Um elemento crítico do julgamento criminal de Donald Trump em Nova York é se os promotores serão capazes de amarrar de forma bem-sucedida acusações específicas contra ele — de que ele alterou registros financeiros de suas empresas — com uma conspiração mais sinistra, relacionada à eleição, pela qual ele não responde judicialmente.
O julgamento, marcado para começar dia 15 de abril, centra-se em 34 acusações contra Trump de falsificação em primeiro grau de registros empresariais, um delito que poderia resultar em seu encarceramento no complexo penitenciário de Nova York, na Ilha Rikers, ou numa prisão estadual.
O caso atraiu intensa atenção — em parte porque representa o primeiro indiciamento criminal de um ex-presidente americano na história. E também porque envolve US$ 130 mil pagos para uma atriz pornô durante a campanha presidencial de 2016, para mantê-la calada a respeito de um suposto encontro sexual com o então candidato ocorrido anos antes.
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Enquanto alguns observadores do Judiciário consideram as acusações um uso racional do código penal de Nova York, outros veem um esforço legalmente precário de atrelar fraude empresarial a tentativas de manter informações a respeito do comportamento de Trump ocultas dos eleitores.
O procurador Alvin Bragg, do Distrito de Manhattan, defendeu sua estratégia afirmando que as acusações contra Trump não são incomuns no capitalismo financeiro dos Estados Unidos e classificando as alegações como “carne de vaca no crime de colarinho branco”. Os casos incluem situações em que proprietários de negócios e empresas falsificam registros para evitar pagamentos de seguros, acobertamentos de roubos e obtenções indevidas de empréstimos federais, incluindo em programas de ajuda durante a pandemia de covid-19, de acordo com o escritório de Bragg.
Em todo o Estado de Nova York, promotores de Justiça abriram 11.663 investigações de falsificação em primeiro grau de registros empresariais de 2014 a 2023, de acordo com registros fornecidos pelo Escritório de Administração Judicial do Estado de Nova York. O escritório da Procuradoria do Distrito de Manhattan apresentou essas acusações em 437 casos na década que antecedeu o indiciamento de Trump, em abril de 2023, afirmaram procuradores em um registro judicial de novembro. Em muitas instâncias, acusações mais graves foram incluídas nos indiciamentos.
Em Manhattan, houve 42 casos em que falsificar registros foi a principal acusação — como no indiciamento de Trump — durante aproximadamente o mesmo período de tempo, de acordo com dados da Divisão de Serviços de Justiça Criminal do Estado de Nova York.
Críticos de Bragg argumentam que ele distendeu a doutrina legal de uma maneira que dificulta persuadir jurados a condenar Trump. Em Nova York, falsificar registros empresariais é um delito de menor gravidade, a não ser que os promotores consigam provar que o réu agiu com intenção de cometer um outro crime, uma situação em que a acusação pode ser qualificada como um delito de Classe E, o tipo de violação criminal menos grave previsto.
Segundo o indiciamento em Nova York, Trump enviou US$ 420 mil para Michael Cohen, seu advogado na época, como reembolso por ele ter pagado Stormy Daniels, uma atriz pornô cujo nome real é Stephanie Clifford. A quantia — US$ 130 mil para Daniels e o restante para Cohen — foi paga em 12 parcelas e falsamente registrada nos documentos internos da Trump Organization como pagamentos por serviços jurídicos.
Os promotores sugeriram que o esquema geral representou uma possível violação a leis eleitorais nacionais e estaduais, assim como a leis tributárias. Mas Trump não foi acusado de nenhum outro crime no indiciamento, o que torna as acusações de falsificação de registros empresariais mais comuns.
“Se fossem processadas criminalmente todas as corporações em Nova York que tivessem algum registro falso (…) ou dedução, nós teríamos pilhas de processos que em geral não são aceitos”, afirmou o advogado criminalista de defesa Daniel Hochheiser, de Nova York.
Os advogados de Trump afirmaram que os pagamentos a Daniels foram legítimos e realizados para proteger a família de Trump de uma relevação embaraçosa. Trump, o provável indicado do Partido Republicano para desafiar o presidente Joe Biden na eleição de novembro, acusou Bragg, que é democrata, de processá-lo juridicamente por motivações políticas.
O ex-promotor federal Renato Mariotti, especialista em casos de fraude financeira, criticou Bragg no ano passado quando as acusações foram apresentadas, afirmando que o procurador distrital não havia tipificado outros crimes que facilitaram a suposta fraude de Trump nos registros. Em uma entrevista recente, Mariotti deu crédito a Bragg por ter fornecido mais detalhes nos registros judiciais desde então.
Em fevereiro, o ministro da Suprema Corte de Nova York Juan Merchan rejeitou a tentativa de Trump de desqualificar o caso sob o argumento de que as acusações eram legalmente insuficientes. Merchan decidiu que três dos exemplos de Bragg de outros crimes que Trump pretendeu cometer ocultando os pagamentos a Cohen são “legalmente suficientes” para sustentar as acusações criminais contra o ex-presidente.
Mariotti afirmou que ainda pode ser difícil convencer jurados a concordar com uma eventual condenação de Trump.
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“Acredito que Bragg vai se fundar pesadamente nesses outros crimes, particularmente os crimes financeiros na campanha, e caracterizá-los como uma tentativa de interferência na eleição de 2016″, afirmou ele. “Apesar de haver evidência de outro crime, e isso ser algo que precisará ser corroborado por provas, em última instância não é essa a acusação contra Trump”.
O ex-conselheiro de ética na Casa Branca durante o governo Obama, Norm Eisen, crítico de Trump e proeminente apoiador dos quatro indiciamentos criminais contra ele, afirmou que o sucesso de Bragg em manter o caso aberto apesar das tentativas de Trump de desqualificá-lo demonstra a legitimidade das acusações.
“Trata-se do caso mais importante de falsificação de livros e registros na história de Nova York”, afirmou Eisen, que serviu como conselheiro-adjunto da Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados durante o primeiro processo de impeachment de Trump, em 2019. “Uma série de sucessos judiciais da Procuradoria e sua equipe deixaram claro que essa 34 acusações de interferência eleitoral são muito sérias.”
Em documento apresentado aos tribunais em novembro, o procurador distrital assistente, Christopher Conroy, disse que a promotoria de Manhattan “frequentemente” apresenta acusações de primeiro grau envolvendo a falsificação de registros de negócios. Ele citou uma série de casos antes de Bragg assumir o cargo envolvendo réus acusados de falsificação de registros com o intuito de violar leis federais.
Alguns dos casos ilustram como as acusações de falsificação são incluídas tipicamente em processos envolvendo acusações mais graves.
Dois envolviam bancos internacionais — UniCredit Bank, em 2019, e BNP Paribas, em 2014 — que foram alvo de extensas investigações federais e estaduais a respeito de alegações segundo as quais eles teriam processado transações financeiras que violaram sanções econômicas americanas proibindo negócios com países estrangeiros. Entre esses países estavam Cuba, Irã, Líbia, Myanmar, Sudão e Síria.
Ambos os bancos se declararam culpados de terem violado as sanções, e também de crimes menores, incluindo a falsificação de registros de negócios, e concordaram em pagar centenas de milhões de dólares em multas. As autoridades disseram que os bancos alteraram registros, incluindo a ocultação de informações que poderiam identificar as entidades estrangeiras, para disfarçar as transações financeiras.
Casos mais recentes abertos durante o mandato de Bragg demonstram o mesmo princípio.
No ano passado, Bragg acusou o proprietário de uma empresa de drywall de cometer fraude contra a seguradora, um delito grave classe B, e de conspiração, além da falsificação de registros de negócios, por ter supostamente fraudado o estado em US$ 3 milhões de prêmios do seguro relacionados à compensação destinada aos trabalhadores e seus benefícios por invalidez.
Também no ano passado, Bragg conseguiu a condenação de dois homens acusados de falsificação de registros de negócios por seu envolvimento em uma fraude de seguros no valor de US$ 18 milhões, no qual o valor da folha de pagamento era maquiado para reduzir as cobranças pelo seguro. No mesmo caso, dois outros homens foram condenados por fraude contra a seguradora em primeiro grau, um delito grave classe B.
Analistas jurídicos estão divididos em relação à possibilidade de Trump ser sentenciado à prisão caso seja condenado. De acordo com a lei de Nova York, um delito grave classe E não violento pode levar à sentenças de liberdade condicional ou detenção de 16 meses a 4 anos em uma prisão estadual.
Alguns analistas disseram que a idade de Trump, 77 anos, e o fato de ser réu primário provavelmente evitariam uma sentença de prisão.
O procurador de Nova York, Matthew Galluzzo, que também foi promotor de Manhattan, disse que as chances de Trump ser preso aumentariam substancialmente se ele desqualificar publicamente o júri ou o juiz, ou se não demonstrar remorso diante de uma condenação.
“Ele corre o risco de ser preso se perder feio”, disse Galluzzo, “e se desrespeitar o processo, chamando-o de caça às bruxas, desqualificando a imparcialidade do juiz e alegando que nada fez de errado. O juiz pode então decidir, ‘Pois bem, vamos ver o que você acha de passar 90 dias em Rikers”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL