Análise: A política externa de Biden


Se vencer a eleição, candidato democrata terá como um de seus maiores desafios a reorganização dos interesses estratégicos do país em várias frentes

Por Hussein Kalout

Desde que assumiu a Casa Branca, em 2017, Donald Trump mudou os paradigmas da inserção internacional dos EUA. O afastamento de Washington de seus principais aliados europeus e a falta de rumo na política para o Oriente Médio são ilustrativos de uma política que tende a gerar vácuo de poder e diminuir a importância relativa dos EUA em diversos tabuleiros das relações internacionais.

Se vencer a eleição presidencial americana deste ano, o candidato democrata Joe Biden terá como um de seus maiores desafios a reorganização dos interesses estratégicos da política externa americana em variadas frentes. Trata-se de uma tarefa hercúlea de reconstruir uma estratégia coerente em um momento de crescentes desafios estratégicos, econômicos, sanitários e tecnológicos.

O candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden Foto: Spencer Platt/Getty Images/AFP
continua após a publicidade

De partida, a diplomacia de Biden terá como ponto vital a revitalização do papel do Departamento de Estado e de seu quadro técnico-profissional para, na sequência, recuperar a credibilidade do país - perdida em função da baixa qualidade estratégica da diplomacia transacional empregada da administração Trump.

Biden terá como missão precípua restaurar as relações com a Europa e, em particular, com a França e a Alemanha. O enfraquecimento da Otan promovido por Trump foi um prato cheio para adversários geopolíticos, em particular a Rússia.

Dois projetos exitosos que marcaram a gestão de Barack Obama - e que contaram com o engajamento de Joe Biden como Vice-Presidente - foram o acordo nuclear do P5+1 com o Irã e o Acordo de Paris sobre o meio ambiente. Trump se incumbiu de destruir o primeiro e retirar os EUA do segundo. Para quem conhece bem a matéria, obliterar o acordo iraniano nada tem a ver com o fortalecimento da segurança nacional americana ou com a segurança internacional per se. Muito pelo contrário!

continua após a publicidade

No fundo, Trump queria desmantelar o legado e as principais conquistas da gestão de seu antecessor. A sua pretensão era dar uma lição de genialidade geopolítica, que seria alcançar um "magnânimo" acordo nuclear com Coreia do Norte - para demonstrar que seria capaz de alcançar o insuperável com Pyongyang -, porém, fracassou. Ao fim e ao cabo, Trump está a 99 dias de disputar a reeleição sem haver logrado nenhuma conquista significativa para a diplomacia de seu país - no campo securitário ficou o rastro de fracassos que Biden, se vencer, terá de reorganizar.

O seu método disruptivo levou à saída dos EUA do mais importante acordo climático da Nações Unidas das últimas décadas. Ao retirar seu país do Acordo de Paris, Trump não estava defendendo nem o lema "America First" e nem o interesse do produtor rural do sul ou do meio-oeste americano. Essa decisão somente fortaleceu a China, a Rússia e todos os países que já não desejavam empenhar o seu compromisso com a redução da emissão de gases de efeito estufa. Da COP-21 de Paris para os dias atuais, houve mais recuos do que avanços em matéria proteção do meio ambiente e da biodiversidade.

Ao longo dos dois mandatos de Obama à frente da Casa Branca, Joe Biden atuou como baluarte no processo de aproximação e mitigação de assimetrias políticas entre os EUA e os países latino-americanos. Com Cuba chegou-se a um entendimento histórico. Na Colômbia, os EUA apoiaram, ainda que nem sempre de forma direta, o plano de paz do ex-presidente Juan Manuel Santos com as FARCS. Com a Venezuela, apesar da rejeição ao regime chavista, a administração Obama-Biden sempre foi cuidadosa no trato da matéria e jamais aludiu à possibilidade de intervenção armada no país sul-americano. Da relação dos EUA com a América Latina sob Trump, conclui-se que o saldo é pífio!

continua após a publicidade

Por fim, o embate com a China. Se Pequim está mais forte e mais influente hoje é porque a atual administração falhou em sua estratégia de se contrapor ao poderio chinês. A guerra comercial que Trump promove tem gerado tensionamento, mas dificilmente limitará o avanço dos chineses. A contenção da China depende da construção de coalizões amplas e de alianças estratégicas. É ilusão acreditar que haverá um mundo sem China ou com uma China fraca como Trump quer crer (ou como Trump quer que seus partidários acreditem).

A cada equívoco de Trump, a China avança pacientemente as suas peças no tabuleiro e, especialmente, no sistema multilateral. Das quinze agências das Nações Unidas, os chineses já ocupam a direção de quatro estruturas. Enquanto o Trump hostiliza o sistema multilateral - e isso só serve para enfraquecer a posição americana e de seus aliados tradicionais como, por exemplo, os países europeus -, a China supre a função de uma potência pragmática e moderadora.

Biden, se vencer o pleito, terá como meta central a recuperação da reputação dos EUA no sistema multilateral. Sair da OMS como Trump fez - em vez de fortalecer o órgão em grave momento de pandemia global -, somente reduz a importância de um país que pretende dar uma contribuição positiva para o mundo "livre e democrático".

continua após a publicidade

O candidato democrata não terá alternativa senão desmantelar toda a política exterior de Trump, começando por unir a Europa e fortalecer o multilateralismo, com especial atenção aos acordos climáticos e de proteção do meio ambiente. Ainda que a China continue sendo encarada como um adversário e um competidor, Biden terá de ser mais perspicaz na busca de uma estratégia que vise à derrota completa ou à humilhação dos chineses, um objetivo que já se provou contraproducente no passado.

*Hussein Kalout é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Desde que assumiu a Casa Branca, em 2017, Donald Trump mudou os paradigmas da inserção internacional dos EUA. O afastamento de Washington de seus principais aliados europeus e a falta de rumo na política para o Oriente Médio são ilustrativos de uma política que tende a gerar vácuo de poder e diminuir a importância relativa dos EUA em diversos tabuleiros das relações internacionais.

Se vencer a eleição presidencial americana deste ano, o candidato democrata Joe Biden terá como um de seus maiores desafios a reorganização dos interesses estratégicos da política externa americana em variadas frentes. Trata-se de uma tarefa hercúlea de reconstruir uma estratégia coerente em um momento de crescentes desafios estratégicos, econômicos, sanitários e tecnológicos.

O candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden Foto: Spencer Platt/Getty Images/AFP

De partida, a diplomacia de Biden terá como ponto vital a revitalização do papel do Departamento de Estado e de seu quadro técnico-profissional para, na sequência, recuperar a credibilidade do país - perdida em função da baixa qualidade estratégica da diplomacia transacional empregada da administração Trump.

Biden terá como missão precípua restaurar as relações com a Europa e, em particular, com a França e a Alemanha. O enfraquecimento da Otan promovido por Trump foi um prato cheio para adversários geopolíticos, em particular a Rússia.

Dois projetos exitosos que marcaram a gestão de Barack Obama - e que contaram com o engajamento de Joe Biden como Vice-Presidente - foram o acordo nuclear do P5+1 com o Irã e o Acordo de Paris sobre o meio ambiente. Trump se incumbiu de destruir o primeiro e retirar os EUA do segundo. Para quem conhece bem a matéria, obliterar o acordo iraniano nada tem a ver com o fortalecimento da segurança nacional americana ou com a segurança internacional per se. Muito pelo contrário!

No fundo, Trump queria desmantelar o legado e as principais conquistas da gestão de seu antecessor. A sua pretensão era dar uma lição de genialidade geopolítica, que seria alcançar um "magnânimo" acordo nuclear com Coreia do Norte - para demonstrar que seria capaz de alcançar o insuperável com Pyongyang -, porém, fracassou. Ao fim e ao cabo, Trump está a 99 dias de disputar a reeleição sem haver logrado nenhuma conquista significativa para a diplomacia de seu país - no campo securitário ficou o rastro de fracassos que Biden, se vencer, terá de reorganizar.

O seu método disruptivo levou à saída dos EUA do mais importante acordo climático da Nações Unidas das últimas décadas. Ao retirar seu país do Acordo de Paris, Trump não estava defendendo nem o lema "America First" e nem o interesse do produtor rural do sul ou do meio-oeste americano. Essa decisão somente fortaleceu a China, a Rússia e todos os países que já não desejavam empenhar o seu compromisso com a redução da emissão de gases de efeito estufa. Da COP-21 de Paris para os dias atuais, houve mais recuos do que avanços em matéria proteção do meio ambiente e da biodiversidade.

Ao longo dos dois mandatos de Obama à frente da Casa Branca, Joe Biden atuou como baluarte no processo de aproximação e mitigação de assimetrias políticas entre os EUA e os países latino-americanos. Com Cuba chegou-se a um entendimento histórico. Na Colômbia, os EUA apoiaram, ainda que nem sempre de forma direta, o plano de paz do ex-presidente Juan Manuel Santos com as FARCS. Com a Venezuela, apesar da rejeição ao regime chavista, a administração Obama-Biden sempre foi cuidadosa no trato da matéria e jamais aludiu à possibilidade de intervenção armada no país sul-americano. Da relação dos EUA com a América Latina sob Trump, conclui-se que o saldo é pífio!

Por fim, o embate com a China. Se Pequim está mais forte e mais influente hoje é porque a atual administração falhou em sua estratégia de se contrapor ao poderio chinês. A guerra comercial que Trump promove tem gerado tensionamento, mas dificilmente limitará o avanço dos chineses. A contenção da China depende da construção de coalizões amplas e de alianças estratégicas. É ilusão acreditar que haverá um mundo sem China ou com uma China fraca como Trump quer crer (ou como Trump quer que seus partidários acreditem).

A cada equívoco de Trump, a China avança pacientemente as suas peças no tabuleiro e, especialmente, no sistema multilateral. Das quinze agências das Nações Unidas, os chineses já ocupam a direção de quatro estruturas. Enquanto o Trump hostiliza o sistema multilateral - e isso só serve para enfraquecer a posição americana e de seus aliados tradicionais como, por exemplo, os países europeus -, a China supre a função de uma potência pragmática e moderadora.

Biden, se vencer o pleito, terá como meta central a recuperação da reputação dos EUA no sistema multilateral. Sair da OMS como Trump fez - em vez de fortalecer o órgão em grave momento de pandemia global -, somente reduz a importância de um país que pretende dar uma contribuição positiva para o mundo "livre e democrático".

O candidato democrata não terá alternativa senão desmantelar toda a política exterior de Trump, começando por unir a Europa e fortalecer o multilateralismo, com especial atenção aos acordos climáticos e de proteção do meio ambiente. Ainda que a China continue sendo encarada como um adversário e um competidor, Biden terá de ser mais perspicaz na busca de uma estratégia que vise à derrota completa ou à humilhação dos chineses, um objetivo que já se provou contraproducente no passado.

*Hussein Kalout é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Desde que assumiu a Casa Branca, em 2017, Donald Trump mudou os paradigmas da inserção internacional dos EUA. O afastamento de Washington de seus principais aliados europeus e a falta de rumo na política para o Oriente Médio são ilustrativos de uma política que tende a gerar vácuo de poder e diminuir a importância relativa dos EUA em diversos tabuleiros das relações internacionais.

Se vencer a eleição presidencial americana deste ano, o candidato democrata Joe Biden terá como um de seus maiores desafios a reorganização dos interesses estratégicos da política externa americana em variadas frentes. Trata-se de uma tarefa hercúlea de reconstruir uma estratégia coerente em um momento de crescentes desafios estratégicos, econômicos, sanitários e tecnológicos.

O candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden Foto: Spencer Platt/Getty Images/AFP

De partida, a diplomacia de Biden terá como ponto vital a revitalização do papel do Departamento de Estado e de seu quadro técnico-profissional para, na sequência, recuperar a credibilidade do país - perdida em função da baixa qualidade estratégica da diplomacia transacional empregada da administração Trump.

Biden terá como missão precípua restaurar as relações com a Europa e, em particular, com a França e a Alemanha. O enfraquecimento da Otan promovido por Trump foi um prato cheio para adversários geopolíticos, em particular a Rússia.

Dois projetos exitosos que marcaram a gestão de Barack Obama - e que contaram com o engajamento de Joe Biden como Vice-Presidente - foram o acordo nuclear do P5+1 com o Irã e o Acordo de Paris sobre o meio ambiente. Trump se incumbiu de destruir o primeiro e retirar os EUA do segundo. Para quem conhece bem a matéria, obliterar o acordo iraniano nada tem a ver com o fortalecimento da segurança nacional americana ou com a segurança internacional per se. Muito pelo contrário!

No fundo, Trump queria desmantelar o legado e as principais conquistas da gestão de seu antecessor. A sua pretensão era dar uma lição de genialidade geopolítica, que seria alcançar um "magnânimo" acordo nuclear com Coreia do Norte - para demonstrar que seria capaz de alcançar o insuperável com Pyongyang -, porém, fracassou. Ao fim e ao cabo, Trump está a 99 dias de disputar a reeleição sem haver logrado nenhuma conquista significativa para a diplomacia de seu país - no campo securitário ficou o rastro de fracassos que Biden, se vencer, terá de reorganizar.

O seu método disruptivo levou à saída dos EUA do mais importante acordo climático da Nações Unidas das últimas décadas. Ao retirar seu país do Acordo de Paris, Trump não estava defendendo nem o lema "America First" e nem o interesse do produtor rural do sul ou do meio-oeste americano. Essa decisão somente fortaleceu a China, a Rússia e todos os países que já não desejavam empenhar o seu compromisso com a redução da emissão de gases de efeito estufa. Da COP-21 de Paris para os dias atuais, houve mais recuos do que avanços em matéria proteção do meio ambiente e da biodiversidade.

Ao longo dos dois mandatos de Obama à frente da Casa Branca, Joe Biden atuou como baluarte no processo de aproximação e mitigação de assimetrias políticas entre os EUA e os países latino-americanos. Com Cuba chegou-se a um entendimento histórico. Na Colômbia, os EUA apoiaram, ainda que nem sempre de forma direta, o plano de paz do ex-presidente Juan Manuel Santos com as FARCS. Com a Venezuela, apesar da rejeição ao regime chavista, a administração Obama-Biden sempre foi cuidadosa no trato da matéria e jamais aludiu à possibilidade de intervenção armada no país sul-americano. Da relação dos EUA com a América Latina sob Trump, conclui-se que o saldo é pífio!

Por fim, o embate com a China. Se Pequim está mais forte e mais influente hoje é porque a atual administração falhou em sua estratégia de se contrapor ao poderio chinês. A guerra comercial que Trump promove tem gerado tensionamento, mas dificilmente limitará o avanço dos chineses. A contenção da China depende da construção de coalizões amplas e de alianças estratégicas. É ilusão acreditar que haverá um mundo sem China ou com uma China fraca como Trump quer crer (ou como Trump quer que seus partidários acreditem).

A cada equívoco de Trump, a China avança pacientemente as suas peças no tabuleiro e, especialmente, no sistema multilateral. Das quinze agências das Nações Unidas, os chineses já ocupam a direção de quatro estruturas. Enquanto o Trump hostiliza o sistema multilateral - e isso só serve para enfraquecer a posição americana e de seus aliados tradicionais como, por exemplo, os países europeus -, a China supre a função de uma potência pragmática e moderadora.

Biden, se vencer o pleito, terá como meta central a recuperação da reputação dos EUA no sistema multilateral. Sair da OMS como Trump fez - em vez de fortalecer o órgão em grave momento de pandemia global -, somente reduz a importância de um país que pretende dar uma contribuição positiva para o mundo "livre e democrático".

O candidato democrata não terá alternativa senão desmantelar toda a política exterior de Trump, começando por unir a Europa e fortalecer o multilateralismo, com especial atenção aos acordos climáticos e de proteção do meio ambiente. Ainda que a China continue sendo encarada como um adversário e um competidor, Biden terá de ser mais perspicaz na busca de uma estratégia que vise à derrota completa ou à humilhação dos chineses, um objetivo que já se provou contraproducente no passado.

*Hussein Kalout é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Desde que assumiu a Casa Branca, em 2017, Donald Trump mudou os paradigmas da inserção internacional dos EUA. O afastamento de Washington de seus principais aliados europeus e a falta de rumo na política para o Oriente Médio são ilustrativos de uma política que tende a gerar vácuo de poder e diminuir a importância relativa dos EUA em diversos tabuleiros das relações internacionais.

Se vencer a eleição presidencial americana deste ano, o candidato democrata Joe Biden terá como um de seus maiores desafios a reorganização dos interesses estratégicos da política externa americana em variadas frentes. Trata-se de uma tarefa hercúlea de reconstruir uma estratégia coerente em um momento de crescentes desafios estratégicos, econômicos, sanitários e tecnológicos.

O candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden Foto: Spencer Platt/Getty Images/AFP

De partida, a diplomacia de Biden terá como ponto vital a revitalização do papel do Departamento de Estado e de seu quadro técnico-profissional para, na sequência, recuperar a credibilidade do país - perdida em função da baixa qualidade estratégica da diplomacia transacional empregada da administração Trump.

Biden terá como missão precípua restaurar as relações com a Europa e, em particular, com a França e a Alemanha. O enfraquecimento da Otan promovido por Trump foi um prato cheio para adversários geopolíticos, em particular a Rússia.

Dois projetos exitosos que marcaram a gestão de Barack Obama - e que contaram com o engajamento de Joe Biden como Vice-Presidente - foram o acordo nuclear do P5+1 com o Irã e o Acordo de Paris sobre o meio ambiente. Trump se incumbiu de destruir o primeiro e retirar os EUA do segundo. Para quem conhece bem a matéria, obliterar o acordo iraniano nada tem a ver com o fortalecimento da segurança nacional americana ou com a segurança internacional per se. Muito pelo contrário!

No fundo, Trump queria desmantelar o legado e as principais conquistas da gestão de seu antecessor. A sua pretensão era dar uma lição de genialidade geopolítica, que seria alcançar um "magnânimo" acordo nuclear com Coreia do Norte - para demonstrar que seria capaz de alcançar o insuperável com Pyongyang -, porém, fracassou. Ao fim e ao cabo, Trump está a 99 dias de disputar a reeleição sem haver logrado nenhuma conquista significativa para a diplomacia de seu país - no campo securitário ficou o rastro de fracassos que Biden, se vencer, terá de reorganizar.

O seu método disruptivo levou à saída dos EUA do mais importante acordo climático da Nações Unidas das últimas décadas. Ao retirar seu país do Acordo de Paris, Trump não estava defendendo nem o lema "America First" e nem o interesse do produtor rural do sul ou do meio-oeste americano. Essa decisão somente fortaleceu a China, a Rússia e todos os países que já não desejavam empenhar o seu compromisso com a redução da emissão de gases de efeito estufa. Da COP-21 de Paris para os dias atuais, houve mais recuos do que avanços em matéria proteção do meio ambiente e da biodiversidade.

Ao longo dos dois mandatos de Obama à frente da Casa Branca, Joe Biden atuou como baluarte no processo de aproximação e mitigação de assimetrias políticas entre os EUA e os países latino-americanos. Com Cuba chegou-se a um entendimento histórico. Na Colômbia, os EUA apoiaram, ainda que nem sempre de forma direta, o plano de paz do ex-presidente Juan Manuel Santos com as FARCS. Com a Venezuela, apesar da rejeição ao regime chavista, a administração Obama-Biden sempre foi cuidadosa no trato da matéria e jamais aludiu à possibilidade de intervenção armada no país sul-americano. Da relação dos EUA com a América Latina sob Trump, conclui-se que o saldo é pífio!

Por fim, o embate com a China. Se Pequim está mais forte e mais influente hoje é porque a atual administração falhou em sua estratégia de se contrapor ao poderio chinês. A guerra comercial que Trump promove tem gerado tensionamento, mas dificilmente limitará o avanço dos chineses. A contenção da China depende da construção de coalizões amplas e de alianças estratégicas. É ilusão acreditar que haverá um mundo sem China ou com uma China fraca como Trump quer crer (ou como Trump quer que seus partidários acreditem).

A cada equívoco de Trump, a China avança pacientemente as suas peças no tabuleiro e, especialmente, no sistema multilateral. Das quinze agências das Nações Unidas, os chineses já ocupam a direção de quatro estruturas. Enquanto o Trump hostiliza o sistema multilateral - e isso só serve para enfraquecer a posição americana e de seus aliados tradicionais como, por exemplo, os países europeus -, a China supre a função de uma potência pragmática e moderadora.

Biden, se vencer o pleito, terá como meta central a recuperação da reputação dos EUA no sistema multilateral. Sair da OMS como Trump fez - em vez de fortalecer o órgão em grave momento de pandemia global -, somente reduz a importância de um país que pretende dar uma contribuição positiva para o mundo "livre e democrático".

O candidato democrata não terá alternativa senão desmantelar toda a política exterior de Trump, começando por unir a Europa e fortalecer o multilateralismo, com especial atenção aos acordos climáticos e de proteção do meio ambiente. Ainda que a China continue sendo encarada como um adversário e um competidor, Biden terá de ser mais perspicaz na busca de uma estratégia que vise à derrota completa ou à humilhação dos chineses, um objetivo que já se provou contraproducente no passado.

*Hussein Kalout é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Desde que assumiu a Casa Branca, em 2017, Donald Trump mudou os paradigmas da inserção internacional dos EUA. O afastamento de Washington de seus principais aliados europeus e a falta de rumo na política para o Oriente Médio são ilustrativos de uma política que tende a gerar vácuo de poder e diminuir a importância relativa dos EUA em diversos tabuleiros das relações internacionais.

Se vencer a eleição presidencial americana deste ano, o candidato democrata Joe Biden terá como um de seus maiores desafios a reorganização dos interesses estratégicos da política externa americana em variadas frentes. Trata-se de uma tarefa hercúlea de reconstruir uma estratégia coerente em um momento de crescentes desafios estratégicos, econômicos, sanitários e tecnológicos.

O candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden Foto: Spencer Platt/Getty Images/AFP

De partida, a diplomacia de Biden terá como ponto vital a revitalização do papel do Departamento de Estado e de seu quadro técnico-profissional para, na sequência, recuperar a credibilidade do país - perdida em função da baixa qualidade estratégica da diplomacia transacional empregada da administração Trump.

Biden terá como missão precípua restaurar as relações com a Europa e, em particular, com a França e a Alemanha. O enfraquecimento da Otan promovido por Trump foi um prato cheio para adversários geopolíticos, em particular a Rússia.

Dois projetos exitosos que marcaram a gestão de Barack Obama - e que contaram com o engajamento de Joe Biden como Vice-Presidente - foram o acordo nuclear do P5+1 com o Irã e o Acordo de Paris sobre o meio ambiente. Trump se incumbiu de destruir o primeiro e retirar os EUA do segundo. Para quem conhece bem a matéria, obliterar o acordo iraniano nada tem a ver com o fortalecimento da segurança nacional americana ou com a segurança internacional per se. Muito pelo contrário!

No fundo, Trump queria desmantelar o legado e as principais conquistas da gestão de seu antecessor. A sua pretensão era dar uma lição de genialidade geopolítica, que seria alcançar um "magnânimo" acordo nuclear com Coreia do Norte - para demonstrar que seria capaz de alcançar o insuperável com Pyongyang -, porém, fracassou. Ao fim e ao cabo, Trump está a 99 dias de disputar a reeleição sem haver logrado nenhuma conquista significativa para a diplomacia de seu país - no campo securitário ficou o rastro de fracassos que Biden, se vencer, terá de reorganizar.

O seu método disruptivo levou à saída dos EUA do mais importante acordo climático da Nações Unidas das últimas décadas. Ao retirar seu país do Acordo de Paris, Trump não estava defendendo nem o lema "America First" e nem o interesse do produtor rural do sul ou do meio-oeste americano. Essa decisão somente fortaleceu a China, a Rússia e todos os países que já não desejavam empenhar o seu compromisso com a redução da emissão de gases de efeito estufa. Da COP-21 de Paris para os dias atuais, houve mais recuos do que avanços em matéria proteção do meio ambiente e da biodiversidade.

Ao longo dos dois mandatos de Obama à frente da Casa Branca, Joe Biden atuou como baluarte no processo de aproximação e mitigação de assimetrias políticas entre os EUA e os países latino-americanos. Com Cuba chegou-se a um entendimento histórico. Na Colômbia, os EUA apoiaram, ainda que nem sempre de forma direta, o plano de paz do ex-presidente Juan Manuel Santos com as FARCS. Com a Venezuela, apesar da rejeição ao regime chavista, a administração Obama-Biden sempre foi cuidadosa no trato da matéria e jamais aludiu à possibilidade de intervenção armada no país sul-americano. Da relação dos EUA com a América Latina sob Trump, conclui-se que o saldo é pífio!

Por fim, o embate com a China. Se Pequim está mais forte e mais influente hoje é porque a atual administração falhou em sua estratégia de se contrapor ao poderio chinês. A guerra comercial que Trump promove tem gerado tensionamento, mas dificilmente limitará o avanço dos chineses. A contenção da China depende da construção de coalizões amplas e de alianças estratégicas. É ilusão acreditar que haverá um mundo sem China ou com uma China fraca como Trump quer crer (ou como Trump quer que seus partidários acreditem).

A cada equívoco de Trump, a China avança pacientemente as suas peças no tabuleiro e, especialmente, no sistema multilateral. Das quinze agências das Nações Unidas, os chineses já ocupam a direção de quatro estruturas. Enquanto o Trump hostiliza o sistema multilateral - e isso só serve para enfraquecer a posição americana e de seus aliados tradicionais como, por exemplo, os países europeus -, a China supre a função de uma potência pragmática e moderadora.

Biden, se vencer o pleito, terá como meta central a recuperação da reputação dos EUA no sistema multilateral. Sair da OMS como Trump fez - em vez de fortalecer o órgão em grave momento de pandemia global -, somente reduz a importância de um país que pretende dar uma contribuição positiva para o mundo "livre e democrático".

O candidato democrata não terá alternativa senão desmantelar toda a política exterior de Trump, começando por unir a Europa e fortalecer o multilateralismo, com especial atenção aos acordos climáticos e de proteção do meio ambiente. Ainda que a China continue sendo encarada como um adversário e um competidor, Biden terá de ser mais perspicaz na busca de uma estratégia que vise à derrota completa ou à humilhação dos chineses, um objetivo que já se provou contraproducente no passado.

*Hussein Kalout é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.