A decisão dos Estados Unidos e Reino Unido de atacar bases militares do grupo Houthi, sediado no Iêmen, na última semana expressou o incômodo com as ações dos rebeldes no Mar Vermelho nos últimos meses. Desde novembro, o grupo lança ofensivas contra dezenas de navios mercantes que trafegam na região, crucial para o comércio global, e causa a saída de companhias de navegação para outras rotas. O objetivo e o efeito dos ataques são os mesmos: afetar a cadeia de suprimentos global, aumentando os custos para todo o mundo.
Os houthis justificam a ofensiva em protesto pela guerra de Israel contra o Hamas, que faz parte da aliança regional dos rebeldes do Iêmen com o Hezbollah e o líder Irã. Eles dizem que continuarão com os ataques até que Israel cesse as ações na Faixa de Gaza. O grupo sabe que atinge os principais aliados de Israel — os Estados Unidos e as nações europeias — ao gerar prejuízo financeiro. A região compreende cerca de 12% do comércio mundial.
Em três meses, gigantes da navegação, como o líder global A.P. Møller-Mærsk, anunciaram planos para evitar o Mar Vermelho e o Canal de Suez no transporte de produtos da Ásia para a Europa e EUA. Isso significou o desvio de mais de US$ 200 bilhões (R$ 985 bilhões, na cotação atual) em produtos no período pelo Cabo da Boa Esperança, no sul da África. Inclui painéis solares, baterias de veículos elétricos até itens mais baratos, como eletrodomésticos ou brinquedos.
As rotas mais longas significam preços mais caros para o transporte dos produtos e maior tempo de viagem. Um levantamento da empresa Freightos indica que o envio de um contêiner da China para a Europa subiu de menos de US$ 1 mil para US$ 4,7 mil. E pelo menos duas montadoras instaladas na Alemanha, a Tesla e a Volvo, anunciaram nos últimos dias que as fábricas estariam operando abaixo da capacidade por causa do atraso na entrega de peças.
Por enquanto, dizem os analistas, não há um grande impacto nos preços aos consumidores, mas isso pode mudar rapidamente se os ataques continuarem e a violência aumentar. “Os preços dos contêineres na maioria das rotas marítimas em todo o mundo estão agora mais altos do que em qualquer momento de 2023″, disse Sarah Schiffling, docente e pesquisadora de cadeias de suprimento global da Universidade de Hanken, na Finlândia. Ainda assim, seguem distantes do pico alcançado durante a pandemia de covid, de US$ 15 mil na rota China-Europa.
Segundo Schiffling, as consequências não estão apenas relacionadas ao tempo e ao custo da viagem, que passa a ser maior por exigir mais combustível e também pelo aumento do preço dos seguros. “Há também uma preocupação com a escassez de contêineres. Eles simplesmente não estarão nos lugares onde deveriam estar”, declarou. “Vimos durante a pandemia da covid que isso pode rapidamente ter repercussões graves mundiais, não apenas nos países diretamente afetados, porque o mercado global marítimo está interligado.”
Cerca de 12% do petróleo marítimo e 8% do gás natural liquefeito (GNL) também transitam pela rota do Canal de Suez e estão sob a ameaça das tensões. Até o momento, os preços dos combustíveis não têm sido afetados de maneira significativa, mas essa é uma das maiores preocupações para os líderes globais.
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América do Sul e Brasil afetados indiretamente
Mesmo que a navegação pelo Canal de Suez e Mar Vermelho esteja relacionada à rota Europa-Ásia, o efeito dos ataques também deve ser sentido na América do Sul e no Brasil. Contribui para isso a seca do Canal do Panamá, que reduz a capacidade de navegação em outra rota importante do comércio global e força alguns navios a procurarem outros caminhos. Antes das tensões, o Canal de Suez era um deles.
A rota de comércio com a China, o principal parceiro comercial do Brasil, por exemplo, se tornou mais lento, menos confiável e mais caro por causa das interrupções no Panamá e no Mar Vermelho. “O Brasil não pode esperar sair totalmente ileso (desses efeitos)”, disse Sarah Schiffling. Isso já havia acontecido no passado, com o bloqueio do Canal de Suez com o encalhe do navio Ever Given em 2021.
Mas o impacto mais direto para o País pode ser no comércio com o Oriente Médio. A região consome 29,4% da produção brasileira de proteína animal com destino ao exterior, segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA). A exportação continua, mas pelo Cabo da Boa Esperança e com um custo maior para os países compradores. “Dado os atrasos de 15 dias pela nova rota, sabemos que os preços de carne e frango aumentaram no Oriente Médio, um mercado importante. No Catar, 70% do frango consumido é brasileiro”, disse Luís Rua, diretor de mercado da ABPA.
Para os exportadores brasileiros, o efeito ainda não é sentido. Em dezembro, o volume de exportações de proteína animal foi o maior da história, com 467 mil toneladas. Este mês, a ABPA estima um volume acima das 400 mil toneladas. “É um volume muito bom para o mês de janeiro”, declarou Luís. A preocupação maior é a longo prazo: “Se mantido esse cenário, vai haver atrasos maiores. Por lógica, se está levando 15 dias a mais para ir, a volta também vai custar 15 dias a mais”, acrescentou.
Segundo Schiffling, o Brasil tem a vantagem de possuir diversos parceiros comerciais importantes que não necessitam do Canal de Suez. “As exportações brasileiras para a Argentina ou as importações da Alemanha não serão diretamente afetadas”, disse.
Capacidade para causar mais danos
Após as ofensivas contra as bases militares houthis, os EUA anunciaram que estavam “bastante confiantes” de que haviam conseguido reduzir a capacidade dos rebeldes de continuar atacando os navios, mas as empresas ainda não estão completamente convencidas de que a segurança na região foi restabelecida e continuam em outras rotas. Os próprios houthis demonstram confiança de que ainda são uma ameaça.
Em discursos realizados em Sanaa, capital do Iêmen, dois dias depois da primeira ofensiva, os rebeldes afirmaram que não se importam com os ataques e em tornar o conflito na região uma guerra que afeta todo o mundo. No dia 15, 4 dias depois do primeiro ataque, um navio de contêiner foi atingido no Golfo de Áden.
Novos ataques contra as bases foram realizados nos dias seguintes, mas as dúvidas sobre a efetividade de neutralizá-los permanecem. Os houthis resistiram na guerra civil do Iêmen durante sete anos contra uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita com a aliança de nações como os EUA e o Reino Unido. “É um erro subestimá-los”, disse a brasileira Nathalia Quintiliano, que trabalhou para a ONU como oficial de monitoramento para o Iêmen entre 2016 e 2019.
Para Quintiliano, os rebeldes possuem capacidade para fazer ações mais ousadas, que causariam maiores prejuízos à economia global, devido ao arsenal que possuem e pela posição estratégica que ocupam – o Iêmen fica ao lado do Estreito de Bab al-Mandab, área de apenas 30 km de largura e de trânsito para 3,5 milhões de barris de petróleo diariamente.
Apesar disso, uma ação mais ousada afetaria o próprio Iêmen, que conquistou um acordo de paz no ano passado após sete anos em conflito que causaram uma das maiores catástrofes mundiais, segundo a ONU. “Grande parte do que chega no Iêmen também é por navios. Uma interrupção completa na navegação da região afetaria as próprias bases houthis”, disse Quintiliano.
Resposta árabe aos houthis é cautelosa
Estados árabes que também seriam prejudicados em ações mais ousadas ou frequentes dos houthis no Mar Vermelho tem respondido aos ataques com cautela. O principal motivo é a união árabe em torno dos palestinos, que transcende as divisões internas entre xiitas e sunitas, que opuseram os houthis ao governo do Iêmen, apoiado pela Arábia Saudita. Os rebeldes também encontram apoio no país, nas áreas em que controlam.
Isso explica em parte por que os inimigos declarados dos houthis, incluindo os sauditas e os Emirados Árabes Unidos, não endossam os ataques dos EUA e Reino Unido contra os rebeldes. Outra razão é o risco da instabilidade política aumentar e a trégua na guerra civil do Iêmen, conquistada recentemente, chegar ao fim.
O conflito é crucial para entender como os ataques houthis contra embarcações e as respostas americanas e britânicas podem agravar a crise regional, além da crise no comércio global. Em sete anos, o Iêmen teve 30 mil mortos, sendo 10 mil crianças, e tem 2,5 milhões de crianças em risco severo de desnutrição. A ONU estima que 80% dos 30 milhões de habitantes do país necessitam de ajuda humanitária.
A trégua conquistada no ano passado foi comemorada pela comunidade internacional como a oportunidade para maiores projetos de ajuda humanitária e reconstrução do país, mas os novos ataques podem colocar o plano em xeque. “Os civis sempre são afetados em ataques, independente se são realizados contra bases militares”, afirmou Quintiliano. “O que está em jogo é como a Arábia Saudita vai reagir. Até o momento, eles não parecem ter interesse em escalar o conflito, mas se opuserem aos houthis, a situação se agrava”.