Na quinta-feira, a Suprema Corte reuniu-se para discutir se Donald Trump desfruta de imunidade jurídica por tentar reverter o resultado da eleição de 2020, quando era presidente. Mesmo se os ministros eventualmente decidirem contra ele, os progressistas não deveriam celebrar a Constituição enquanto o melhor bastião contra Trump. Na realidade, a Carta — por razões que transcendem Trump, o precedem há muito e poderiam seguir vigorando para muito além de sua existência — torna nossa democracia quase inexequível.
Por anos, sempre que Trump ameaçou princípios democráticos, os progressistas apelaram para a Constituição em busca de ajuda, procurando no texto ferramentas que ou poriam fim à sua carreira política ou pelo menos conteriam sua corrupção. Ele foi processado sob cláusulas de proveitos da Constituição. Sofreu dois impeachments. Houve uma votação no Congresso instando o então vice-presidente Mike Pence a invocar a 25.ª Emenda para proclamar Trump inapto para a função. Mais recentemente, advogados argumentaram que os Estados poderiam usar a 14.ª Emenda para remover Trump das cédulas eleitorais em razão de seu papel no ataque de 6 de janeiro de 2021.
Todos esses esforços foram motivados por um desejo louvável de responsabilizar Trump por suas ações. Todos falharam. E conforme nos dirigimos para o ardor de uma temporada eleitoral, nós precisamos encarar uma verdade simples: a Constituição não vai nos salvar de Donald Trump. Pelo contrário, para virar a página de Trump — e da política que ele engendrou — será necessário mudar a Carta fundamentalmente.
Não se trata apenas de Trump nunca ter sido capaz de se eleger presidente não fosse o Colégio Eleitoral. Pensem nos motivos daqueles esforços anteriores de usar a Constituição para responsabilizar Trump terem fracassado. Os processos de impeachment ruíram no Senado porque a Casa confere poder desigualmente para Estados rurais e conservadores. A Suprema Corte foi capaz não apenas de manter Trump nas cédulas no Colorado, mas também de estreitar as circunstâncias nas quais a desqualificação poderia ser usada, porque os republicanos conseguiram nomear a maioria dos ministros do tribunal apesar de perder no voto popular em sete das ultimas oito eleições presidenciais.
Por anos, os progressistas foram reticentes em reconhecer esses fatos, talvez por força do hábito. Enquanto a maioria dos países considera suas Constituições regras para o governo — que podem ficar ultrapassadas e ser reformuladas se necessário — nossos políticos contam rotineiramente a história de um excepcionalismo americano arraigado na nossa Constituição. A Carta é um documento sagrado que, conforme Barack Obama colocou certa vez, “lançou o improvável experimento dos Estados Unidos na democracia” fundamentado em princípios comuns de igualdade, autogoverno e liberdades pessoais.
Nestes anos Trump, à medida que pesquisas mostram alguns americanos se afastando desses ideais comuns, os progressistas estão se apegando com mais força ainda à Constituição enquanto um símbolo sob ameaça.
Seis meses atrás, por exemplo, quando Trump conclamou o “extermínio” das atuais regras eleitorais, os progressistas ficaram compreensivelmente ultrajados. O deputado Don Beyer, de Virgínia, rotulou-o como um “inimigo da Constituição”. O porta-voz da Casa Branca Andrew Bates proclamou que “atacar” o “sacrossanto” documento era uma “execração para a alma da nossa nação”. O problema é que esses votos de fidelidade à Constituição não são capazes de substituir o convencimento real do público a respeito da importância da democracia inclusiva.
Unir-se em torno da Constituição significa aceitar o mesmo texto que provoca essas patologias. Suas regras fortalecem a mão dos indiferentes ou até de quem se opõe ao princípio de uma pessoa, um voto. Finalmente, essas regras facilitam o caminho para a direita trumpista chegar ao poder sem conquistar a maioria dos eleitores. E levantam numerosas barreiras para responsabilizações — mesmo quando presidentes tentam subverter eleições.
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O choque ao sistema constitucional que Trump representa não começou e não terminará com ele. A melhor — e talvez única — maneira de conter a política que o cerca é reformar o governo para que ele passe a representar muito mais a vontade dos americanos. O objetivo é evitar que qualquer autoritário chegue ao poder sem obter a maioria dos votos dos cidadãos e impregnar instituições poderosas de juízes e autoridades absurdamente fora de sintonia com o público. Mas isso requer mudanças extensas nos nossos sistemas jurídico e político, incluindo na própria Constituição.
Nós precisamos de novas leis de financiamento de campanha e mais direitos eleitorais. Precisamos pôr fim ao mecanismo de obstrução no Senado, eliminar o Colégio Eleitoral, combater manipulações de circunscrições eleitorais e interferências partidárias em processos de votação, adotar distritos legislativos com vários membros e acrescentar novos Estados, como Washington, DC. Precisamos reduzir o poder do Senado, talvez transformando a Casa em um “conselho de revisão”, mais cerimonial, conforme propôs Jamelle Bouie.
Uma reforma dessa magnitude exige uma reação contra o imenso poder da Suprema Corte por meio de medidas como limites de duração de mandato dos ministros e uma expansão no número de magistrados do tribunal. Um processo mais simples de formulação e aprovação de emendas constitucionais daria aos americanos poder para atualizar suas instituições e incorporar novos direitos à Carta, em vez de ter que depender apenas do que os magistrados decidem.
Sem dúvida tais mudanças podem parecer infactíveis politicamente. Mas atenderiam anseios de americanos preocupados a respeito dos perigos representados por Trump levar a sério uma agenda tão abrangente, se não por outra razão porque muitos na direita já estão trabalhando em suas próprias reformas constitucionais.
Grupos como a Convenção de Estados (que tem apoio veemente do governador da Flórida, Ron DeSantis) foram bem-sucedidos em fazer 19 dos 34 Estados exigidos pelo Artigo 5.º da Constituição concordar com a convocação de uma nova assembleia constituinte. O pacote de mudanças potenciais da Convenção de Estados inclui conferir “a uma maioria simples de Estados” a capacidade de “rescindir ações do Congresso, do presidente ou de agências governamentais”, dando poder a autoridades republicanas de anular qualquer política à qual se oponham, independentemente dela desfrutar ou não de vasto apoio popular. Conforme escreveu David Pozen, da Faculdade de Direito de Columbia, a direita imaginou até como orientar essa segunda convenção de maneira a garantir que autoridades estaduais, de novo desproporcionalmente republicanas, controlem o que é proposto e o processo de votação.
Esses esforços persistirão mesmo depois de Trump deixar o palco da política. E enquanto os progressistas se recusarem a encarar o que precisa ser feito para consertar a Constituição os apoiadores do ex-presidente e grupos como a Convenção de Estados controlarão esse debate.
Cabe agora aos americanos evitar depreender lições erradas deste momento. Trump poderá perder nas urnas ou ser condenado em um dos quatro indiciamentos criminais a que responde, incluindo o caso cujo julgamento começou este mês em Manhattan. Se ele for responsabilizado, não terá sido porque a Constituição nos salvou, dadas todas as suas patologias. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO