Americas Quarterly: Por que Diaz-Canel ainda tem dificuldades em Cuba?


Em lugar de seguir o caminho de Mikhail Gorbachev, que iniciou um período de liberalização política e econômica na União Soviética nos anos 80, Díaz-Canel copia a reação de Fidel naquela mesma época

Por Javier Corrales, Scot Brasesco e Americas Quarterly

Desde que assumiu a presidência em 2018, Miguel Díaz-Canel aspira ser o Fidel Castro da década de 80, abandonando as reformas iniciadas por Raúl Castro e apostando no pior das tradições autocráticas do regime – com poucas inovações. O que Díaz-Canel não esperava é que aplicar a receita de Fidel Castro no século 21 produziria um efeito contrário – como ocorreu este mês e continuará ocorrendo.

Hoje a sociedade cubana é notoriamente diferente. A nova geração pouco ganhou, se é que ganhou alguma coisa, com a revolução. E está bem mais globalizada, valoriza mais as relações com estrangeiros, está mais conectada na internet e talvez, o que é mais importante, menos temerosa.

Os protestos de 11 de julho, os maiores já vistos em décadas, suscitaram a pergunta sobre o que causa rebeliões em contextos autoritários. Elas ocorrem porque o regime relaxou um pouco, oferecendo novas oportunidades para grupos descontentes se mobilizarem? Ou porque o regime endureceu as restrições políticas, levando a sociedade civil a protestar numa desesperada busca de oxigênio?

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Raúl Castro (D) apresenta o novo secretário do Partido Comunista, que o sucederá, o presidente Miguel Diaz-Canel Foto: Ariel Ley Royero/ACN via AP

O caso de Cuba confirma a última tese de forma retumbante. Os protestos ocorreram não porque o regime estava dando mais espaço aos cidadãos, mas exatamente porque estava tirando o espaço deles. Seria um erro se os líderes cubanos acreditassem que mais restrições sufocarão a agitação.

Em todos os lugares os protestos são sempre motivados por queixas e em Cuba as queixas são muitas. Mas em contextos autoritários, eles também decorrem de mudanças das características do regime. Às vezes, como se verificou no bloco soviético e na China no final dos anos 80, as turbulências surgiram porque os líderes introduziram reformas liberais que resultaram no aumento das expectativas e mobilizações cívicas. À primeira vista, há algumas evidências de uma flexibilização do regime. Sob o governo de Díaz-Canel, o Estado aprovou uma nova Constituição garantindo o direito de manifestações públicas e legalizando o setor privado. O Estado também aprovou o acesso mais difuso da internet e, no início deste ano, aliviou as restrições econômicas para os autônomos.

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Mas essas medidas de avanço foram fracas comparadas com as muitas de retrocesso.

O descambar autocrático de Cuba começou logo que Díaz-Canel assumiu o cargo. Em 2018 ele assinou o Decreto 349, ordenando que todos os eventos culturais, privados e públicos, teriam de ser aprovados pelo Ministério da Cultura, e proibiu o uso de símbolos não patrióticos. Essa foi a mais grave medida repressiva contra o setor mais aberto da sociedade cubana desde os anos 90, a comunidade artística.

Em 2019, Díaz-Canel passou a restringir as mesmas liberdades online que havia assegurado. Aprovou o Decreto-lei 370, proibindo os cubanos de armazenarem suas informações em servidores estrangeiros, que é uma necessidade da pequena e ilegal imprensa independente. 

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O Decreto-lei 389, sancionado no mesmo ano, permitiu ao governo realizar a fiscalização eletrônica, sem necessidade de um mandado, e também de qualquer prova obtida eletronicamente para ser admitida pelos tribunais.

E, embora alguns tenham elogiado os dispositivos mais liberais da Constituição, o projeto final adotou reformas muito mais modestas do que o plano original. No final, o Estado de um único partido foi reafirmado. A palavra comunismo foi reintroduzida. E nada foi feito para mudar o extremamente repressivo Código Penal de 1987.

Esse Código Penal exclui abertamente a liberdade de associação e expressão (artigos 208 e 103). Mais do que a Constituição, é esse código que governa a atividade da polícia e as decisões dos tribunais. A polícia cubana propriamente dita é uma organização que tem como modelo a eficientemente hedionda polícia de segurança da antiga Alemanha Oriental, a Stasi.

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Cuba de volta ao século 20

O governo até este ano também vinha voltando atrás nas reformas mais amplas anunciadas por Raúl Castro em 2011, os chamados Lineamientos. Alegando que havia erros nas reformas, Diaz-Canel introduziu um grande número de regulamentos rígidos em 2018 com o fim de limitar o crescimento do setor autônomo.

O regime também recuou no campo dos direitos LGBTQ. Durante o governo de Raúl Castro, Cuba registrou um certo avanço, quando a irmã dele, Mariela Castro, dirigiu um Centro de Educação Sexual, que apoiava a expansão dos direitos LGBT. 

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Diaz-Canel, pelo contrário, se associou a líderes religiosos para bloquear uma emenda constitucional autorizando o casamento de pessoas do mesmo sexo e, em 2019, com apoio de Mariela, o governo cancelou a Parada Gay de Cuba e reprimiu os que tentaram realizar um desfile alternativo. Apesar de toda promoção de apoio à comunidade gay, os cubanos LGBT continuam a ser demitidos, excluídos ou atacados e a polícia rotineiramente ignora crimes contra os membros dessa comunidade.

E quando a pandemia deveria (como ocorreu no início) oferecer uma oportunidade para uma nação com o maior número de médicos per capita tranquilizar a população, o presidente logo começou a usar os protocolos exigidos no combate ao coronavírus como desculpa para adotar medidas repressivas contra figuras da oposição. Acusou manifestantes pacíficos, dissidentes e ativistas de violarem as diretrizes de segurança contra a covid-19. Freedom House, organização que monitora as liberdades, rebaixou ainda mais Cuba durante a pandemia em razão da intensificação da repressão.

Tudo isso não é surpresa. Antes de ser indicado à presidência, foi vazado um vídeo de 2017 em que Diaz-Canel, numa reunião a portas fechadas com autoridades comunistas, criticava a relação mais amigável entre (Barack) Obama e Raúl e preconizava uma posição mais dura contra os dissidentes. Chegou até a defender uma censura da imprensa – sinal de que um governo no estilo de Fidel era iminente.

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Mas ele não só tornou Cuba novamente numa autocracia, como também reforçou o sistema da supremacia branca. Embora o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos tenha emitido declaração acusando o embargo americano, e não o governo cubano, pelos protestos de julho, a verdade é que o regime cubano preserva muitos dos pilares que sustentam a supremacia branca que o movimento BLM vem combatendo. Se de um lado os cubanos negros estão bem representados na Assembleia Nacional, a instituição não tem nenhum poder. Reúne-se somente duas vezes no ano e basicamente ratifica automaticamente o que vem da alta cúpula do governo.

O poder de fato é do presidente e seus assessores próximos. A vasta maioria sempre foi branca. E esse grupo tem reforçado um sistema econômico que é abertamente contra os negros.

As disparidades raciais de riqueza são enormes. Os cubanos brancos têm cinco mais vezes probabilidade de ter um conta bancária do que os negros. Controlam 98% das empresas privadas cubanas. A única forma de financiamento privado permitida pelo governo são as remessas de dinheiro por parte de parentes no exterior, e assim mesmo os brancos recebem 78% desse dinheiro. Mais de dois terços de cubanos negros ou mestiços ainda não têm acesso à internet. E são excluídos das mais altas posições no setor público.

Talvez o único campo em que os afro-cubanos conseguem ter alguma influência é no setor cultural e artístico independente. Um setor que Díaz-Canel visou diretamente com seu Decreto 349.

Em lugar de seguir o caminho de Mikhail Gorbachev, que iniciou um período de liberalização política e econômica na União Soviética nos anos 80, Díaz-Canel copia a reação de Fidel naquela mesma época. Nessa década, Fidel temia tanto as implicações de um momento similar em Cuba que decidiu ir no sentido anti-horário, impondo a chamada Campanha de Retificação, com algumas das restrições mais draconianas no bloco soviético na época. As mortes pelos pelotões de fuzilamento, em 1989, de quatro oficiais militares condecorados, com base em acusações duvidosas de traição, foram a manifestação mais evidente do pânico de Fidel daquela época.

A intransigência de Díaz-Canel não é exatamente uma réplica do passado. Ele atualizou alguns aspectos do modelo fidelista. Por exemplo, a manutenção de pessoas presas por um longo tempo deu lugar a prisões por tempo mais curto. Mas não nos enganemos: a dissidência política aberta ainda é um crime e mais de 30 mil pessoas foram detidas nos últimos cinco anos, mesmo se presas por um tempo mais curto. Se o regime não agir e reverter a autocratização de Díaz-Canel, os cubanos continuarão a dizer, ¡se acabó!/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*CORRALES É PROFESSOR DE CIÊNCIAS POLÍTICAS NO AMHERST COLLEGE, MASSACHUSETTS. BRASESCO É PESQUISADOR SÊNIOR NO AMHERST COLLEGE.

Desde que assumiu a presidência em 2018, Miguel Díaz-Canel aspira ser o Fidel Castro da década de 80, abandonando as reformas iniciadas por Raúl Castro e apostando no pior das tradições autocráticas do regime – com poucas inovações. O que Díaz-Canel não esperava é que aplicar a receita de Fidel Castro no século 21 produziria um efeito contrário – como ocorreu este mês e continuará ocorrendo.

Hoje a sociedade cubana é notoriamente diferente. A nova geração pouco ganhou, se é que ganhou alguma coisa, com a revolução. E está bem mais globalizada, valoriza mais as relações com estrangeiros, está mais conectada na internet e talvez, o que é mais importante, menos temerosa.

Os protestos de 11 de julho, os maiores já vistos em décadas, suscitaram a pergunta sobre o que causa rebeliões em contextos autoritários. Elas ocorrem porque o regime relaxou um pouco, oferecendo novas oportunidades para grupos descontentes se mobilizarem? Ou porque o regime endureceu as restrições políticas, levando a sociedade civil a protestar numa desesperada busca de oxigênio?

Raúl Castro (D) apresenta o novo secretário do Partido Comunista, que o sucederá, o presidente Miguel Diaz-Canel Foto: Ariel Ley Royero/ACN via AP

O caso de Cuba confirma a última tese de forma retumbante. Os protestos ocorreram não porque o regime estava dando mais espaço aos cidadãos, mas exatamente porque estava tirando o espaço deles. Seria um erro se os líderes cubanos acreditassem que mais restrições sufocarão a agitação.

Em todos os lugares os protestos são sempre motivados por queixas e em Cuba as queixas são muitas. Mas em contextos autoritários, eles também decorrem de mudanças das características do regime. Às vezes, como se verificou no bloco soviético e na China no final dos anos 80, as turbulências surgiram porque os líderes introduziram reformas liberais que resultaram no aumento das expectativas e mobilizações cívicas. À primeira vista, há algumas evidências de uma flexibilização do regime. Sob o governo de Díaz-Canel, o Estado aprovou uma nova Constituição garantindo o direito de manifestações públicas e legalizando o setor privado. O Estado também aprovou o acesso mais difuso da internet e, no início deste ano, aliviou as restrições econômicas para os autônomos.

Mas essas medidas de avanço foram fracas comparadas com as muitas de retrocesso.

O descambar autocrático de Cuba começou logo que Díaz-Canel assumiu o cargo. Em 2018 ele assinou o Decreto 349, ordenando que todos os eventos culturais, privados e públicos, teriam de ser aprovados pelo Ministério da Cultura, e proibiu o uso de símbolos não patrióticos. Essa foi a mais grave medida repressiva contra o setor mais aberto da sociedade cubana desde os anos 90, a comunidade artística.

Em 2019, Díaz-Canel passou a restringir as mesmas liberdades online que havia assegurado. Aprovou o Decreto-lei 370, proibindo os cubanos de armazenarem suas informações em servidores estrangeiros, que é uma necessidade da pequena e ilegal imprensa independente. 

O Decreto-lei 389, sancionado no mesmo ano, permitiu ao governo realizar a fiscalização eletrônica, sem necessidade de um mandado, e também de qualquer prova obtida eletronicamente para ser admitida pelos tribunais.

E, embora alguns tenham elogiado os dispositivos mais liberais da Constituição, o projeto final adotou reformas muito mais modestas do que o plano original. No final, o Estado de um único partido foi reafirmado. A palavra comunismo foi reintroduzida. E nada foi feito para mudar o extremamente repressivo Código Penal de 1987.

Esse Código Penal exclui abertamente a liberdade de associação e expressão (artigos 208 e 103). Mais do que a Constituição, é esse código que governa a atividade da polícia e as decisões dos tribunais. A polícia cubana propriamente dita é uma organização que tem como modelo a eficientemente hedionda polícia de segurança da antiga Alemanha Oriental, a Stasi.

Cuba de volta ao século 20

O governo até este ano também vinha voltando atrás nas reformas mais amplas anunciadas por Raúl Castro em 2011, os chamados Lineamientos. Alegando que havia erros nas reformas, Diaz-Canel introduziu um grande número de regulamentos rígidos em 2018 com o fim de limitar o crescimento do setor autônomo.

O regime também recuou no campo dos direitos LGBTQ. Durante o governo de Raúl Castro, Cuba registrou um certo avanço, quando a irmã dele, Mariela Castro, dirigiu um Centro de Educação Sexual, que apoiava a expansão dos direitos LGBT. 

Diaz-Canel, pelo contrário, se associou a líderes religiosos para bloquear uma emenda constitucional autorizando o casamento de pessoas do mesmo sexo e, em 2019, com apoio de Mariela, o governo cancelou a Parada Gay de Cuba e reprimiu os que tentaram realizar um desfile alternativo. Apesar de toda promoção de apoio à comunidade gay, os cubanos LGBT continuam a ser demitidos, excluídos ou atacados e a polícia rotineiramente ignora crimes contra os membros dessa comunidade.

E quando a pandemia deveria (como ocorreu no início) oferecer uma oportunidade para uma nação com o maior número de médicos per capita tranquilizar a população, o presidente logo começou a usar os protocolos exigidos no combate ao coronavírus como desculpa para adotar medidas repressivas contra figuras da oposição. Acusou manifestantes pacíficos, dissidentes e ativistas de violarem as diretrizes de segurança contra a covid-19. Freedom House, organização que monitora as liberdades, rebaixou ainda mais Cuba durante a pandemia em razão da intensificação da repressão.

Tudo isso não é surpresa. Antes de ser indicado à presidência, foi vazado um vídeo de 2017 em que Diaz-Canel, numa reunião a portas fechadas com autoridades comunistas, criticava a relação mais amigável entre (Barack) Obama e Raúl e preconizava uma posição mais dura contra os dissidentes. Chegou até a defender uma censura da imprensa – sinal de que um governo no estilo de Fidel era iminente.

Mas ele não só tornou Cuba novamente numa autocracia, como também reforçou o sistema da supremacia branca. Embora o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos tenha emitido declaração acusando o embargo americano, e não o governo cubano, pelos protestos de julho, a verdade é que o regime cubano preserva muitos dos pilares que sustentam a supremacia branca que o movimento BLM vem combatendo. Se de um lado os cubanos negros estão bem representados na Assembleia Nacional, a instituição não tem nenhum poder. Reúne-se somente duas vezes no ano e basicamente ratifica automaticamente o que vem da alta cúpula do governo.

O poder de fato é do presidente e seus assessores próximos. A vasta maioria sempre foi branca. E esse grupo tem reforçado um sistema econômico que é abertamente contra os negros.

As disparidades raciais de riqueza são enormes. Os cubanos brancos têm cinco mais vezes probabilidade de ter um conta bancária do que os negros. Controlam 98% das empresas privadas cubanas. A única forma de financiamento privado permitida pelo governo são as remessas de dinheiro por parte de parentes no exterior, e assim mesmo os brancos recebem 78% desse dinheiro. Mais de dois terços de cubanos negros ou mestiços ainda não têm acesso à internet. E são excluídos das mais altas posições no setor público.

Talvez o único campo em que os afro-cubanos conseguem ter alguma influência é no setor cultural e artístico independente. Um setor que Díaz-Canel visou diretamente com seu Decreto 349.

Em lugar de seguir o caminho de Mikhail Gorbachev, que iniciou um período de liberalização política e econômica na União Soviética nos anos 80, Díaz-Canel copia a reação de Fidel naquela mesma época. Nessa década, Fidel temia tanto as implicações de um momento similar em Cuba que decidiu ir no sentido anti-horário, impondo a chamada Campanha de Retificação, com algumas das restrições mais draconianas no bloco soviético na época. As mortes pelos pelotões de fuzilamento, em 1989, de quatro oficiais militares condecorados, com base em acusações duvidosas de traição, foram a manifestação mais evidente do pânico de Fidel daquela época.

A intransigência de Díaz-Canel não é exatamente uma réplica do passado. Ele atualizou alguns aspectos do modelo fidelista. Por exemplo, a manutenção de pessoas presas por um longo tempo deu lugar a prisões por tempo mais curto. Mas não nos enganemos: a dissidência política aberta ainda é um crime e mais de 30 mil pessoas foram detidas nos últimos cinco anos, mesmo se presas por um tempo mais curto. Se o regime não agir e reverter a autocratização de Díaz-Canel, os cubanos continuarão a dizer, ¡se acabó!/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*CORRALES É PROFESSOR DE CIÊNCIAS POLÍTICAS NO AMHERST COLLEGE, MASSACHUSETTS. BRASESCO É PESQUISADOR SÊNIOR NO AMHERST COLLEGE.

Desde que assumiu a presidência em 2018, Miguel Díaz-Canel aspira ser o Fidel Castro da década de 80, abandonando as reformas iniciadas por Raúl Castro e apostando no pior das tradições autocráticas do regime – com poucas inovações. O que Díaz-Canel não esperava é que aplicar a receita de Fidel Castro no século 21 produziria um efeito contrário – como ocorreu este mês e continuará ocorrendo.

Hoje a sociedade cubana é notoriamente diferente. A nova geração pouco ganhou, se é que ganhou alguma coisa, com a revolução. E está bem mais globalizada, valoriza mais as relações com estrangeiros, está mais conectada na internet e talvez, o que é mais importante, menos temerosa.

Os protestos de 11 de julho, os maiores já vistos em décadas, suscitaram a pergunta sobre o que causa rebeliões em contextos autoritários. Elas ocorrem porque o regime relaxou um pouco, oferecendo novas oportunidades para grupos descontentes se mobilizarem? Ou porque o regime endureceu as restrições políticas, levando a sociedade civil a protestar numa desesperada busca de oxigênio?

Raúl Castro (D) apresenta o novo secretário do Partido Comunista, que o sucederá, o presidente Miguel Diaz-Canel Foto: Ariel Ley Royero/ACN via AP

O caso de Cuba confirma a última tese de forma retumbante. Os protestos ocorreram não porque o regime estava dando mais espaço aos cidadãos, mas exatamente porque estava tirando o espaço deles. Seria um erro se os líderes cubanos acreditassem que mais restrições sufocarão a agitação.

Em todos os lugares os protestos são sempre motivados por queixas e em Cuba as queixas são muitas. Mas em contextos autoritários, eles também decorrem de mudanças das características do regime. Às vezes, como se verificou no bloco soviético e na China no final dos anos 80, as turbulências surgiram porque os líderes introduziram reformas liberais que resultaram no aumento das expectativas e mobilizações cívicas. À primeira vista, há algumas evidências de uma flexibilização do regime. Sob o governo de Díaz-Canel, o Estado aprovou uma nova Constituição garantindo o direito de manifestações públicas e legalizando o setor privado. O Estado também aprovou o acesso mais difuso da internet e, no início deste ano, aliviou as restrições econômicas para os autônomos.

Mas essas medidas de avanço foram fracas comparadas com as muitas de retrocesso.

O descambar autocrático de Cuba começou logo que Díaz-Canel assumiu o cargo. Em 2018 ele assinou o Decreto 349, ordenando que todos os eventos culturais, privados e públicos, teriam de ser aprovados pelo Ministério da Cultura, e proibiu o uso de símbolos não patrióticos. Essa foi a mais grave medida repressiva contra o setor mais aberto da sociedade cubana desde os anos 90, a comunidade artística.

Em 2019, Díaz-Canel passou a restringir as mesmas liberdades online que havia assegurado. Aprovou o Decreto-lei 370, proibindo os cubanos de armazenarem suas informações em servidores estrangeiros, que é uma necessidade da pequena e ilegal imprensa independente. 

O Decreto-lei 389, sancionado no mesmo ano, permitiu ao governo realizar a fiscalização eletrônica, sem necessidade de um mandado, e também de qualquer prova obtida eletronicamente para ser admitida pelos tribunais.

E, embora alguns tenham elogiado os dispositivos mais liberais da Constituição, o projeto final adotou reformas muito mais modestas do que o plano original. No final, o Estado de um único partido foi reafirmado. A palavra comunismo foi reintroduzida. E nada foi feito para mudar o extremamente repressivo Código Penal de 1987.

Esse Código Penal exclui abertamente a liberdade de associação e expressão (artigos 208 e 103). Mais do que a Constituição, é esse código que governa a atividade da polícia e as decisões dos tribunais. A polícia cubana propriamente dita é uma organização que tem como modelo a eficientemente hedionda polícia de segurança da antiga Alemanha Oriental, a Stasi.

Cuba de volta ao século 20

O governo até este ano também vinha voltando atrás nas reformas mais amplas anunciadas por Raúl Castro em 2011, os chamados Lineamientos. Alegando que havia erros nas reformas, Diaz-Canel introduziu um grande número de regulamentos rígidos em 2018 com o fim de limitar o crescimento do setor autônomo.

O regime também recuou no campo dos direitos LGBTQ. Durante o governo de Raúl Castro, Cuba registrou um certo avanço, quando a irmã dele, Mariela Castro, dirigiu um Centro de Educação Sexual, que apoiava a expansão dos direitos LGBT. 

Diaz-Canel, pelo contrário, se associou a líderes religiosos para bloquear uma emenda constitucional autorizando o casamento de pessoas do mesmo sexo e, em 2019, com apoio de Mariela, o governo cancelou a Parada Gay de Cuba e reprimiu os que tentaram realizar um desfile alternativo. Apesar de toda promoção de apoio à comunidade gay, os cubanos LGBT continuam a ser demitidos, excluídos ou atacados e a polícia rotineiramente ignora crimes contra os membros dessa comunidade.

E quando a pandemia deveria (como ocorreu no início) oferecer uma oportunidade para uma nação com o maior número de médicos per capita tranquilizar a população, o presidente logo começou a usar os protocolos exigidos no combate ao coronavírus como desculpa para adotar medidas repressivas contra figuras da oposição. Acusou manifestantes pacíficos, dissidentes e ativistas de violarem as diretrizes de segurança contra a covid-19. Freedom House, organização que monitora as liberdades, rebaixou ainda mais Cuba durante a pandemia em razão da intensificação da repressão.

Tudo isso não é surpresa. Antes de ser indicado à presidência, foi vazado um vídeo de 2017 em que Diaz-Canel, numa reunião a portas fechadas com autoridades comunistas, criticava a relação mais amigável entre (Barack) Obama e Raúl e preconizava uma posição mais dura contra os dissidentes. Chegou até a defender uma censura da imprensa – sinal de que um governo no estilo de Fidel era iminente.

Mas ele não só tornou Cuba novamente numa autocracia, como também reforçou o sistema da supremacia branca. Embora o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos tenha emitido declaração acusando o embargo americano, e não o governo cubano, pelos protestos de julho, a verdade é que o regime cubano preserva muitos dos pilares que sustentam a supremacia branca que o movimento BLM vem combatendo. Se de um lado os cubanos negros estão bem representados na Assembleia Nacional, a instituição não tem nenhum poder. Reúne-se somente duas vezes no ano e basicamente ratifica automaticamente o que vem da alta cúpula do governo.

O poder de fato é do presidente e seus assessores próximos. A vasta maioria sempre foi branca. E esse grupo tem reforçado um sistema econômico que é abertamente contra os negros.

As disparidades raciais de riqueza são enormes. Os cubanos brancos têm cinco mais vezes probabilidade de ter um conta bancária do que os negros. Controlam 98% das empresas privadas cubanas. A única forma de financiamento privado permitida pelo governo são as remessas de dinheiro por parte de parentes no exterior, e assim mesmo os brancos recebem 78% desse dinheiro. Mais de dois terços de cubanos negros ou mestiços ainda não têm acesso à internet. E são excluídos das mais altas posições no setor público.

Talvez o único campo em que os afro-cubanos conseguem ter alguma influência é no setor cultural e artístico independente. Um setor que Díaz-Canel visou diretamente com seu Decreto 349.

Em lugar de seguir o caminho de Mikhail Gorbachev, que iniciou um período de liberalização política e econômica na União Soviética nos anos 80, Díaz-Canel copia a reação de Fidel naquela mesma época. Nessa década, Fidel temia tanto as implicações de um momento similar em Cuba que decidiu ir no sentido anti-horário, impondo a chamada Campanha de Retificação, com algumas das restrições mais draconianas no bloco soviético na época. As mortes pelos pelotões de fuzilamento, em 1989, de quatro oficiais militares condecorados, com base em acusações duvidosas de traição, foram a manifestação mais evidente do pânico de Fidel daquela época.

A intransigência de Díaz-Canel não é exatamente uma réplica do passado. Ele atualizou alguns aspectos do modelo fidelista. Por exemplo, a manutenção de pessoas presas por um longo tempo deu lugar a prisões por tempo mais curto. Mas não nos enganemos: a dissidência política aberta ainda é um crime e mais de 30 mil pessoas foram detidas nos últimos cinco anos, mesmo se presas por um tempo mais curto. Se o regime não agir e reverter a autocratização de Díaz-Canel, os cubanos continuarão a dizer, ¡se acabó!/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*CORRALES É PROFESSOR DE CIÊNCIAS POLÍTICAS NO AMHERST COLLEGE, MASSACHUSETTS. BRASESCO É PESQUISADOR SÊNIOR NO AMHERST COLLEGE.

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