleito nacional. Tierra del Fuego lidera o ranking de eleições gerais, com 2% menos em comparação com 2019. No ranking total, Mendoza lidera a diferença de ausências, com mais de 10%, porém lá se celebraram PASO. Vale ressaltar que os dados não avaliam o departamento de Chaco porque este não teve eleições em 2019.
O analista observa, porém, que embora os números absolutos de Córdoba surpreendam, proporcionalmente o departamento repete uma tendência que já se vê em anos anteriores. “Tanto em La Pampa, que tem um eleitorado muito menor, quanto em Córdoba a proporção de eleitores caiu da mesma forma. Se compararmos 2023 com 2019, em Córdoba caiu 4,58% e La Pampa caiu 3,38%, ou seja, é quase a mesma proporção”.
Alerta para as presidenciais
“Temos vistos em todas as eleições provinciais que estão acontecendo este ano na Argentina uma baixa na média histórica de participação, e é uma baixa que preocupa por vários fatores”, aponta Ana Paola Zuban, cientista política e pesquisadora em opinião pública, diretora da consultoria de pesquisas eleitorais Zuban Córdoba. A séria crise de representatividade, deficiência da Justiça Eleitoral e dos organismos de controles e uma investida das campanhas que buscam desestimular o voto do eleitor opositor.
“Há um fato que é verdade: o tema da ausência não era uma questão de campanha, e agora é uma questão de campanha”, afirmou Marcos Schiavi, Diretor Nacional Eleitoral ao jornal Página 12. “Ou seja, antes a maioria tinha plena consciência de que tinha que ir às urnas e agora é preciso convencer quem tem dúvidas”.
Analistas observam que o retrato das eleições nos departamentos não necessariamente reflete a realidade nacional, mas serve de alerta sobre o aumento da sensação de falta de representação entre o eleitorado.
“Aprendemos nesses 40 anos de democracia que quando votamos nas eleições municipais ou provinciais votamos uma agenda regional, e quando votamos nas presidenciais votamos outra agenda”, explica Zuban. “As PASO acabam sendo eleições em que os cidadãos votam mais visceralmente, ou seja, fazem o seu voto de protesto, seu voto mais sincero. Mas depois, quando chegam nas gerais, há um voto mais útil.”
Em geral, as eleições primárias costumam ter uma taxa de participação até 4 pontos porcentuais menor do que as gerais. As PASO de 2021 tiveram o menor número de eleitores, mas aconteceram durante as restrições sanitárias da covid-19. Mesmo em 2019, últimas eleições presidenciais que elegeram Alberto Fernández e Cristina Kirchner, as PASO registraram participação de 76,40%, contra 80,47% das gerais.
Esse cenário de voto visceral tende a favorecer candidatos que trabalham mais com o emocional do eleitor, como é o caso do libertário Javier Milei. “Não identificamos, em nossas pesquisas, um perfil específico de votantes que planejam se abster, embora a maioria seja homem. Mas percebemos que o eleitor masculino jovem, de 18 a 35 anos, está determinado a ir no dia votar por Milei”, completa Zuban.
A tendência é que Milei avance pelas PASO com mais votos do que se espera entre os analistas, mas perca ao chegar nas gerais, quando o eleitor deve “racionalizar” o voto. Se houver um segundo turno, como as pesquisas preveem, a tendência, afirma Zuban, é de que o eleitor exerça o “voto contra”, ou seja, votar em um para evitar o outro.
A punição para quem não vota no país é muito baixa. É necessário pagar uma multa de 50 pesos (R$ 0,86) e, em tese, há dificuldade em trâmites burocráticos, como tirar passaporte, mas é raro isso ser aplicado. Ainda assim, a juíza eleitoral de Córdoba alertou em notas, antes das eleições, que o voto era obrigatório.
Em 2021, em meio à histórica baixa participação eleitoral das PASO, se previa uma derrota dramática do governo nas duas casas. Mas o governo recuperou o eleitorado para as eleições gerais, poucos meses depois, e a coalizão governista conseguiu manter a maioria na Câmara, embora tenha perdido o Senado.
“Peço aos argentinos que vão votar, esperemos que nas eleições nacionais não se manifeste a abstenção que se verificou em muitas províncias, ou que se gere mais expectativa em torno das eleições”, desabafou o chefe de Gabinete e candidato a vice-presidente na lista com Sergio Massa, Agustín Rossi, à rádio AM750.
A sombra do ‘voto bronca’
Além das abstenções, cresceram também os votos brancos e nulos, em níveis que fez parte da imprensa argentina se questionar se o país voltava ao cenário do “voto bronca” de 2001. Naquele ano, ocorreram eleições legislativas em meio a um contexto de crise política e recessão econômica. Como resposta, mais de 23% do eleitorado se mobilizou para ir às urnas protestar.
Diferentemente da ausência, que pode carregar um peso de cansaço ou indiferença às eleições, os votos brancos e nulos representam uma intenção consciente de votar contra todas as opções, o que na Argentina se chama “que se vayam todos”. Mas o que tornou aquele ano ainda mais dramático foi a quantidade de cédulas rasgadas, rasuradas, com desenhos da Mafalda e palavras de baixo calão aos candidatos.
Nessas eleições, até o momento, quase todas as províncias apresentaram aumento nas suas taxas de votos brancos e nulos - a exceção foi Formosa, cuja participação positiva aumentou 3%. Mas o cenário ainda está muito distante de 2001, concordam Facundo Cruz e Ana Paola Zuban.
“Estamos pensando que voltamos a uma crise de 2001 mais de 20 anos depois, e os números não mostram isso”, alerta Cruz. “Se compararmos as votações nas províncias em 2003, que foi a primeira eleição depois da crise de 2001, versus 1999 [que foi a nacional anterior] quase todas as províncias caíram muito em termos de participação. Agora, se comparamos 2023 versus 2019, poucas províncias caíram tanto”.
Diferentemente de uma crise, ressalta ele, o que a Argentina vive agora é mais uma onda de baixa participação eleitoral, algo que vem se repetindo desde os anos 2000. “O problema é que estamos vendo essas eleições com a lente de 1983, quando a Argentina voltou a ser democracia e tinha níveis de participação de 85%. Se compararmos com aquela época, realmente a queda é gigantesca. Mas o que acontece é que vivemos ondas, com momentos de pico e momentos de vale.”
A seu ver, e frente ao cenário eleitoral super competitivo, essas PASO podem ter uma participação eleitoral muito acima da média. “Não estou muito convencido de que a participação eleitoral das primárias será baixa por dois motivos: primeiro porque há uma primária muito competitiva na oposição e segundo porque existem três modelos e três programas políticos totalmente opostos”.