THE NEW YORK TIMES - Seu casebre com telhado de palha à margem do Rio Danúbio, a menos de 200 metros da Ucrânia, não tem água corrente e para chegar lá é necessário aguardar uma balsa e percorrer estradas de terra esburacadas. Na semana passada, contudo, a casa rural de Gheorge Puflea, de 71 anos, passou a chamar a atenção em razão de seu status, não pretendido, de primeiro imóvel danificado no território da Otan por um ataque russo contra a Ucrânia.
O ataque de drones e mísseis, realizado antes do amanhecer da última quarta-feira, atingiu um porto de cargas ucraniano na outra margem do rio, mas foi forte o suficiente para que suas ondas de choque estilhaçassem janelas em Plauru, um pequeno vilarejo com apenas uma dúzia de casas precárias no lado romeno do Danúbio.
O som das explosões e do vidro partindo despertou Puflea de seu sono. Em pânico, ele correu para o lado de fora para ver o que estava acontecendo. “Primeiro eu pensei que fosse uma trovoada”, afirmou ele, contando que se abrigou sob uma pereira em seu pomar — e então assistiu horrorizado ao que ocorria: “Parecia um filme de guerra na porta da minha casa”.
O céu noturno se iluminou com o fogo da artilharia antiaérea da Ucrânia, e enormes bolas de fogo ascenderam das instalações do porto ucraniano atingido pelos drones russos. Na semana anterior, a Rússia tinha atacado Reni, outro porto da Ucrânia no Danúbio.
Os ataques russos tiveram o objetivo de aniquilar a ajuda que os portos fluviais ucranianos têm oferecido desde o mês passado, após o colapso do acordo que permitira à Ucrânia exportar grãos através do Mar Negro apesar do bloqueio naval da Rússia. Com os portos marítimos da Ucrânia perigosos demais para o carregamento de navios destinados ao Oriente Médio e à África, os portos ucranianos no Danúbio tornaram-se o último entreposto de frete na Ucrânia para milhões de toneladas de grãos.
Os maiores portos ucranianos no Danúbio — Izmail e Reni — também se tornaram potencialmente gatilhos perigosos, já que se localizam tão próximo à Romênia, um Estado-membro da Otan, portanto com território protegido pelo compromisso da aliança de segurança coletiva. Um drone ou míssil russo que saia poucos metros de seu curso poderia determinar a entrada dos Estados Unidos e seus aliados em um confronto militar direto com Moscou.
Otan
A última vez que temores sobre a Otan estar sob ataque russo emergiram foi em novembro, quando um míssil que os ucranianos insistiram ser da Rússia atingiu um vilarejo na Polônia e matou dois poloneses. Mas acabou determinando-se que o projétil pertencia à defesa antiaérea da Ucrânia, e temores sobre uma guerra maior dissiparam-se rapidamente.
Os episódios na Romênia, contudo, ainda causam inquietação. No sábado, três dias depois do ataque de drones contra Izmail, sirenes de alerta para ataques aéreos soaram novamente no lado ucraniano do Danúbio. Nenhum ataque ocorreu, mas o ruído das sirenes, perfeitamente audíveis do outro lado do rio, em Plauru, convenceu alguns romenos do vilarejo de que eles estão vivendo numa zona de guerra.
Daniela Tanase, de 44 anos, que vive com o filho e o marido no vilarejo, afirmou que as sirenes despertaram a família às 6h. Plauru é indiscutivelmente parte da Romênia, mas o ataque de drones fez Daniela sentir “como se nós estivéssemos lá” na Ucrânia.
Os moradores de Plauru acham que a Rússia não tem nenhum projeto sobre seu isolado rincão da Romênia, pois consideram que o vilarejo não tem nada que os russos cobiçariam. “Aqui é como a Idade Média: sem água tratada, sem comércio e sem estradas”, afirmou o aposentado Marin Stoian, que passava o verão (Hemisfério Norte) no vilarejo. “Não há nada aqui para a Rússia ou a Otan”, afirmou ele.
Seja qual for a intenção de cada lado, porém, o risco de erro de cálculo é assustador.
Preparações para possíveis problemas no Danúbio fazem parte há muito tempo dos exercícios militares anuais da Otan na Romênia. Na simulação mais recente, em junho, soldados americanos e romenos atravessaram uma seção do rio para testar o que a aliança descreveu como “sua capacidade de mover-se rapidamente em terreno difícil durante operações militares”.
“Nós somos parte da Otan e não deveríamos estar em perigo por causa da Rússia, mas um acidente poderia facilmente ocorrer a qualquer momento. Nossa margem do rio fica a poucos metros da Ucrânia”, afirmou Teodosie Marinov, governador da Autoridade da Reserva de Biosfera do Delta do Danúbio, a agência do governo romeno responsável pelos vastos alagadiços ao longo da fronteira com a Ucrânia.
“Agora todos nós percebemos que qualquer coisa pode acontecer”, afirmou Marinov na semana passada, durante entrevista em seu gabinete, em Tulcea, a capital regional. A janela de seu escritório oferecia uma vista peculiar, com barcos de lazer lotados de turistas subindo o delta, grandes navios cargueiros a caminho de portos para se abastecer de grãos ucranianos e, ao longe, espessas colunas de fumaça preta ascendendo das instalações portuárias em Izmail incendiadas pelos drones russos.
Pontuada por vilarejos isolados, como Plauru, muitos dos quais acessíveis apenas de barco, a reserva natural do Delta do Danúbio é um labirinto de lagos, rios e canais. A área, Sítio do Patrimônio Mundial da Unesco, é celebrada por sua abundante diversidade de pássaros, vegetações exóticas e cavalos selvagens.
“Infelizmente, as prioridades neste momento não são relacionadas à proteção ambiental”, afirmou Marinov, o governador da biosfera, acrescentando que não se encontra com seu homólogo ucraniano há meses porque a parte ucraniana do delta não é mais administrada por autoridades preocupadas em proteger pássaros e peixes, mas por militares.
Por algumas horas tensas na quarta-feira passada, pareceu que a Rússia havia cruzado um limite anteriormente inviolável entre a Ucrânia e o território da Otan. O filho de Daniela Tanase, Marius, um pescador, disse ao prefeito de um conjunto de vilarejos no Delta do Danúbio que viu pelo menos um drone russo voar diretamente sobre a casa de sua família antes de deixar o espaço aéreo romeno e atacar Izmail. Um drone, relatou outro morador do vilarejo, aterrissou numa floresta no território romeno.
O prefeito, Tudor Cernega, contou a história do pescador para uma emissora de TV romena, que prontamente noticiou que drones russos tinham entrado na Romênia. À tarde, comentaristas dos meios de imprensa e especialistas discutiam ansiosamente a possibilidade da Romênia — e, portanto, a Otan — estar sob ataque.
Cernega afirmou que o estado de alarme foi tão intenso que o sacerdote cristão-ortodoxo local fugiu com a família para a cidade mais próxima. “Agora é cômico lembrar, mas o momento foi assustador”, afirmou ele. “Todos nós tivemos a impressão de que tínhamos sido abandonados.”
Saiba mais
A Força Aérea romena enviou prontamente uma equipe de especialistas para investigar a ocorrência em Plauru. O ministro da Defesa, num comunicado, declarou que não foi encontrado nenhum sinal de algum drone que tenha aterrissado na floresta nem detectada nenhuma violação do espaço aéreo romeno.
Esta informação e o conhecimento de que a Otan possui uma grande base aérea a apenas 80 quilômetros de lá, próximo ao Porto de Constanta, no Mar Negro, acalmaram a maioria das preocupações em Plauru e outros vilarejos sobre a Rússia poder arriscar atacar deliberadamente.
O motorista de caminhão Petrut Pascu, de 36 anos, que passa a maior parte do tempo fora de casa, viajando entre Irlanda e Inglaterra, disse que ele e a mulher comparam uma casa recentemente num vilarejo próximo a Plauru e que, desde o ataque contra o Porto de Izmail, têm conversado a respeito de vender o imóvel. Sua mulher, afirmou ele, quer se mudar, mas ele não vê nenhum risco real. “Acho que estamos seguros”, afirmou ele, “mas nós nunca esperamos ficar tão próximos dessa guerra na Ucrânia”.
Marius Tanase, o pescador, jura que seu relato é verdadeiro, insistindo que ouviu o zumbido do drone diretamente acima da casa de sua família, em Plauru. A mãe dele, Daniela, também questiona a versão oficial dos acontecimentos. Ela disse que o ruído ensurdecedor dos drones assustou a vaca da família, que arrebentou a corda que a prendia e fugiu, assim como seu gato de estimação.
“O Ministério da Defesa afirmou que os drones não estavam no nosso território, mas eu não acredito”, afirmou Daniela. A Ucrânia, disse ela, “fica a apenas 200 metros daqui”.
Em algumas localidades ao longo do Danúbio, a distância é ainda menor, mas difícil de calcular, porque a fronteira oscila conforme o curso das águas se altera.
No computador de seu escritório, o prefeito Cernega baixou um mapa oficial que identificou como território ucraniano florestas e terras agricultáveis que ele sempre considerou pertencer ao seu distrito. “Eu preciso saber onde fica a fronteira realmente”, afirmou ele. “O Ministério da Defesa deveria me informar isso. De outro modo, 2 + 2 não é igual a 4, é igual a 6. É muito perigoso não saber em que país nós estamos.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO