Qual a melhor imagem para descrever o efeito da eleição de Biden, ou melhor, da derrota de Trump para o Brasil? Depende, claro, se analisamos da perspectiva do atual governo brasileiro ou dos interesses mais amplos do país. Do ponto de vista da “política externa” vigente, a casa caiu, ficamos sem chão.
O deus de Ernesto, ainda que não tenha morrido, saiu de cena. No entanto, se olhamos da ótica dos interesses brasileiros, trata-se de oportunidade única de realizar ajuste de rumos em nossa inserção internacional. Oportunidade que precisa ser aproveitada com urgência, sob pena de se agravar o isolamento ao qual a atual diplomacia destrambelhada nos relegou.
Sem Trump para emular e nos salvar do isolamento completo, deixam de ser ativos atuar como trumpista empedernido, escrever loas ao suposto salvador do Ocidente ou posar de defensor número 1 das políticas unilaterais daquele senhor em nome de afinidades ideológicas transcendentes. Melhor dizendo, esses ativos viram moeda podre no mercado político, sem conversibilidade.
Assim, o atual chanceler terá de se reinventar para provar capacidade de conduzir a diplomacia brasileira, estando doravante fora de sua zona de conforto – diminuta e apequenada, é verdade, mas com liberdade até agora para brincar de ajudante do salvador do Ocidente, para desespero dos adultos na sala.
Não mais. O tempo das brincadeiras com coisa séria vai ficar para trás. Na ausência do ativo antes valorizado - e hoje mais próximo das notas do Banco Imobiliário da Estrela -, será preciso que nossa diplomacia retome algo de suas características passadas, recuperando uma leitura racional do mundo, para projetar e defender os reais interesses do país, seja dos setores produtivos, seja da cidadania em seu conjunto.
Um país das dimensões do Brasil não pode se dar ao luxo de cavar a própria cova e ignorar a necessidade de criar um ambiente propício à cooperação com o novo governo americano, enquanto alguns de seus ministros desempenham o papel ridículo de seguidores da igreja que tem Trump como guia.
Desse modo, a vitória de Biden deveria (espera-se) puxar de volta nossa diplomacia da estratosfera lunática à terra firme, injetando-lhe dose cavalar de realidade. Quem sabe com o desaparecimento do deus pagão Trump, possamos substituir a adoração cega ao ídolo destronado pelo cálculo terreno de nossos objetivos na relação com os EUA e outros parceiros importantes.
Isso terá de passar pelo abandono da crença de que democratas são inimigos por serem “globalistas”. Em vez da reação epidérmica contrária a qualquer reparo ou crítica, mesmo se eventual manifestação sobre a Amazônia, será necessário calibrar o discurso, buscando encontrar um “modus vivendi” que preserve a capacidade brasileira de defender seus interesses, inclusive no que concerne à busca de investimentos e acesso a novas tecnologia e mercados.
Pois é disso que se trata, em particular na conjuntura. O Estado brasileiro não está nadando em dinheiro, nem as condições externas no momento pós-pandemia parecem brilhantes. Temos de proteger nossa população, garantindo-lhe segurança, oportunidades e renda. A política externa, e aí vale ressaltar o óbvio, deveria ser um instrumento para alcançar esses objetivos, por meio de uma inserção soberana na cena internacional.
Isto pressupõe racionalidade, pragmatismo e compromisso com as tradições diplomáticas que se provaram fundamentais para preservar nossos interesses no passado, como, por exemplo, não se meter em processos eleitorais de outros países nem importar artificialmente conflitos que não nos pertencem.
Se até agora o alinhamento automático com Trump nos rendeu algumas migalhas, mais simbólicas do que reais, sua saída de cena retira a capacidade dos atuais condutores da “política externa” de vender a afinidade ideológica como um instrumento para mover a agenda e aprofundar a aliança com a principal potência mundial. Os resultados pífios agora se combinam com a ausência de referência espiritual de seus seguidores tupiniquins, criando a oportunidade para que algo da racionalidade perdida seja recobrada. E para que a diplomacia como método, que foi esquecida e desaprendida, volte a ser utilizada pelos profissionais do ramo.
Ainda que as condições internacionais demandem esse ajuste para preservar nossos interesses e manter o Brasil minimamente blindado de ameaças, riscos e prejuízos palpáveis, será também preciso pressão interna do nosso agronegócio, de nossa indústria e do Congresso. Sob pena de o ajuste ocorrer quando já for tarde demais e para evitar que o fundamentalismo trumpista tupiniquim sobreviva à retirada de cena de sua divindade, no que poderíamos antecipar como o pior de dois mundos.
De um lado, já não poderíamos recorrer à milagrosa divindade, doravante ausente. De outro, não seríamos capazes de obter ganhos e preservar nossos interesses em terra firme, visto que o sectarismo inconsequente e irresponsável manteria o país no mundo da lua, completamente alheado dos grandes processos decisórios internacionais, desarmado para realizar seus objetivos num mundo de acirrada competição.
* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.