Acusação de genocídio contra Israel tem desafio de provar a intencionalidade, dizem analistas


Crime de genocídio é definido pela ONU como atos intencionais para ‘destruir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso’; África do Sul precisa provar que Israel teve intenção de destruir palestinos, não apenas mostrar violência

Por Luiz Henrique Gomes
Atualização:

A África do Sul foi à Corte Internacional de Justiça, a instância mais alta da ONU, na quinta-feira, 11, para defender a sua acusação de genocídio cometido por Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Há anos, essa acusação é feita por organizações palestinas e inimigos de Israel, como o Irã, mas nunca havia chegado tão longe quanto agora. À medida que a ofensiva na Faixa de Gaza continua, cada vez mais países, incluindo o Brasil, que possuía boas relações com Israel antes do 7 de outubro, aderem a ideia.

Israel nega cometer genocídio e afirma estar na Faixa de Gaza para combater o grupo terrorista Hamas, responsável pelo ataque em 7 de outubro que deixou cerca de 1,2 mil mortos. O grupo terrorista Hamas, argumenta Israel, seriam os verdadeiros criminosos na guerra, enquanto as ações israelenses, que deixaram milhares de civis, incluindo crianças e mulheres, mortos e desabrigados, seriam efeitos colaterais de uma ação necessária para se defender de terroristas.

Civis fogem de ataques aéreos israelenses no centro da Faixa de Gaza, em imagem do dia 6 de novembro. Morte indiscriminadas na Faixa de Gaza são vistas como genocídio por parte da África do Sul Foto: Yasser Qudih/AFP
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Mas o que é preciso para uma ação ser considerado genocídio na Corte Internacional de Justiça?

Desde 1948, a ONU define genocídio como atos destinados a “destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Essa definição, no entanto, também inclui a intencionalidade como necessária para a ação ser genocida. “É aí que reside a grande questão. Mortes indiscriminadas de um grupo não significa genocídio diretamente. Precisa haver intenção. E provar a intenção é algo muito difícil”, explicou Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O holocausto, que foi o assassinato sistemático de seis milhões de judeus pelos nazistas, foi genocídio. O massacre étnico de 500 mil tutsis em Ruanda por milícias hutus em 1994 também. Mas em 2005, por exemplo, a ONU concluiu que a morte de 300 mil pessoas da etnia masalit durante a guerra civil do Sudão “não seguiu uma política de genocídio”, embora alguns indivíduos possam ter agido com “intenção genocida”.

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Como se vê, as nuances são determinantes para condenar um Estado por genocídio ou não. Um julgamento como esse tende a se arrastar por cinco a dez anos, em média.

Argumentos de acusação e defesa

Ciente da complexidade da acusação, a África do Sul construiu a argumentação de acusação a fim de demonstrar como declarações de autoridades do Estado de Israel está ligada à conduta das tropas militares na Faixa de Gaza após o 7 de outubro. Um exemplo utilizado é a declaração do ministro da Defesa, Yoav Gallant, em que ele chama os palestinos de “animais humanos” ao anunciar o corte de todos os serviços básicos (água, gás, comida e eletricidade) na Faixa de Gaza no dia 10 de outubro.

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“Essas declarações genocidas não são feitas para interpretações ou racionalizações. Eles são feitos por funcionários do Estado e falam de uma política. Se não fossem pretendidos, não teriam sido feitos”, disse o time da África do Sul durante a apresentação.

Em defesa, Israel argumentou que a África do Sul desconsidera que a ofensiva sobre a Faixa de Gaza foi uma resposta à ação do grupo terrorista Hamas em 7 de outubro e evoca o direito de se defender, previsto no direito internacional. Eles dizem que o número alto de civis mortos resulta da estratégia do grupo terrorista Hamas de ter o povo palestino como “escudo humano” na Faixa de Gaza, e não de uma intenção genocida de destruir o povo palestino. “O componente-chave do genocídio, a intenção de destruir um povo no todo ou em parte, está ausente”, disse a defesa de Israel na CIJ. Israel disse agir para proteger o seu povo, relembrando a existência de reféns judeus nas mãos do grupo terrorista Hamas.

Ministro da Justiça da África do Sul, Ronald Lamola (à dir.), faz declarações a jornalistas na sede da Corte Internacional de Justiça, em Haia, na quinta-feira, 11. País afirma que Israel pratica genocídio contra povo palestino Foto: Remko De Waal / AFP
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História antes do 7 de outubro

Segundo Casarões, para Israel ser considerado genocida, a África do Sul vai precisar ir além das declarações de ministros de Estado. “Uma fala isolada de ministro dificilmente vai embasar o caso de um Estado cometendo genocídio. Para você provar um genocídio, é preciso ter provas substanciosas”, explicou.

Na argumentação da quinta-feira, um aspecto importante apresentado pela África do Sul é a política histórica de Israel com relação aos palestinos, evocando a Nakba, que deslocou mais de 700 mil palestinos em 1948, no nascimento de Israel, e o bloqueio à Faixa de Gaza neste século. O país também argumenta que mesmo a ajuda humanitária que Israel diz promover na Faixa de Gaza, com construção de hospitais de campanha e permissão de entrada de caminhões, é “condizente” com o genocídio por ser insuficiente.

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Para Renata Gaspar, professora de direito internacional na ESPM, a argumentação da África do Sul é forte porque demonstra que as ações de Israel com relação ao povo palestino durante toda a história demandam uma força estratégica e militar – ou seja, uma política de Estado. “O que a África do Sul tenta demonstrar é que se trata de uma política de Estado, e não apenas de um direito de defesa ou de ações de um governo”, afirmou.

Consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Tal Becker (C), no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, em imagem desta sexta-feira, 12. Israel afirma que ações na Faixa de Gaza fazem parte de direito de autodefesa Foto: REMKO DE WAAL / AFP

Na sua defesa, Israel rejeitou o argumento de histórico da África do Sul ao afirmar que o contexto imediato das acusações de genocídio foram as ações após o 7 de outubro, não a Nakba, e voltou a falar sobre o direito de autodefesa. Um aspecto importante de Israel para isso é o fato de o grupo terrorista Hamas, criado em 1987, expressar na sua carta fundadora a intenção de eliminar os judeus. “O Hamas é o verdadeiro genocida”, disse a defesa nesta sexta-feira.

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O efeito político do julgamento

Um aspecto importante do julgamento é o efeito político que a Corte Internacional de Justiça tem para o futuro dos Estados. E, no caso de Israel, ser julgado como genocida ou não é ainda mais emblemático.

A definição de genocídio pela ONU foi criada no momento em que o mundo saía da Segunda Guerra. E teve a intenção, em especial, de evitar um novo holocausto. Se no passado os judeus foram assassinados em massa de uma forma intencional, agora Israel, o Estado judaico, é acusado de promover esse ato.

Segundo Renata Gaspar, um julgamento dessa natureza tende a mudar as relações internacionais. A CIJ é um órgão criado para julgar Estados, não indivíduos e organizações, e a sentença pode ter uma grande implicação para a relação de Israel com o mundo. “O que está em jogo aqui é uma política de Estado. Netanyahu ou outros membros podem ser julgados individualmente no Tribunal Penal Internacional (TPI), mas o peso do CIJ é com relação a um Estado”, explicou.

É no TPI, por exemplo, que indivíduos do grupo terrorista Hamas podem ser julgados pelos crimes cometidos no dia 7 de outubro – o que não exclui o fato de Israel também poder ter cometido crimes na sua resposta militar.

Para Guilherme Casarões, o fato do julgamento ser contra um Estado é importante para que não se banalize o termo “genocídio”. “Israel está cometendo crimes de guerra, isso é fato. Ataca civis de forma indiscriminada, hospitais e escolas. Isso se enquadra perfeitamente no crime de guerra. Mas se isso tem intencionalidade de destruir um povo como um todo, é um passo delicado a se confirmar”, afirmou.

Mesmo que as ações de um exército não ultrapassem o limiar do genocídio, elas ainda podem estar erradas. Ao não concluir que o Sudão cometeu genocídio no Darfur em 2005, a ONU afirmou que os “crimes contra a humanidade e crimes de guerra que foram cometidos (...) não pode ser menos grave e hediondo do que o genocídio”.

O que o julgamento atual já mostrou, argumentam os especialistas, é que as ações de Israel na Faixa de Gaza, hoje documentadas, já causaram dano a sua reputação. “Israel sempre teve a dificuldade de ser aceito como um Estado legítimo. Conseguiu alguns avanços dos anos 90 para cá, mas a acusação de genocídio mostra um passo atrás porque mesmo países com relações com Israel, como a África do Sul e Brasil, por exemplo, tem condicionado a sua relação a essa atuação da violência na Faixa de Gaza”, concluiu Casarões.

“Só o fato de Israel responder essa demanda da África do Sul, mostra como a balança política mudou a partir das ações. Israel precisa controlar a pressão internacional, e faz isso pela defesa na CIJ. É um julgamento que pode impulsionar muitas mudanças pretendidas em organismos internacionais”, disse Renata Gaspar.

A África do Sul foi à Corte Internacional de Justiça, a instância mais alta da ONU, na quinta-feira, 11, para defender a sua acusação de genocídio cometido por Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Há anos, essa acusação é feita por organizações palestinas e inimigos de Israel, como o Irã, mas nunca havia chegado tão longe quanto agora. À medida que a ofensiva na Faixa de Gaza continua, cada vez mais países, incluindo o Brasil, que possuía boas relações com Israel antes do 7 de outubro, aderem a ideia.

Israel nega cometer genocídio e afirma estar na Faixa de Gaza para combater o grupo terrorista Hamas, responsável pelo ataque em 7 de outubro que deixou cerca de 1,2 mil mortos. O grupo terrorista Hamas, argumenta Israel, seriam os verdadeiros criminosos na guerra, enquanto as ações israelenses, que deixaram milhares de civis, incluindo crianças e mulheres, mortos e desabrigados, seriam efeitos colaterais de uma ação necessária para se defender de terroristas.

Civis fogem de ataques aéreos israelenses no centro da Faixa de Gaza, em imagem do dia 6 de novembro. Morte indiscriminadas na Faixa de Gaza são vistas como genocídio por parte da África do Sul Foto: Yasser Qudih/AFP

Mas o que é preciso para uma ação ser considerado genocídio na Corte Internacional de Justiça?

Desde 1948, a ONU define genocídio como atos destinados a “destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Essa definição, no entanto, também inclui a intencionalidade como necessária para a ação ser genocida. “É aí que reside a grande questão. Mortes indiscriminadas de um grupo não significa genocídio diretamente. Precisa haver intenção. E provar a intenção é algo muito difícil”, explicou Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O holocausto, que foi o assassinato sistemático de seis milhões de judeus pelos nazistas, foi genocídio. O massacre étnico de 500 mil tutsis em Ruanda por milícias hutus em 1994 também. Mas em 2005, por exemplo, a ONU concluiu que a morte de 300 mil pessoas da etnia masalit durante a guerra civil do Sudão “não seguiu uma política de genocídio”, embora alguns indivíduos possam ter agido com “intenção genocida”.

Como se vê, as nuances são determinantes para condenar um Estado por genocídio ou não. Um julgamento como esse tende a se arrastar por cinco a dez anos, em média.

Argumentos de acusação e defesa

Ciente da complexidade da acusação, a África do Sul construiu a argumentação de acusação a fim de demonstrar como declarações de autoridades do Estado de Israel está ligada à conduta das tropas militares na Faixa de Gaza após o 7 de outubro. Um exemplo utilizado é a declaração do ministro da Defesa, Yoav Gallant, em que ele chama os palestinos de “animais humanos” ao anunciar o corte de todos os serviços básicos (água, gás, comida e eletricidade) na Faixa de Gaza no dia 10 de outubro.

“Essas declarações genocidas não são feitas para interpretações ou racionalizações. Eles são feitos por funcionários do Estado e falam de uma política. Se não fossem pretendidos, não teriam sido feitos”, disse o time da África do Sul durante a apresentação.

Em defesa, Israel argumentou que a África do Sul desconsidera que a ofensiva sobre a Faixa de Gaza foi uma resposta à ação do grupo terrorista Hamas em 7 de outubro e evoca o direito de se defender, previsto no direito internacional. Eles dizem que o número alto de civis mortos resulta da estratégia do grupo terrorista Hamas de ter o povo palestino como “escudo humano” na Faixa de Gaza, e não de uma intenção genocida de destruir o povo palestino. “O componente-chave do genocídio, a intenção de destruir um povo no todo ou em parte, está ausente”, disse a defesa de Israel na CIJ. Israel disse agir para proteger o seu povo, relembrando a existência de reféns judeus nas mãos do grupo terrorista Hamas.

Ministro da Justiça da África do Sul, Ronald Lamola (à dir.), faz declarações a jornalistas na sede da Corte Internacional de Justiça, em Haia, na quinta-feira, 11. País afirma que Israel pratica genocídio contra povo palestino Foto: Remko De Waal / AFP

História antes do 7 de outubro

Segundo Casarões, para Israel ser considerado genocida, a África do Sul vai precisar ir além das declarações de ministros de Estado. “Uma fala isolada de ministro dificilmente vai embasar o caso de um Estado cometendo genocídio. Para você provar um genocídio, é preciso ter provas substanciosas”, explicou.

Na argumentação da quinta-feira, um aspecto importante apresentado pela África do Sul é a política histórica de Israel com relação aos palestinos, evocando a Nakba, que deslocou mais de 700 mil palestinos em 1948, no nascimento de Israel, e o bloqueio à Faixa de Gaza neste século. O país também argumenta que mesmo a ajuda humanitária que Israel diz promover na Faixa de Gaza, com construção de hospitais de campanha e permissão de entrada de caminhões, é “condizente” com o genocídio por ser insuficiente.

Para Renata Gaspar, professora de direito internacional na ESPM, a argumentação da África do Sul é forte porque demonstra que as ações de Israel com relação ao povo palestino durante toda a história demandam uma força estratégica e militar – ou seja, uma política de Estado. “O que a África do Sul tenta demonstrar é que se trata de uma política de Estado, e não apenas de um direito de defesa ou de ações de um governo”, afirmou.

Consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Tal Becker (C), no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, em imagem desta sexta-feira, 12. Israel afirma que ações na Faixa de Gaza fazem parte de direito de autodefesa Foto: REMKO DE WAAL / AFP

Na sua defesa, Israel rejeitou o argumento de histórico da África do Sul ao afirmar que o contexto imediato das acusações de genocídio foram as ações após o 7 de outubro, não a Nakba, e voltou a falar sobre o direito de autodefesa. Um aspecto importante de Israel para isso é o fato de o grupo terrorista Hamas, criado em 1987, expressar na sua carta fundadora a intenção de eliminar os judeus. “O Hamas é o verdadeiro genocida”, disse a defesa nesta sexta-feira.

O efeito político do julgamento

Um aspecto importante do julgamento é o efeito político que a Corte Internacional de Justiça tem para o futuro dos Estados. E, no caso de Israel, ser julgado como genocida ou não é ainda mais emblemático.

A definição de genocídio pela ONU foi criada no momento em que o mundo saía da Segunda Guerra. E teve a intenção, em especial, de evitar um novo holocausto. Se no passado os judeus foram assassinados em massa de uma forma intencional, agora Israel, o Estado judaico, é acusado de promover esse ato.

Segundo Renata Gaspar, um julgamento dessa natureza tende a mudar as relações internacionais. A CIJ é um órgão criado para julgar Estados, não indivíduos e organizações, e a sentença pode ter uma grande implicação para a relação de Israel com o mundo. “O que está em jogo aqui é uma política de Estado. Netanyahu ou outros membros podem ser julgados individualmente no Tribunal Penal Internacional (TPI), mas o peso do CIJ é com relação a um Estado”, explicou.

É no TPI, por exemplo, que indivíduos do grupo terrorista Hamas podem ser julgados pelos crimes cometidos no dia 7 de outubro – o que não exclui o fato de Israel também poder ter cometido crimes na sua resposta militar.

Para Guilherme Casarões, o fato do julgamento ser contra um Estado é importante para que não se banalize o termo “genocídio”. “Israel está cometendo crimes de guerra, isso é fato. Ataca civis de forma indiscriminada, hospitais e escolas. Isso se enquadra perfeitamente no crime de guerra. Mas se isso tem intencionalidade de destruir um povo como um todo, é um passo delicado a se confirmar”, afirmou.

Mesmo que as ações de um exército não ultrapassem o limiar do genocídio, elas ainda podem estar erradas. Ao não concluir que o Sudão cometeu genocídio no Darfur em 2005, a ONU afirmou que os “crimes contra a humanidade e crimes de guerra que foram cometidos (...) não pode ser menos grave e hediondo do que o genocídio”.

O que o julgamento atual já mostrou, argumentam os especialistas, é que as ações de Israel na Faixa de Gaza, hoje documentadas, já causaram dano a sua reputação. “Israel sempre teve a dificuldade de ser aceito como um Estado legítimo. Conseguiu alguns avanços dos anos 90 para cá, mas a acusação de genocídio mostra um passo atrás porque mesmo países com relações com Israel, como a África do Sul e Brasil, por exemplo, tem condicionado a sua relação a essa atuação da violência na Faixa de Gaza”, concluiu Casarões.

“Só o fato de Israel responder essa demanda da África do Sul, mostra como a balança política mudou a partir das ações. Israel precisa controlar a pressão internacional, e faz isso pela defesa na CIJ. É um julgamento que pode impulsionar muitas mudanças pretendidas em organismos internacionais”, disse Renata Gaspar.

A África do Sul foi à Corte Internacional de Justiça, a instância mais alta da ONU, na quinta-feira, 11, para defender a sua acusação de genocídio cometido por Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Há anos, essa acusação é feita por organizações palestinas e inimigos de Israel, como o Irã, mas nunca havia chegado tão longe quanto agora. À medida que a ofensiva na Faixa de Gaza continua, cada vez mais países, incluindo o Brasil, que possuía boas relações com Israel antes do 7 de outubro, aderem a ideia.

Israel nega cometer genocídio e afirma estar na Faixa de Gaza para combater o grupo terrorista Hamas, responsável pelo ataque em 7 de outubro que deixou cerca de 1,2 mil mortos. O grupo terrorista Hamas, argumenta Israel, seriam os verdadeiros criminosos na guerra, enquanto as ações israelenses, que deixaram milhares de civis, incluindo crianças e mulheres, mortos e desabrigados, seriam efeitos colaterais de uma ação necessária para se defender de terroristas.

Civis fogem de ataques aéreos israelenses no centro da Faixa de Gaza, em imagem do dia 6 de novembro. Morte indiscriminadas na Faixa de Gaza são vistas como genocídio por parte da África do Sul Foto: Yasser Qudih/AFP

Mas o que é preciso para uma ação ser considerado genocídio na Corte Internacional de Justiça?

Desde 1948, a ONU define genocídio como atos destinados a “destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Essa definição, no entanto, também inclui a intencionalidade como necessária para a ação ser genocida. “É aí que reside a grande questão. Mortes indiscriminadas de um grupo não significa genocídio diretamente. Precisa haver intenção. E provar a intenção é algo muito difícil”, explicou Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O holocausto, que foi o assassinato sistemático de seis milhões de judeus pelos nazistas, foi genocídio. O massacre étnico de 500 mil tutsis em Ruanda por milícias hutus em 1994 também. Mas em 2005, por exemplo, a ONU concluiu que a morte de 300 mil pessoas da etnia masalit durante a guerra civil do Sudão “não seguiu uma política de genocídio”, embora alguns indivíduos possam ter agido com “intenção genocida”.

Como se vê, as nuances são determinantes para condenar um Estado por genocídio ou não. Um julgamento como esse tende a se arrastar por cinco a dez anos, em média.

Argumentos de acusação e defesa

Ciente da complexidade da acusação, a África do Sul construiu a argumentação de acusação a fim de demonstrar como declarações de autoridades do Estado de Israel está ligada à conduta das tropas militares na Faixa de Gaza após o 7 de outubro. Um exemplo utilizado é a declaração do ministro da Defesa, Yoav Gallant, em que ele chama os palestinos de “animais humanos” ao anunciar o corte de todos os serviços básicos (água, gás, comida e eletricidade) na Faixa de Gaza no dia 10 de outubro.

“Essas declarações genocidas não são feitas para interpretações ou racionalizações. Eles são feitos por funcionários do Estado e falam de uma política. Se não fossem pretendidos, não teriam sido feitos”, disse o time da África do Sul durante a apresentação.

Em defesa, Israel argumentou que a África do Sul desconsidera que a ofensiva sobre a Faixa de Gaza foi uma resposta à ação do grupo terrorista Hamas em 7 de outubro e evoca o direito de se defender, previsto no direito internacional. Eles dizem que o número alto de civis mortos resulta da estratégia do grupo terrorista Hamas de ter o povo palestino como “escudo humano” na Faixa de Gaza, e não de uma intenção genocida de destruir o povo palestino. “O componente-chave do genocídio, a intenção de destruir um povo no todo ou em parte, está ausente”, disse a defesa de Israel na CIJ. Israel disse agir para proteger o seu povo, relembrando a existência de reféns judeus nas mãos do grupo terrorista Hamas.

Ministro da Justiça da África do Sul, Ronald Lamola (à dir.), faz declarações a jornalistas na sede da Corte Internacional de Justiça, em Haia, na quinta-feira, 11. País afirma que Israel pratica genocídio contra povo palestino Foto: Remko De Waal / AFP

História antes do 7 de outubro

Segundo Casarões, para Israel ser considerado genocida, a África do Sul vai precisar ir além das declarações de ministros de Estado. “Uma fala isolada de ministro dificilmente vai embasar o caso de um Estado cometendo genocídio. Para você provar um genocídio, é preciso ter provas substanciosas”, explicou.

Na argumentação da quinta-feira, um aspecto importante apresentado pela África do Sul é a política histórica de Israel com relação aos palestinos, evocando a Nakba, que deslocou mais de 700 mil palestinos em 1948, no nascimento de Israel, e o bloqueio à Faixa de Gaza neste século. O país também argumenta que mesmo a ajuda humanitária que Israel diz promover na Faixa de Gaza, com construção de hospitais de campanha e permissão de entrada de caminhões, é “condizente” com o genocídio por ser insuficiente.

Para Renata Gaspar, professora de direito internacional na ESPM, a argumentação da África do Sul é forte porque demonstra que as ações de Israel com relação ao povo palestino durante toda a história demandam uma força estratégica e militar – ou seja, uma política de Estado. “O que a África do Sul tenta demonstrar é que se trata de uma política de Estado, e não apenas de um direito de defesa ou de ações de um governo”, afirmou.

Consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Tal Becker (C), no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, em imagem desta sexta-feira, 12. Israel afirma que ações na Faixa de Gaza fazem parte de direito de autodefesa Foto: REMKO DE WAAL / AFP

Na sua defesa, Israel rejeitou o argumento de histórico da África do Sul ao afirmar que o contexto imediato das acusações de genocídio foram as ações após o 7 de outubro, não a Nakba, e voltou a falar sobre o direito de autodefesa. Um aspecto importante de Israel para isso é o fato de o grupo terrorista Hamas, criado em 1987, expressar na sua carta fundadora a intenção de eliminar os judeus. “O Hamas é o verdadeiro genocida”, disse a defesa nesta sexta-feira.

O efeito político do julgamento

Um aspecto importante do julgamento é o efeito político que a Corte Internacional de Justiça tem para o futuro dos Estados. E, no caso de Israel, ser julgado como genocida ou não é ainda mais emblemático.

A definição de genocídio pela ONU foi criada no momento em que o mundo saía da Segunda Guerra. E teve a intenção, em especial, de evitar um novo holocausto. Se no passado os judeus foram assassinados em massa de uma forma intencional, agora Israel, o Estado judaico, é acusado de promover esse ato.

Segundo Renata Gaspar, um julgamento dessa natureza tende a mudar as relações internacionais. A CIJ é um órgão criado para julgar Estados, não indivíduos e organizações, e a sentença pode ter uma grande implicação para a relação de Israel com o mundo. “O que está em jogo aqui é uma política de Estado. Netanyahu ou outros membros podem ser julgados individualmente no Tribunal Penal Internacional (TPI), mas o peso do CIJ é com relação a um Estado”, explicou.

É no TPI, por exemplo, que indivíduos do grupo terrorista Hamas podem ser julgados pelos crimes cometidos no dia 7 de outubro – o que não exclui o fato de Israel também poder ter cometido crimes na sua resposta militar.

Para Guilherme Casarões, o fato do julgamento ser contra um Estado é importante para que não se banalize o termo “genocídio”. “Israel está cometendo crimes de guerra, isso é fato. Ataca civis de forma indiscriminada, hospitais e escolas. Isso se enquadra perfeitamente no crime de guerra. Mas se isso tem intencionalidade de destruir um povo como um todo, é um passo delicado a se confirmar”, afirmou.

Mesmo que as ações de um exército não ultrapassem o limiar do genocídio, elas ainda podem estar erradas. Ao não concluir que o Sudão cometeu genocídio no Darfur em 2005, a ONU afirmou que os “crimes contra a humanidade e crimes de guerra que foram cometidos (...) não pode ser menos grave e hediondo do que o genocídio”.

O que o julgamento atual já mostrou, argumentam os especialistas, é que as ações de Israel na Faixa de Gaza, hoje documentadas, já causaram dano a sua reputação. “Israel sempre teve a dificuldade de ser aceito como um Estado legítimo. Conseguiu alguns avanços dos anos 90 para cá, mas a acusação de genocídio mostra um passo atrás porque mesmo países com relações com Israel, como a África do Sul e Brasil, por exemplo, tem condicionado a sua relação a essa atuação da violência na Faixa de Gaza”, concluiu Casarões.

“Só o fato de Israel responder essa demanda da África do Sul, mostra como a balança política mudou a partir das ações. Israel precisa controlar a pressão internacional, e faz isso pela defesa na CIJ. É um julgamento que pode impulsionar muitas mudanças pretendidas em organismos internacionais”, disse Renata Gaspar.

A África do Sul foi à Corte Internacional de Justiça, a instância mais alta da ONU, na quinta-feira, 11, para defender a sua acusação de genocídio cometido por Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Há anos, essa acusação é feita por organizações palestinas e inimigos de Israel, como o Irã, mas nunca havia chegado tão longe quanto agora. À medida que a ofensiva na Faixa de Gaza continua, cada vez mais países, incluindo o Brasil, que possuía boas relações com Israel antes do 7 de outubro, aderem a ideia.

Israel nega cometer genocídio e afirma estar na Faixa de Gaza para combater o grupo terrorista Hamas, responsável pelo ataque em 7 de outubro que deixou cerca de 1,2 mil mortos. O grupo terrorista Hamas, argumenta Israel, seriam os verdadeiros criminosos na guerra, enquanto as ações israelenses, que deixaram milhares de civis, incluindo crianças e mulheres, mortos e desabrigados, seriam efeitos colaterais de uma ação necessária para se defender de terroristas.

Civis fogem de ataques aéreos israelenses no centro da Faixa de Gaza, em imagem do dia 6 de novembro. Morte indiscriminadas na Faixa de Gaza são vistas como genocídio por parte da África do Sul Foto: Yasser Qudih/AFP

Mas o que é preciso para uma ação ser considerado genocídio na Corte Internacional de Justiça?

Desde 1948, a ONU define genocídio como atos destinados a “destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Essa definição, no entanto, também inclui a intencionalidade como necessária para a ação ser genocida. “É aí que reside a grande questão. Mortes indiscriminadas de um grupo não significa genocídio diretamente. Precisa haver intenção. E provar a intenção é algo muito difícil”, explicou Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O holocausto, que foi o assassinato sistemático de seis milhões de judeus pelos nazistas, foi genocídio. O massacre étnico de 500 mil tutsis em Ruanda por milícias hutus em 1994 também. Mas em 2005, por exemplo, a ONU concluiu que a morte de 300 mil pessoas da etnia masalit durante a guerra civil do Sudão “não seguiu uma política de genocídio”, embora alguns indivíduos possam ter agido com “intenção genocida”.

Como se vê, as nuances são determinantes para condenar um Estado por genocídio ou não. Um julgamento como esse tende a se arrastar por cinco a dez anos, em média.

Argumentos de acusação e defesa

Ciente da complexidade da acusação, a África do Sul construiu a argumentação de acusação a fim de demonstrar como declarações de autoridades do Estado de Israel está ligada à conduta das tropas militares na Faixa de Gaza após o 7 de outubro. Um exemplo utilizado é a declaração do ministro da Defesa, Yoav Gallant, em que ele chama os palestinos de “animais humanos” ao anunciar o corte de todos os serviços básicos (água, gás, comida e eletricidade) na Faixa de Gaza no dia 10 de outubro.

“Essas declarações genocidas não são feitas para interpretações ou racionalizações. Eles são feitos por funcionários do Estado e falam de uma política. Se não fossem pretendidos, não teriam sido feitos”, disse o time da África do Sul durante a apresentação.

Em defesa, Israel argumentou que a África do Sul desconsidera que a ofensiva sobre a Faixa de Gaza foi uma resposta à ação do grupo terrorista Hamas em 7 de outubro e evoca o direito de se defender, previsto no direito internacional. Eles dizem que o número alto de civis mortos resulta da estratégia do grupo terrorista Hamas de ter o povo palestino como “escudo humano” na Faixa de Gaza, e não de uma intenção genocida de destruir o povo palestino. “O componente-chave do genocídio, a intenção de destruir um povo no todo ou em parte, está ausente”, disse a defesa de Israel na CIJ. Israel disse agir para proteger o seu povo, relembrando a existência de reféns judeus nas mãos do grupo terrorista Hamas.

Ministro da Justiça da África do Sul, Ronald Lamola (à dir.), faz declarações a jornalistas na sede da Corte Internacional de Justiça, em Haia, na quinta-feira, 11. País afirma que Israel pratica genocídio contra povo palestino Foto: Remko De Waal / AFP

História antes do 7 de outubro

Segundo Casarões, para Israel ser considerado genocida, a África do Sul vai precisar ir além das declarações de ministros de Estado. “Uma fala isolada de ministro dificilmente vai embasar o caso de um Estado cometendo genocídio. Para você provar um genocídio, é preciso ter provas substanciosas”, explicou.

Na argumentação da quinta-feira, um aspecto importante apresentado pela África do Sul é a política histórica de Israel com relação aos palestinos, evocando a Nakba, que deslocou mais de 700 mil palestinos em 1948, no nascimento de Israel, e o bloqueio à Faixa de Gaza neste século. O país também argumenta que mesmo a ajuda humanitária que Israel diz promover na Faixa de Gaza, com construção de hospitais de campanha e permissão de entrada de caminhões, é “condizente” com o genocídio por ser insuficiente.

Para Renata Gaspar, professora de direito internacional na ESPM, a argumentação da África do Sul é forte porque demonstra que as ações de Israel com relação ao povo palestino durante toda a história demandam uma força estratégica e militar – ou seja, uma política de Estado. “O que a África do Sul tenta demonstrar é que se trata de uma política de Estado, e não apenas de um direito de defesa ou de ações de um governo”, afirmou.

Consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Tal Becker (C), no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, em imagem desta sexta-feira, 12. Israel afirma que ações na Faixa de Gaza fazem parte de direito de autodefesa Foto: REMKO DE WAAL / AFP

Na sua defesa, Israel rejeitou o argumento de histórico da África do Sul ao afirmar que o contexto imediato das acusações de genocídio foram as ações após o 7 de outubro, não a Nakba, e voltou a falar sobre o direito de autodefesa. Um aspecto importante de Israel para isso é o fato de o grupo terrorista Hamas, criado em 1987, expressar na sua carta fundadora a intenção de eliminar os judeus. “O Hamas é o verdadeiro genocida”, disse a defesa nesta sexta-feira.

O efeito político do julgamento

Um aspecto importante do julgamento é o efeito político que a Corte Internacional de Justiça tem para o futuro dos Estados. E, no caso de Israel, ser julgado como genocida ou não é ainda mais emblemático.

A definição de genocídio pela ONU foi criada no momento em que o mundo saía da Segunda Guerra. E teve a intenção, em especial, de evitar um novo holocausto. Se no passado os judeus foram assassinados em massa de uma forma intencional, agora Israel, o Estado judaico, é acusado de promover esse ato.

Segundo Renata Gaspar, um julgamento dessa natureza tende a mudar as relações internacionais. A CIJ é um órgão criado para julgar Estados, não indivíduos e organizações, e a sentença pode ter uma grande implicação para a relação de Israel com o mundo. “O que está em jogo aqui é uma política de Estado. Netanyahu ou outros membros podem ser julgados individualmente no Tribunal Penal Internacional (TPI), mas o peso do CIJ é com relação a um Estado”, explicou.

É no TPI, por exemplo, que indivíduos do grupo terrorista Hamas podem ser julgados pelos crimes cometidos no dia 7 de outubro – o que não exclui o fato de Israel também poder ter cometido crimes na sua resposta militar.

Para Guilherme Casarões, o fato do julgamento ser contra um Estado é importante para que não se banalize o termo “genocídio”. “Israel está cometendo crimes de guerra, isso é fato. Ataca civis de forma indiscriminada, hospitais e escolas. Isso se enquadra perfeitamente no crime de guerra. Mas se isso tem intencionalidade de destruir um povo como um todo, é um passo delicado a se confirmar”, afirmou.

Mesmo que as ações de um exército não ultrapassem o limiar do genocídio, elas ainda podem estar erradas. Ao não concluir que o Sudão cometeu genocídio no Darfur em 2005, a ONU afirmou que os “crimes contra a humanidade e crimes de guerra que foram cometidos (...) não pode ser menos grave e hediondo do que o genocídio”.

O que o julgamento atual já mostrou, argumentam os especialistas, é que as ações de Israel na Faixa de Gaza, hoje documentadas, já causaram dano a sua reputação. “Israel sempre teve a dificuldade de ser aceito como um Estado legítimo. Conseguiu alguns avanços dos anos 90 para cá, mas a acusação de genocídio mostra um passo atrás porque mesmo países com relações com Israel, como a África do Sul e Brasil, por exemplo, tem condicionado a sua relação a essa atuação da violência na Faixa de Gaza”, concluiu Casarões.

“Só o fato de Israel responder essa demanda da África do Sul, mostra como a balança política mudou a partir das ações. Israel precisa controlar a pressão internacional, e faz isso pela defesa na CIJ. É um julgamento que pode impulsionar muitas mudanças pretendidas em organismos internacionais”, disse Renata Gaspar.

A África do Sul foi à Corte Internacional de Justiça, a instância mais alta da ONU, na quinta-feira, 11, para defender a sua acusação de genocídio cometido por Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Há anos, essa acusação é feita por organizações palestinas e inimigos de Israel, como o Irã, mas nunca havia chegado tão longe quanto agora. À medida que a ofensiva na Faixa de Gaza continua, cada vez mais países, incluindo o Brasil, que possuía boas relações com Israel antes do 7 de outubro, aderem a ideia.

Israel nega cometer genocídio e afirma estar na Faixa de Gaza para combater o grupo terrorista Hamas, responsável pelo ataque em 7 de outubro que deixou cerca de 1,2 mil mortos. O grupo terrorista Hamas, argumenta Israel, seriam os verdadeiros criminosos na guerra, enquanto as ações israelenses, que deixaram milhares de civis, incluindo crianças e mulheres, mortos e desabrigados, seriam efeitos colaterais de uma ação necessária para se defender de terroristas.

Civis fogem de ataques aéreos israelenses no centro da Faixa de Gaza, em imagem do dia 6 de novembro. Morte indiscriminadas na Faixa de Gaza são vistas como genocídio por parte da África do Sul Foto: Yasser Qudih/AFP

Mas o que é preciso para uma ação ser considerado genocídio na Corte Internacional de Justiça?

Desde 1948, a ONU define genocídio como atos destinados a “destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Essa definição, no entanto, também inclui a intencionalidade como necessária para a ação ser genocida. “É aí que reside a grande questão. Mortes indiscriminadas de um grupo não significa genocídio diretamente. Precisa haver intenção. E provar a intenção é algo muito difícil”, explicou Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O holocausto, que foi o assassinato sistemático de seis milhões de judeus pelos nazistas, foi genocídio. O massacre étnico de 500 mil tutsis em Ruanda por milícias hutus em 1994 também. Mas em 2005, por exemplo, a ONU concluiu que a morte de 300 mil pessoas da etnia masalit durante a guerra civil do Sudão “não seguiu uma política de genocídio”, embora alguns indivíduos possam ter agido com “intenção genocida”.

Como se vê, as nuances são determinantes para condenar um Estado por genocídio ou não. Um julgamento como esse tende a se arrastar por cinco a dez anos, em média.

Argumentos de acusação e defesa

Ciente da complexidade da acusação, a África do Sul construiu a argumentação de acusação a fim de demonstrar como declarações de autoridades do Estado de Israel está ligada à conduta das tropas militares na Faixa de Gaza após o 7 de outubro. Um exemplo utilizado é a declaração do ministro da Defesa, Yoav Gallant, em que ele chama os palestinos de “animais humanos” ao anunciar o corte de todos os serviços básicos (água, gás, comida e eletricidade) na Faixa de Gaza no dia 10 de outubro.

“Essas declarações genocidas não são feitas para interpretações ou racionalizações. Eles são feitos por funcionários do Estado e falam de uma política. Se não fossem pretendidos, não teriam sido feitos”, disse o time da África do Sul durante a apresentação.

Em defesa, Israel argumentou que a África do Sul desconsidera que a ofensiva sobre a Faixa de Gaza foi uma resposta à ação do grupo terrorista Hamas em 7 de outubro e evoca o direito de se defender, previsto no direito internacional. Eles dizem que o número alto de civis mortos resulta da estratégia do grupo terrorista Hamas de ter o povo palestino como “escudo humano” na Faixa de Gaza, e não de uma intenção genocida de destruir o povo palestino. “O componente-chave do genocídio, a intenção de destruir um povo no todo ou em parte, está ausente”, disse a defesa de Israel na CIJ. Israel disse agir para proteger o seu povo, relembrando a existência de reféns judeus nas mãos do grupo terrorista Hamas.

Ministro da Justiça da África do Sul, Ronald Lamola (à dir.), faz declarações a jornalistas na sede da Corte Internacional de Justiça, em Haia, na quinta-feira, 11. País afirma que Israel pratica genocídio contra povo palestino Foto: Remko De Waal / AFP

História antes do 7 de outubro

Segundo Casarões, para Israel ser considerado genocida, a África do Sul vai precisar ir além das declarações de ministros de Estado. “Uma fala isolada de ministro dificilmente vai embasar o caso de um Estado cometendo genocídio. Para você provar um genocídio, é preciso ter provas substanciosas”, explicou.

Na argumentação da quinta-feira, um aspecto importante apresentado pela África do Sul é a política histórica de Israel com relação aos palestinos, evocando a Nakba, que deslocou mais de 700 mil palestinos em 1948, no nascimento de Israel, e o bloqueio à Faixa de Gaza neste século. O país também argumenta que mesmo a ajuda humanitária que Israel diz promover na Faixa de Gaza, com construção de hospitais de campanha e permissão de entrada de caminhões, é “condizente” com o genocídio por ser insuficiente.

Para Renata Gaspar, professora de direito internacional na ESPM, a argumentação da África do Sul é forte porque demonstra que as ações de Israel com relação ao povo palestino durante toda a história demandam uma força estratégica e militar – ou seja, uma política de Estado. “O que a África do Sul tenta demonstrar é que se trata de uma política de Estado, e não apenas de um direito de defesa ou de ações de um governo”, afirmou.

Consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Tal Becker (C), no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, em imagem desta sexta-feira, 12. Israel afirma que ações na Faixa de Gaza fazem parte de direito de autodefesa Foto: REMKO DE WAAL / AFP

Na sua defesa, Israel rejeitou o argumento de histórico da África do Sul ao afirmar que o contexto imediato das acusações de genocídio foram as ações após o 7 de outubro, não a Nakba, e voltou a falar sobre o direito de autodefesa. Um aspecto importante de Israel para isso é o fato de o grupo terrorista Hamas, criado em 1987, expressar na sua carta fundadora a intenção de eliminar os judeus. “O Hamas é o verdadeiro genocida”, disse a defesa nesta sexta-feira.

O efeito político do julgamento

Um aspecto importante do julgamento é o efeito político que a Corte Internacional de Justiça tem para o futuro dos Estados. E, no caso de Israel, ser julgado como genocida ou não é ainda mais emblemático.

A definição de genocídio pela ONU foi criada no momento em que o mundo saía da Segunda Guerra. E teve a intenção, em especial, de evitar um novo holocausto. Se no passado os judeus foram assassinados em massa de uma forma intencional, agora Israel, o Estado judaico, é acusado de promover esse ato.

Segundo Renata Gaspar, um julgamento dessa natureza tende a mudar as relações internacionais. A CIJ é um órgão criado para julgar Estados, não indivíduos e organizações, e a sentença pode ter uma grande implicação para a relação de Israel com o mundo. “O que está em jogo aqui é uma política de Estado. Netanyahu ou outros membros podem ser julgados individualmente no Tribunal Penal Internacional (TPI), mas o peso do CIJ é com relação a um Estado”, explicou.

É no TPI, por exemplo, que indivíduos do grupo terrorista Hamas podem ser julgados pelos crimes cometidos no dia 7 de outubro – o que não exclui o fato de Israel também poder ter cometido crimes na sua resposta militar.

Para Guilherme Casarões, o fato do julgamento ser contra um Estado é importante para que não se banalize o termo “genocídio”. “Israel está cometendo crimes de guerra, isso é fato. Ataca civis de forma indiscriminada, hospitais e escolas. Isso se enquadra perfeitamente no crime de guerra. Mas se isso tem intencionalidade de destruir um povo como um todo, é um passo delicado a se confirmar”, afirmou.

Mesmo que as ações de um exército não ultrapassem o limiar do genocídio, elas ainda podem estar erradas. Ao não concluir que o Sudão cometeu genocídio no Darfur em 2005, a ONU afirmou que os “crimes contra a humanidade e crimes de guerra que foram cometidos (...) não pode ser menos grave e hediondo do que o genocídio”.

O que o julgamento atual já mostrou, argumentam os especialistas, é que as ações de Israel na Faixa de Gaza, hoje documentadas, já causaram dano a sua reputação. “Israel sempre teve a dificuldade de ser aceito como um Estado legítimo. Conseguiu alguns avanços dos anos 90 para cá, mas a acusação de genocídio mostra um passo atrás porque mesmo países com relações com Israel, como a África do Sul e Brasil, por exemplo, tem condicionado a sua relação a essa atuação da violência na Faixa de Gaza”, concluiu Casarões.

“Só o fato de Israel responder essa demanda da África do Sul, mostra como a balança política mudou a partir das ações. Israel precisa controlar a pressão internacional, e faz isso pela defesa na CIJ. É um julgamento que pode impulsionar muitas mudanças pretendidas em organismos internacionais”, disse Renata Gaspar.

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