‘Lula teve uma atitude bastante pró-Putin ao comentar morte de Navalni’, diz jornalista russo


Para o editor em exílio do Novaya Gazeta Europe Kirill Martinov, embora já exista um resultado óbvio, eleições do próximo dia 17 podem servir para expressar insatisfação com governo longevo de Vladimir Putin

Por Carolina Marins
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista comKirill MartinovCientista político e jornalista, editor-chefe do Novaya Gazeta Europe

Os russos vão às urnas a partir desta sexta-feira, 15, até domingo, 17, para mais uma eleição presidencial que visa consolidar o poder de Vladimir Putin. Sem oponentes competitivos, já que seus opositores ou estão em exílio ou presos ou, como ocorreu com Alexei Navalni, mortos, a vitória de Putin é certa. Ainda assim, para o jornalista Kirill Martinov, o pleito pode servir de oportunidade para os russos demonstrarem sua raiva e desprezo ao presidente, especialmente após a morte de seu opositor mais ferrenho. Ele também critica as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a morte de Navalni. Na época, o petista disse que era necessário investigar o caso.

Na corrida, além de Putin, há três candidatos: Nikolai Kharitonov do Partido Comunista, Leonid Slutski do nacionalista Partido Liberal Democrata e Vladislav Davankov do Novo Partido Popular. Todos apoiadores de Putin no Parlamento e pró-guerra. Com os resultados deste domingo, Putin poderá governar até 2030, se tornando o líder mais longevo da Rússia, superando Josef Stalin.

Martinov é editor-chefe do Novaya Gazeta Europe, jornal que nasceu após o fim das operações do Novaya Gazeta na Rússia em decorrência da Guerra na Ucrânia. Com as leis russas que criminalizam o uso da palavra “guerra” e as críticas às Forças Armadas russas, o jornal se viu inviabilizado de produzir e deixou de operar em Moscou. Meses depois, as operações foram levadas para a Letônia, onde jornalistas em exílio, como Martinov, continuam as críticas ao regime de Putin.

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A função de Martinov foi suceder Dmitri Muratov, então editor-chefe do Novaya Gazeta, que em 2021 recebeu o prêmio Nobel da Paz em conjunto com a filipina Maria Ressa. “Eu deixei a Rússia há dois anos porque seria criminalmente perseguido por ser contra a guerra na Ucrânia, por defender os direitos LGBT+ e por comandar um jornal que é considerado organização criminosa na Rússia”, desabafou em entrevista ao Estadão. “Deve ter pelo menos uns dez casos criminais contra mim na Rússia”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante seu discurso anual à nação em 29 de fevereiro Foto: SERGEY GUNEYEV/AFP

Do exílio, a equipe do jornal conta com uma rede de fontes e jornalistas camuflados que ainda trabalham na Rússia para cobrir as controvertidas eleições. As urnas serão abertas esta quinta e fechadas no dia 17, em um pleito cuja organização é complexa devido à extensão territorial do país que lida com 11 fuso-horários distintos. Sem efeito real, já que Putin deverá ganhar com porcentagens altas, a votação é vista mais como um referendo sobre Putin em si, e é por isso que o jornalista acredita ser uma oportunidade de expressar insatisfação de forma segura.

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Confira a entrevista completa:

Quais são as suas expectativas para essas eleições? É realista esperar qualquer resultado diferente de uma vitória de Putin?

Acredito que, em geral, veremos uma competição estranha, onde três pessoas competirão para mostrar quem ama mais o presidente Putin. Tenho bastante certeza de que Putin vencerá e o fará facilmente, e até podemos prever os números. Se os especialistas estão corretos, os números devem ser algo em torno de 80% das pessoas votando em Putin, como se toda a população apoiasse a ideia de ditadura e guerra. Os números oficiais também nos dirão que haverá cerca de 80% de participação eleitoral. E a razão pela qual já conhecemos os números é que essa ditadura tende a realizar eleições como uma espécie de ritual político para mostrar que a cada eleição Putin tem mais e mais apoio do povo russo, o que é totalmente falso. Se tivéssemos algo como eleições livres, com certeza teríamos um grande número de pessoas votando contra a guerra. Além disso, a maioria dos líderes da oposição foi morta, como Navalni, ou está na prisão ou no exílio. E, com certeza, é bastante estranho falar sobre eleições quando não há mídia livre no país, com cerca de 300 veículos de mídia destruídos desde o início da guerra e 100 mídias russas forçadas a trabalhar no exílio. O governo e o próprio Putin controlam totalmente o cenário midiático, proporcionando propaganda durante essa censura em tempos de guerra.

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Infelizmente, podemos ver que algumas pessoas ainda tentam considerar essas eleições como algo real, dizendo que se há leis e candidatos e as pessoas podem votar, isso significa que provavelmente são eleições reais, o que não é verdade. Se uma pessoa dedicar meia hora para pesquisar que tipo de eleições tivemos antes, ela pode facilmente prever o resultado dessas eleições. Também precisamos considerar e lembrar que essas eleições acontecerão em territórios ocupados da Ucrânia, o que é ilegal em qualquer sentido.

Kirill Martinov esteve no Brasil em 2023, junto de Pavel Andreiev, representante da ONG Memorial, que ganhou o Nobel da Paz em 2022 Foto: Carolina Marins/Estadão

A morte de Alexei Navalni pode afetar de alguma forma essas eleições?

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Acredito que o assassinato estratégico de Alexei Navalni fará aumentar o interesse não apenas nas eleições em si, mas nas eleições como uma oportunidade para as pessoas que se opõem à guerra e a esses assassinatos de políticos a encontrarem alguma maneira de se manifestarem. A melhor ideia, eu diria, vinda da oposição russa, é que as pessoas precisam comparecer aos locais de votação de uma vez por todas no dia 17 de março para votar em qualquer candidato que não seja Putin, para mostrar o poder das pessoas que se opõem à ditadura. Nesse sentido, o interesse nas eleições pode ser bastante alto, pois as pessoas veem isso como uma oportunidade mais ou menos segura de fazerem ouvir sua voz.

Também é importante mencionar duas coisas aqui. A primeira é que ainda temos muitas pessoas que apoiam o presidente Putin. Existem pessoas que trabalham diretamente no governo, e há dezenas de milhões dessas pessoas na Rússia. Elas podem ser obrigadas ou solicitadas a votar neste presidente, e com certeza o farão, como sempre fizeram. A outra coisa que gostaria de destacar é que estamos preparando uma espécie de investigação sobre as eleições presidenciais passadas, remontando a 2018. Temos milhares de gravações de vídeo de diferentes colégios eleitorais em toda a Rússia, e treinamos nossos colegas para usar a inteligência artificial para contar o número de eleitores e, em seguida, comparar. Como são muitos registros para fazer isso manualmente, treinamos a IA para contar quantas pessoas realmente votaram em cada colégio, e já publicamos alguns dados que indicam que Putin não foi eleito. Em 11 regiões da Rússia, que conseguimos contar até agora, a participação nas eleições é cerca de um terço menor do que a oficial. Então podemos contar o número real de pessoas que votaram e comparar com os números oficiais, e fica claro que eles aumentaram os números de participação em um terço ou mais.

De certa forma, Putin já é um presidente autoproclamado. Acredito que, em um país democrático normal, e tenho certeza de que no Brasil isso seria possível, as pessoas não ficariam em silêncio quando alguém se declara presidente apenas por ter boas relações com administrações locais que manipulam números.

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E como é feito o trabalho de cobertura dessas eleições, e qualquer outro acontecimento na Rússia, a partir do exílio?

Nós temos essa herança da Novaya Gazeta, que estava sediada na Rússia. Atualmente, não estamos lá, mas ainda há alguns colegas tentando fazer jornalismo dentro do país. Existem muitas restrições quanto aos temas e fontes, mas podemos trabalhar sem censura. A razão pela qual ainda podemos fornecer jornalismo se resume a dois motivos, basicamente: em primeiro lugar, ainda mantemos uma rede de fontes e jornalistas que trabalham nas sombras nas regiões russas e podemos nos comunicar digitalmente com eles porque eles têm confiança, sabem que não estamos trabalhando para as autoridades russas e podem se conectar conosco de maneira segura para compartilhar informações. A outra razão é que estamos vivenciando uma espécie de renascimento do jornalismo na Rússia nestes tempos difíceis, pois temos vários grupos brilhantes de jornalistas especializados em jornalismo de dados. Eles tentam analisar dados abertos e encontrar conjuntos de dados ocultos. Por exemplo, parte das investigações futuras sobre eleições é baseada em bancos de dados. Apenas para citar um exemplo, verificamos que 2500 cientistas conhecidos deixaram a Rússia desde o início da guerra. Fizemos isso facilmente, coletando todas as publicações de cientistas de origem russa em revistas científicas revisadas por pares em todo o mundo e verificando a filiação dessas pessoas. Apenas usando os dados, é possível ver como a ciência russa está entrando em colapso devido a essa guerra.

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Como fica o futuro da oposição russa após a morte de Navalni?

Em algum momento percebemos que Navalni era verdadeiramente um líder da oposição, mas ele estava na prisão, isolado, e as pessoas não esperavam nada, como se não houvesse outros passos a tomar, apenas esperar para ver o que aconteceria a seguir com essa ditadura e os prisioneiros. Estranhamente, neste momento, vejo uma grande... não exatamente inspiração, é claro, porque há luto e raiva em primeiro lugar. As pessoas estão experimentando emoções fortes em relação ao assassinato de Navalni, e já vimos em vídeos sua esposa, Yulia Navalnaia, declarando que continuará o trabalho de seu marido.

Acredito que este momento é um ponto muito importante em que as pessoas na Rússia podem realmente entender que para alguns deles não há mais nada a perder, pois precisam obedecer à ditadura em uma escala enorme e se recusar a manter qualquer dignidade humana. Ao mesmo tempo, acho que ninguém discordará que Navalni tem esse legado de representar o movimento anti-guerra russo e a sociedade democrática russa, primeiro para os russos e para o resto do mundo. Acho que o único problema aqui é que as expectativas estão muito altas, as pessoas querem fazer algo e estão aguardando quando Navalnaia fornecerá seus passos seguintes para se opor à ditadura, e isso é realmente perigoso, porque não sabemos se essas expectativas elevadas podem se concretizar.

O opositor Alexei Navalni morreu no dia 16 de fevereiro em uma prisão no Ártico Foto: Moscow City Court via AP

Como que o mundo deveria ter reagido à morte de Navalni? Acha que as respostas foram satisfatórias?

Preciso mencionar que estou profundamente decepcionado com a declaração do presidente Lula. Talvez tenha sido uma atitude diplomática, algo do tipo, mas basicamente ele disse que “precisamos aguardar as investigações oficiais” e “às vezes as pessoas morrem por razões naturais”, algo assim. Isso é muito pró-Putin e uma atitude muito amigável. Acho que é bastante claro que Navalni foi assassinado. Acredito que há uma pequena chance de que ele tenha sido morto não intencionalmente, mas foi uma morte lenta devido a torturas na prisão. Mas em ambos os casos é uma espécie de assassinato, e pelo tempo que levaram escondendo o corpo, menos podemos acreditar que foi apenas uma coincidência.

O mundo deve ver que a Rússia é governada por uma espécie de gangue criminosa que não tem limites, não tem moral, só entende a linguagem da força e, quando tentam negociar, sempre querem mentir. E com certeza, já podemos ver isso nos últimos anos com o exemplo dessa terrível guerra contra a Ucrânia.

Eu sonho com atos reais do mundo. Se Putin pode fazer isso com Navalni, ele pode fazer isso com qualquer um, e não apenas com os russos, mas nenhuma pessoa no mundo pode se sentir segura enquanto Putin estiver no poder. Afinal, não esqueçamos que essa pessoa que mata seus opositores ainda tem acesso a uma bomba nuclear, algo que tentamos não pensar diariamente, mas não tenho certeza se há pelo menos um ser humano racional que esteja plenamente ciente disso. Dizem: “Putin nunca usou uma arma nuclear, ele nunca fará isso porque tem limites ou restrições”. Isso simplesmente não é verdade.

Você diz que ele poderia fazer com qualquer um o que fez com Navalni. Como jornalista opositor em exílio, você sente medo?

Não tenho resposta para essa pergunta, porque ambas as respostas são um pouco estúpidas. Se você diz “não tenho medo”, isso significa que você é idiota. E se você diz “sim, tenho medo”, isso significa que você pode ser um alvo fácil. As pessoas já sofrem tanto. Eu vejo todos os dias novas imagens de cidades ucranianas destruídas. E, no nosso caso, que nascemos neste país que surgiu após o colapso da União Soviética, desfrutamos de certa liberdade por algumas décadas, foi um período em que eu era mais jovem e era minha condição natural tentar proteger minha liberdade. Depois disso, simplesmente não tivemos escolha. Não sei o que podemos fazer, apenas ficar em silêncio e ver o que acontecerá a seguir? Acredito que, se pudermos pelo menos informar o mundo sobre o que está acontecendo na Rússia e nas fronteiras russas, isso pode ser, talvez, um pequeno passo em direção à paz e à vida normal para todos nós.

Como você vê a possibilidade de retorno de Donald Trump à presidência dos EUA, já que ele é abertamente próximo de Putin?

Foi uma grande história na mídia russa e provavelmente nos Estados Unidos quando o que se diz jornalista Tucker Carlson veio a Moscou para observar essa bela cidade, aproveitar suas mercearias e realizar uma entrevista de duas horas com o Presidente Putin. Para mim, há muitas críticas sobre o trabalho deste jornalista, por muitas razões. Houve muitas piadas sobre essa entrevista, mas para mim, foi um evento bastante sério, porque acredito que Tucker Carlson veio a Moscou não como jornalista, mas como um mensageiro de Trump, como uma pessoa que pode transmitir alguma mensagem do suposto futuro presidente dos Estados Unidos para seus amigos. Acho que uma das razões pelas quais Putin está de bom humor nos últimos dias, não é apenas porque ele gosta de matar pessoas em prisões e em cidades ucranianas, mas também porque recebeu uma mensagem de que esses dois caras podem trabalhar juntos. Se Trump for eleito, isso significa que eles encontrarão alguma solução para a guerra, e Trump já disse que na verdade a Rússia pode fazer o que quiser e que ele encontrará alguma maneira de parar a guerra. Ele se apresenta como um pacificador, e essa pacificação por Trump os coloca juntos, o que significa que Putin poderá ocupar pelo menos a maior parte ou talvez toda a Ucrânia, e dezenas de milhões de pessoas ficarão sob ocupação e enfrentarão sofrimento enorme. Provavelmente ambos se veem como grandes líderes que podem simplesmente dividir o mundo. A visão de Putin não inclui nações como a Europa, nem mesmo a Alemanha. Acredito que, na verdade, ele considera que países como o Brasil, por exemplo, são apenas uma ferramenta. Ele nunca pensa que há grandes potências na região e nunca considerou um país da América do Sul algo sério. Ele acha que o mundo é simples, e digo isso com base nos seus intermináveis discursos históricos: há os Estados Unidos com certeza, há a China, que também é grande, e há a Rússia, que precisa ser a primeira grande potência do mundo. E depois, em algum momento, eles podem dividir o mundo como desejarem, e o futuro seria como o grande impacto histórico do governo de Putin. Ele vê a si mesmo como um novo Peter The Great, como conhecemos da história russa do início do século XVIII.

Falando de uma Rússia após Putin, porque isso em algum momento vai acontecer, Putin já tem mais de 70 anos e não vejo ele construindo nomes para sucedê-lo. Como imaginar uma Rússia depois de Putin?

Essa ditadura não consegue produzir novos líderes e, na verdade, Navalni foi o único líder que emergiu por conta própria. Esse tipo de ditadura sempre tenta encontrar pessoas mais discretas e menos inteligentes ao redor do ditador, porque ele precisa governá-las sem confiar demais, mas também sem ter muito medo delas. Se as pessoas em seu círculo são muito inteligentes, isso é perigoso para o ditador. Então, ele não tem ninguém. Podemos imaginar que há uma transferência de poder dentro do círculo de Putin para alguém como um “Putin menor”. O problema é que isso não é uma questão sobre pessoas individuais. É uma questão sobre o destino do país e da sociedade. Além disso, acredito que Putin já quase destruiu a Rússia no sentido de que tipo de futuro a Rússia pode encontrar. Quando a guerra acabar, a economia russa certamente entrará em colapso, porque eles investiram praticamente tudo, recursos humanos, tecnologias e indústria, tudo foi investido no militarismo. Já vimos como foi no final da União Soviética quando uma sociedade muito militarizada entrou em colapso porque as pessoas simplesmente perderam o trabalho, milhões e milhões de pessoas, e foi um enorme drama para elas. Será muito difícil para a Rússia voltar a ter algum respeito dos vizinhos, porque até mesmo países neutros, como a Finlândia, por exemplo, agora fazem parte da Otan. A população russa não é tão jovem, a idade média dos russos é de cerca de 40 anos agora. Então, não vejo um futuro claro após Putin, não porque há apenas um presidente que amamos, de jeito nenhum, mas porque ele provavelmente destruirá a Rússia até sua morte. Isso é o que eu vejo. Mas também tenho esperança nesses jovens que estão tentando resistir a isso, porque temos uma geração jovem brilhante, educada, pelo menos milhares e milhares dessas pessoas, e elas são cheias de empatia e têm uma inteligência realmente alta. Acredito que talvez por causa dessas pessoas, meus ex-alunos em Moscou, talvez tenhamos alguma chance de superar isso.

Os russos vão às urnas a partir desta sexta-feira, 15, até domingo, 17, para mais uma eleição presidencial que visa consolidar o poder de Vladimir Putin. Sem oponentes competitivos, já que seus opositores ou estão em exílio ou presos ou, como ocorreu com Alexei Navalni, mortos, a vitória de Putin é certa. Ainda assim, para o jornalista Kirill Martinov, o pleito pode servir de oportunidade para os russos demonstrarem sua raiva e desprezo ao presidente, especialmente após a morte de seu opositor mais ferrenho. Ele também critica as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a morte de Navalni. Na época, o petista disse que era necessário investigar o caso.

Na corrida, além de Putin, há três candidatos: Nikolai Kharitonov do Partido Comunista, Leonid Slutski do nacionalista Partido Liberal Democrata e Vladislav Davankov do Novo Partido Popular. Todos apoiadores de Putin no Parlamento e pró-guerra. Com os resultados deste domingo, Putin poderá governar até 2030, se tornando o líder mais longevo da Rússia, superando Josef Stalin.

Martinov é editor-chefe do Novaya Gazeta Europe, jornal que nasceu após o fim das operações do Novaya Gazeta na Rússia em decorrência da Guerra na Ucrânia. Com as leis russas que criminalizam o uso da palavra “guerra” e as críticas às Forças Armadas russas, o jornal se viu inviabilizado de produzir e deixou de operar em Moscou. Meses depois, as operações foram levadas para a Letônia, onde jornalistas em exílio, como Martinov, continuam as críticas ao regime de Putin.

A função de Martinov foi suceder Dmitri Muratov, então editor-chefe do Novaya Gazeta, que em 2021 recebeu o prêmio Nobel da Paz em conjunto com a filipina Maria Ressa. “Eu deixei a Rússia há dois anos porque seria criminalmente perseguido por ser contra a guerra na Ucrânia, por defender os direitos LGBT+ e por comandar um jornal que é considerado organização criminosa na Rússia”, desabafou em entrevista ao Estadão. “Deve ter pelo menos uns dez casos criminais contra mim na Rússia”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante seu discurso anual à nação em 29 de fevereiro Foto: SERGEY GUNEYEV/AFP

Do exílio, a equipe do jornal conta com uma rede de fontes e jornalistas camuflados que ainda trabalham na Rússia para cobrir as controvertidas eleições. As urnas serão abertas esta quinta e fechadas no dia 17, em um pleito cuja organização é complexa devido à extensão territorial do país que lida com 11 fuso-horários distintos. Sem efeito real, já que Putin deverá ganhar com porcentagens altas, a votação é vista mais como um referendo sobre Putin em si, e é por isso que o jornalista acredita ser uma oportunidade de expressar insatisfação de forma segura.

Confira a entrevista completa:

Quais são as suas expectativas para essas eleições? É realista esperar qualquer resultado diferente de uma vitória de Putin?

Acredito que, em geral, veremos uma competição estranha, onde três pessoas competirão para mostrar quem ama mais o presidente Putin. Tenho bastante certeza de que Putin vencerá e o fará facilmente, e até podemos prever os números. Se os especialistas estão corretos, os números devem ser algo em torno de 80% das pessoas votando em Putin, como se toda a população apoiasse a ideia de ditadura e guerra. Os números oficiais também nos dirão que haverá cerca de 80% de participação eleitoral. E a razão pela qual já conhecemos os números é que essa ditadura tende a realizar eleições como uma espécie de ritual político para mostrar que a cada eleição Putin tem mais e mais apoio do povo russo, o que é totalmente falso. Se tivéssemos algo como eleições livres, com certeza teríamos um grande número de pessoas votando contra a guerra. Além disso, a maioria dos líderes da oposição foi morta, como Navalni, ou está na prisão ou no exílio. E, com certeza, é bastante estranho falar sobre eleições quando não há mídia livre no país, com cerca de 300 veículos de mídia destruídos desde o início da guerra e 100 mídias russas forçadas a trabalhar no exílio. O governo e o próprio Putin controlam totalmente o cenário midiático, proporcionando propaganda durante essa censura em tempos de guerra.

Infelizmente, podemos ver que algumas pessoas ainda tentam considerar essas eleições como algo real, dizendo que se há leis e candidatos e as pessoas podem votar, isso significa que provavelmente são eleições reais, o que não é verdade. Se uma pessoa dedicar meia hora para pesquisar que tipo de eleições tivemos antes, ela pode facilmente prever o resultado dessas eleições. Também precisamos considerar e lembrar que essas eleições acontecerão em territórios ocupados da Ucrânia, o que é ilegal em qualquer sentido.

Kirill Martinov esteve no Brasil em 2023, junto de Pavel Andreiev, representante da ONG Memorial, que ganhou o Nobel da Paz em 2022 Foto: Carolina Marins/Estadão

A morte de Alexei Navalni pode afetar de alguma forma essas eleições?

Acredito que o assassinato estratégico de Alexei Navalni fará aumentar o interesse não apenas nas eleições em si, mas nas eleições como uma oportunidade para as pessoas que se opõem à guerra e a esses assassinatos de políticos a encontrarem alguma maneira de se manifestarem. A melhor ideia, eu diria, vinda da oposição russa, é que as pessoas precisam comparecer aos locais de votação de uma vez por todas no dia 17 de março para votar em qualquer candidato que não seja Putin, para mostrar o poder das pessoas que se opõem à ditadura. Nesse sentido, o interesse nas eleições pode ser bastante alto, pois as pessoas veem isso como uma oportunidade mais ou menos segura de fazerem ouvir sua voz.

Também é importante mencionar duas coisas aqui. A primeira é que ainda temos muitas pessoas que apoiam o presidente Putin. Existem pessoas que trabalham diretamente no governo, e há dezenas de milhões dessas pessoas na Rússia. Elas podem ser obrigadas ou solicitadas a votar neste presidente, e com certeza o farão, como sempre fizeram. A outra coisa que gostaria de destacar é que estamos preparando uma espécie de investigação sobre as eleições presidenciais passadas, remontando a 2018. Temos milhares de gravações de vídeo de diferentes colégios eleitorais em toda a Rússia, e treinamos nossos colegas para usar a inteligência artificial para contar o número de eleitores e, em seguida, comparar. Como são muitos registros para fazer isso manualmente, treinamos a IA para contar quantas pessoas realmente votaram em cada colégio, e já publicamos alguns dados que indicam que Putin não foi eleito. Em 11 regiões da Rússia, que conseguimos contar até agora, a participação nas eleições é cerca de um terço menor do que a oficial. Então podemos contar o número real de pessoas que votaram e comparar com os números oficiais, e fica claro que eles aumentaram os números de participação em um terço ou mais.

De certa forma, Putin já é um presidente autoproclamado. Acredito que, em um país democrático normal, e tenho certeza de que no Brasil isso seria possível, as pessoas não ficariam em silêncio quando alguém se declara presidente apenas por ter boas relações com administrações locais que manipulam números.

E como é feito o trabalho de cobertura dessas eleições, e qualquer outro acontecimento na Rússia, a partir do exílio?

Nós temos essa herança da Novaya Gazeta, que estava sediada na Rússia. Atualmente, não estamos lá, mas ainda há alguns colegas tentando fazer jornalismo dentro do país. Existem muitas restrições quanto aos temas e fontes, mas podemos trabalhar sem censura. A razão pela qual ainda podemos fornecer jornalismo se resume a dois motivos, basicamente: em primeiro lugar, ainda mantemos uma rede de fontes e jornalistas que trabalham nas sombras nas regiões russas e podemos nos comunicar digitalmente com eles porque eles têm confiança, sabem que não estamos trabalhando para as autoridades russas e podem se conectar conosco de maneira segura para compartilhar informações. A outra razão é que estamos vivenciando uma espécie de renascimento do jornalismo na Rússia nestes tempos difíceis, pois temos vários grupos brilhantes de jornalistas especializados em jornalismo de dados. Eles tentam analisar dados abertos e encontrar conjuntos de dados ocultos. Por exemplo, parte das investigações futuras sobre eleições é baseada em bancos de dados. Apenas para citar um exemplo, verificamos que 2500 cientistas conhecidos deixaram a Rússia desde o início da guerra. Fizemos isso facilmente, coletando todas as publicações de cientistas de origem russa em revistas científicas revisadas por pares em todo o mundo e verificando a filiação dessas pessoas. Apenas usando os dados, é possível ver como a ciência russa está entrando em colapso devido a essa guerra.

Como fica o futuro da oposição russa após a morte de Navalni?

Em algum momento percebemos que Navalni era verdadeiramente um líder da oposição, mas ele estava na prisão, isolado, e as pessoas não esperavam nada, como se não houvesse outros passos a tomar, apenas esperar para ver o que aconteceria a seguir com essa ditadura e os prisioneiros. Estranhamente, neste momento, vejo uma grande... não exatamente inspiração, é claro, porque há luto e raiva em primeiro lugar. As pessoas estão experimentando emoções fortes em relação ao assassinato de Navalni, e já vimos em vídeos sua esposa, Yulia Navalnaia, declarando que continuará o trabalho de seu marido.

Acredito que este momento é um ponto muito importante em que as pessoas na Rússia podem realmente entender que para alguns deles não há mais nada a perder, pois precisam obedecer à ditadura em uma escala enorme e se recusar a manter qualquer dignidade humana. Ao mesmo tempo, acho que ninguém discordará que Navalni tem esse legado de representar o movimento anti-guerra russo e a sociedade democrática russa, primeiro para os russos e para o resto do mundo. Acho que o único problema aqui é que as expectativas estão muito altas, as pessoas querem fazer algo e estão aguardando quando Navalnaia fornecerá seus passos seguintes para se opor à ditadura, e isso é realmente perigoso, porque não sabemos se essas expectativas elevadas podem se concretizar.

O opositor Alexei Navalni morreu no dia 16 de fevereiro em uma prisão no Ártico Foto: Moscow City Court via AP

Como que o mundo deveria ter reagido à morte de Navalni? Acha que as respostas foram satisfatórias?

Preciso mencionar que estou profundamente decepcionado com a declaração do presidente Lula. Talvez tenha sido uma atitude diplomática, algo do tipo, mas basicamente ele disse que “precisamos aguardar as investigações oficiais” e “às vezes as pessoas morrem por razões naturais”, algo assim. Isso é muito pró-Putin e uma atitude muito amigável. Acho que é bastante claro que Navalni foi assassinado. Acredito que há uma pequena chance de que ele tenha sido morto não intencionalmente, mas foi uma morte lenta devido a torturas na prisão. Mas em ambos os casos é uma espécie de assassinato, e pelo tempo que levaram escondendo o corpo, menos podemos acreditar que foi apenas uma coincidência.

O mundo deve ver que a Rússia é governada por uma espécie de gangue criminosa que não tem limites, não tem moral, só entende a linguagem da força e, quando tentam negociar, sempre querem mentir. E com certeza, já podemos ver isso nos últimos anos com o exemplo dessa terrível guerra contra a Ucrânia.

Eu sonho com atos reais do mundo. Se Putin pode fazer isso com Navalni, ele pode fazer isso com qualquer um, e não apenas com os russos, mas nenhuma pessoa no mundo pode se sentir segura enquanto Putin estiver no poder. Afinal, não esqueçamos que essa pessoa que mata seus opositores ainda tem acesso a uma bomba nuclear, algo que tentamos não pensar diariamente, mas não tenho certeza se há pelo menos um ser humano racional que esteja plenamente ciente disso. Dizem: “Putin nunca usou uma arma nuclear, ele nunca fará isso porque tem limites ou restrições”. Isso simplesmente não é verdade.

Você diz que ele poderia fazer com qualquer um o que fez com Navalni. Como jornalista opositor em exílio, você sente medo?

Não tenho resposta para essa pergunta, porque ambas as respostas são um pouco estúpidas. Se você diz “não tenho medo”, isso significa que você é idiota. E se você diz “sim, tenho medo”, isso significa que você pode ser um alvo fácil. As pessoas já sofrem tanto. Eu vejo todos os dias novas imagens de cidades ucranianas destruídas. E, no nosso caso, que nascemos neste país que surgiu após o colapso da União Soviética, desfrutamos de certa liberdade por algumas décadas, foi um período em que eu era mais jovem e era minha condição natural tentar proteger minha liberdade. Depois disso, simplesmente não tivemos escolha. Não sei o que podemos fazer, apenas ficar em silêncio e ver o que acontecerá a seguir? Acredito que, se pudermos pelo menos informar o mundo sobre o que está acontecendo na Rússia e nas fronteiras russas, isso pode ser, talvez, um pequeno passo em direção à paz e à vida normal para todos nós.

Como você vê a possibilidade de retorno de Donald Trump à presidência dos EUA, já que ele é abertamente próximo de Putin?

Foi uma grande história na mídia russa e provavelmente nos Estados Unidos quando o que se diz jornalista Tucker Carlson veio a Moscou para observar essa bela cidade, aproveitar suas mercearias e realizar uma entrevista de duas horas com o Presidente Putin. Para mim, há muitas críticas sobre o trabalho deste jornalista, por muitas razões. Houve muitas piadas sobre essa entrevista, mas para mim, foi um evento bastante sério, porque acredito que Tucker Carlson veio a Moscou não como jornalista, mas como um mensageiro de Trump, como uma pessoa que pode transmitir alguma mensagem do suposto futuro presidente dos Estados Unidos para seus amigos. Acho que uma das razões pelas quais Putin está de bom humor nos últimos dias, não é apenas porque ele gosta de matar pessoas em prisões e em cidades ucranianas, mas também porque recebeu uma mensagem de que esses dois caras podem trabalhar juntos. Se Trump for eleito, isso significa que eles encontrarão alguma solução para a guerra, e Trump já disse que na verdade a Rússia pode fazer o que quiser e que ele encontrará alguma maneira de parar a guerra. Ele se apresenta como um pacificador, e essa pacificação por Trump os coloca juntos, o que significa que Putin poderá ocupar pelo menos a maior parte ou talvez toda a Ucrânia, e dezenas de milhões de pessoas ficarão sob ocupação e enfrentarão sofrimento enorme. Provavelmente ambos se veem como grandes líderes que podem simplesmente dividir o mundo. A visão de Putin não inclui nações como a Europa, nem mesmo a Alemanha. Acredito que, na verdade, ele considera que países como o Brasil, por exemplo, são apenas uma ferramenta. Ele nunca pensa que há grandes potências na região e nunca considerou um país da América do Sul algo sério. Ele acha que o mundo é simples, e digo isso com base nos seus intermináveis discursos históricos: há os Estados Unidos com certeza, há a China, que também é grande, e há a Rússia, que precisa ser a primeira grande potência do mundo. E depois, em algum momento, eles podem dividir o mundo como desejarem, e o futuro seria como o grande impacto histórico do governo de Putin. Ele vê a si mesmo como um novo Peter The Great, como conhecemos da história russa do início do século XVIII.

Falando de uma Rússia após Putin, porque isso em algum momento vai acontecer, Putin já tem mais de 70 anos e não vejo ele construindo nomes para sucedê-lo. Como imaginar uma Rússia depois de Putin?

Essa ditadura não consegue produzir novos líderes e, na verdade, Navalni foi o único líder que emergiu por conta própria. Esse tipo de ditadura sempre tenta encontrar pessoas mais discretas e menos inteligentes ao redor do ditador, porque ele precisa governá-las sem confiar demais, mas também sem ter muito medo delas. Se as pessoas em seu círculo são muito inteligentes, isso é perigoso para o ditador. Então, ele não tem ninguém. Podemos imaginar que há uma transferência de poder dentro do círculo de Putin para alguém como um “Putin menor”. O problema é que isso não é uma questão sobre pessoas individuais. É uma questão sobre o destino do país e da sociedade. Além disso, acredito que Putin já quase destruiu a Rússia no sentido de que tipo de futuro a Rússia pode encontrar. Quando a guerra acabar, a economia russa certamente entrará em colapso, porque eles investiram praticamente tudo, recursos humanos, tecnologias e indústria, tudo foi investido no militarismo. Já vimos como foi no final da União Soviética quando uma sociedade muito militarizada entrou em colapso porque as pessoas simplesmente perderam o trabalho, milhões e milhões de pessoas, e foi um enorme drama para elas. Será muito difícil para a Rússia voltar a ter algum respeito dos vizinhos, porque até mesmo países neutros, como a Finlândia, por exemplo, agora fazem parte da Otan. A população russa não é tão jovem, a idade média dos russos é de cerca de 40 anos agora. Então, não vejo um futuro claro após Putin, não porque há apenas um presidente que amamos, de jeito nenhum, mas porque ele provavelmente destruirá a Rússia até sua morte. Isso é o que eu vejo. Mas também tenho esperança nesses jovens que estão tentando resistir a isso, porque temos uma geração jovem brilhante, educada, pelo menos milhares e milhares dessas pessoas, e elas são cheias de empatia e têm uma inteligência realmente alta. Acredito que talvez por causa dessas pessoas, meus ex-alunos em Moscou, talvez tenhamos alguma chance de superar isso.

Os russos vão às urnas a partir desta sexta-feira, 15, até domingo, 17, para mais uma eleição presidencial que visa consolidar o poder de Vladimir Putin. Sem oponentes competitivos, já que seus opositores ou estão em exílio ou presos ou, como ocorreu com Alexei Navalni, mortos, a vitória de Putin é certa. Ainda assim, para o jornalista Kirill Martinov, o pleito pode servir de oportunidade para os russos demonstrarem sua raiva e desprezo ao presidente, especialmente após a morte de seu opositor mais ferrenho. Ele também critica as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a morte de Navalni. Na época, o petista disse que era necessário investigar o caso.

Na corrida, além de Putin, há três candidatos: Nikolai Kharitonov do Partido Comunista, Leonid Slutski do nacionalista Partido Liberal Democrata e Vladislav Davankov do Novo Partido Popular. Todos apoiadores de Putin no Parlamento e pró-guerra. Com os resultados deste domingo, Putin poderá governar até 2030, se tornando o líder mais longevo da Rússia, superando Josef Stalin.

Martinov é editor-chefe do Novaya Gazeta Europe, jornal que nasceu após o fim das operações do Novaya Gazeta na Rússia em decorrência da Guerra na Ucrânia. Com as leis russas que criminalizam o uso da palavra “guerra” e as críticas às Forças Armadas russas, o jornal se viu inviabilizado de produzir e deixou de operar em Moscou. Meses depois, as operações foram levadas para a Letônia, onde jornalistas em exílio, como Martinov, continuam as críticas ao regime de Putin.

A função de Martinov foi suceder Dmitri Muratov, então editor-chefe do Novaya Gazeta, que em 2021 recebeu o prêmio Nobel da Paz em conjunto com a filipina Maria Ressa. “Eu deixei a Rússia há dois anos porque seria criminalmente perseguido por ser contra a guerra na Ucrânia, por defender os direitos LGBT+ e por comandar um jornal que é considerado organização criminosa na Rússia”, desabafou em entrevista ao Estadão. “Deve ter pelo menos uns dez casos criminais contra mim na Rússia”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante seu discurso anual à nação em 29 de fevereiro Foto: SERGEY GUNEYEV/AFP

Do exílio, a equipe do jornal conta com uma rede de fontes e jornalistas camuflados que ainda trabalham na Rússia para cobrir as controvertidas eleições. As urnas serão abertas esta quinta e fechadas no dia 17, em um pleito cuja organização é complexa devido à extensão territorial do país que lida com 11 fuso-horários distintos. Sem efeito real, já que Putin deverá ganhar com porcentagens altas, a votação é vista mais como um referendo sobre Putin em si, e é por isso que o jornalista acredita ser uma oportunidade de expressar insatisfação de forma segura.

Confira a entrevista completa:

Quais são as suas expectativas para essas eleições? É realista esperar qualquer resultado diferente de uma vitória de Putin?

Acredito que, em geral, veremos uma competição estranha, onde três pessoas competirão para mostrar quem ama mais o presidente Putin. Tenho bastante certeza de que Putin vencerá e o fará facilmente, e até podemos prever os números. Se os especialistas estão corretos, os números devem ser algo em torno de 80% das pessoas votando em Putin, como se toda a população apoiasse a ideia de ditadura e guerra. Os números oficiais também nos dirão que haverá cerca de 80% de participação eleitoral. E a razão pela qual já conhecemos os números é que essa ditadura tende a realizar eleições como uma espécie de ritual político para mostrar que a cada eleição Putin tem mais e mais apoio do povo russo, o que é totalmente falso. Se tivéssemos algo como eleições livres, com certeza teríamos um grande número de pessoas votando contra a guerra. Além disso, a maioria dos líderes da oposição foi morta, como Navalni, ou está na prisão ou no exílio. E, com certeza, é bastante estranho falar sobre eleições quando não há mídia livre no país, com cerca de 300 veículos de mídia destruídos desde o início da guerra e 100 mídias russas forçadas a trabalhar no exílio. O governo e o próprio Putin controlam totalmente o cenário midiático, proporcionando propaganda durante essa censura em tempos de guerra.

Infelizmente, podemos ver que algumas pessoas ainda tentam considerar essas eleições como algo real, dizendo que se há leis e candidatos e as pessoas podem votar, isso significa que provavelmente são eleições reais, o que não é verdade. Se uma pessoa dedicar meia hora para pesquisar que tipo de eleições tivemos antes, ela pode facilmente prever o resultado dessas eleições. Também precisamos considerar e lembrar que essas eleições acontecerão em territórios ocupados da Ucrânia, o que é ilegal em qualquer sentido.

Kirill Martinov esteve no Brasil em 2023, junto de Pavel Andreiev, representante da ONG Memorial, que ganhou o Nobel da Paz em 2022 Foto: Carolina Marins/Estadão

A morte de Alexei Navalni pode afetar de alguma forma essas eleições?

Acredito que o assassinato estratégico de Alexei Navalni fará aumentar o interesse não apenas nas eleições em si, mas nas eleições como uma oportunidade para as pessoas que se opõem à guerra e a esses assassinatos de políticos a encontrarem alguma maneira de se manifestarem. A melhor ideia, eu diria, vinda da oposição russa, é que as pessoas precisam comparecer aos locais de votação de uma vez por todas no dia 17 de março para votar em qualquer candidato que não seja Putin, para mostrar o poder das pessoas que se opõem à ditadura. Nesse sentido, o interesse nas eleições pode ser bastante alto, pois as pessoas veem isso como uma oportunidade mais ou menos segura de fazerem ouvir sua voz.

Também é importante mencionar duas coisas aqui. A primeira é que ainda temos muitas pessoas que apoiam o presidente Putin. Existem pessoas que trabalham diretamente no governo, e há dezenas de milhões dessas pessoas na Rússia. Elas podem ser obrigadas ou solicitadas a votar neste presidente, e com certeza o farão, como sempre fizeram. A outra coisa que gostaria de destacar é que estamos preparando uma espécie de investigação sobre as eleições presidenciais passadas, remontando a 2018. Temos milhares de gravações de vídeo de diferentes colégios eleitorais em toda a Rússia, e treinamos nossos colegas para usar a inteligência artificial para contar o número de eleitores e, em seguida, comparar. Como são muitos registros para fazer isso manualmente, treinamos a IA para contar quantas pessoas realmente votaram em cada colégio, e já publicamos alguns dados que indicam que Putin não foi eleito. Em 11 regiões da Rússia, que conseguimos contar até agora, a participação nas eleições é cerca de um terço menor do que a oficial. Então podemos contar o número real de pessoas que votaram e comparar com os números oficiais, e fica claro que eles aumentaram os números de participação em um terço ou mais.

De certa forma, Putin já é um presidente autoproclamado. Acredito que, em um país democrático normal, e tenho certeza de que no Brasil isso seria possível, as pessoas não ficariam em silêncio quando alguém se declara presidente apenas por ter boas relações com administrações locais que manipulam números.

E como é feito o trabalho de cobertura dessas eleições, e qualquer outro acontecimento na Rússia, a partir do exílio?

Nós temos essa herança da Novaya Gazeta, que estava sediada na Rússia. Atualmente, não estamos lá, mas ainda há alguns colegas tentando fazer jornalismo dentro do país. Existem muitas restrições quanto aos temas e fontes, mas podemos trabalhar sem censura. A razão pela qual ainda podemos fornecer jornalismo se resume a dois motivos, basicamente: em primeiro lugar, ainda mantemos uma rede de fontes e jornalistas que trabalham nas sombras nas regiões russas e podemos nos comunicar digitalmente com eles porque eles têm confiança, sabem que não estamos trabalhando para as autoridades russas e podem se conectar conosco de maneira segura para compartilhar informações. A outra razão é que estamos vivenciando uma espécie de renascimento do jornalismo na Rússia nestes tempos difíceis, pois temos vários grupos brilhantes de jornalistas especializados em jornalismo de dados. Eles tentam analisar dados abertos e encontrar conjuntos de dados ocultos. Por exemplo, parte das investigações futuras sobre eleições é baseada em bancos de dados. Apenas para citar um exemplo, verificamos que 2500 cientistas conhecidos deixaram a Rússia desde o início da guerra. Fizemos isso facilmente, coletando todas as publicações de cientistas de origem russa em revistas científicas revisadas por pares em todo o mundo e verificando a filiação dessas pessoas. Apenas usando os dados, é possível ver como a ciência russa está entrando em colapso devido a essa guerra.

Como fica o futuro da oposição russa após a morte de Navalni?

Em algum momento percebemos que Navalni era verdadeiramente um líder da oposição, mas ele estava na prisão, isolado, e as pessoas não esperavam nada, como se não houvesse outros passos a tomar, apenas esperar para ver o que aconteceria a seguir com essa ditadura e os prisioneiros. Estranhamente, neste momento, vejo uma grande... não exatamente inspiração, é claro, porque há luto e raiva em primeiro lugar. As pessoas estão experimentando emoções fortes em relação ao assassinato de Navalni, e já vimos em vídeos sua esposa, Yulia Navalnaia, declarando que continuará o trabalho de seu marido.

Acredito que este momento é um ponto muito importante em que as pessoas na Rússia podem realmente entender que para alguns deles não há mais nada a perder, pois precisam obedecer à ditadura em uma escala enorme e se recusar a manter qualquer dignidade humana. Ao mesmo tempo, acho que ninguém discordará que Navalni tem esse legado de representar o movimento anti-guerra russo e a sociedade democrática russa, primeiro para os russos e para o resto do mundo. Acho que o único problema aqui é que as expectativas estão muito altas, as pessoas querem fazer algo e estão aguardando quando Navalnaia fornecerá seus passos seguintes para se opor à ditadura, e isso é realmente perigoso, porque não sabemos se essas expectativas elevadas podem se concretizar.

O opositor Alexei Navalni morreu no dia 16 de fevereiro em uma prisão no Ártico Foto: Moscow City Court via AP

Como que o mundo deveria ter reagido à morte de Navalni? Acha que as respostas foram satisfatórias?

Preciso mencionar que estou profundamente decepcionado com a declaração do presidente Lula. Talvez tenha sido uma atitude diplomática, algo do tipo, mas basicamente ele disse que “precisamos aguardar as investigações oficiais” e “às vezes as pessoas morrem por razões naturais”, algo assim. Isso é muito pró-Putin e uma atitude muito amigável. Acho que é bastante claro que Navalni foi assassinado. Acredito que há uma pequena chance de que ele tenha sido morto não intencionalmente, mas foi uma morte lenta devido a torturas na prisão. Mas em ambos os casos é uma espécie de assassinato, e pelo tempo que levaram escondendo o corpo, menos podemos acreditar que foi apenas uma coincidência.

O mundo deve ver que a Rússia é governada por uma espécie de gangue criminosa que não tem limites, não tem moral, só entende a linguagem da força e, quando tentam negociar, sempre querem mentir. E com certeza, já podemos ver isso nos últimos anos com o exemplo dessa terrível guerra contra a Ucrânia.

Eu sonho com atos reais do mundo. Se Putin pode fazer isso com Navalni, ele pode fazer isso com qualquer um, e não apenas com os russos, mas nenhuma pessoa no mundo pode se sentir segura enquanto Putin estiver no poder. Afinal, não esqueçamos que essa pessoa que mata seus opositores ainda tem acesso a uma bomba nuclear, algo que tentamos não pensar diariamente, mas não tenho certeza se há pelo menos um ser humano racional que esteja plenamente ciente disso. Dizem: “Putin nunca usou uma arma nuclear, ele nunca fará isso porque tem limites ou restrições”. Isso simplesmente não é verdade.

Você diz que ele poderia fazer com qualquer um o que fez com Navalni. Como jornalista opositor em exílio, você sente medo?

Não tenho resposta para essa pergunta, porque ambas as respostas são um pouco estúpidas. Se você diz “não tenho medo”, isso significa que você é idiota. E se você diz “sim, tenho medo”, isso significa que você pode ser um alvo fácil. As pessoas já sofrem tanto. Eu vejo todos os dias novas imagens de cidades ucranianas destruídas. E, no nosso caso, que nascemos neste país que surgiu após o colapso da União Soviética, desfrutamos de certa liberdade por algumas décadas, foi um período em que eu era mais jovem e era minha condição natural tentar proteger minha liberdade. Depois disso, simplesmente não tivemos escolha. Não sei o que podemos fazer, apenas ficar em silêncio e ver o que acontecerá a seguir? Acredito que, se pudermos pelo menos informar o mundo sobre o que está acontecendo na Rússia e nas fronteiras russas, isso pode ser, talvez, um pequeno passo em direção à paz e à vida normal para todos nós.

Como você vê a possibilidade de retorno de Donald Trump à presidência dos EUA, já que ele é abertamente próximo de Putin?

Foi uma grande história na mídia russa e provavelmente nos Estados Unidos quando o que se diz jornalista Tucker Carlson veio a Moscou para observar essa bela cidade, aproveitar suas mercearias e realizar uma entrevista de duas horas com o Presidente Putin. Para mim, há muitas críticas sobre o trabalho deste jornalista, por muitas razões. Houve muitas piadas sobre essa entrevista, mas para mim, foi um evento bastante sério, porque acredito que Tucker Carlson veio a Moscou não como jornalista, mas como um mensageiro de Trump, como uma pessoa que pode transmitir alguma mensagem do suposto futuro presidente dos Estados Unidos para seus amigos. Acho que uma das razões pelas quais Putin está de bom humor nos últimos dias, não é apenas porque ele gosta de matar pessoas em prisões e em cidades ucranianas, mas também porque recebeu uma mensagem de que esses dois caras podem trabalhar juntos. Se Trump for eleito, isso significa que eles encontrarão alguma solução para a guerra, e Trump já disse que na verdade a Rússia pode fazer o que quiser e que ele encontrará alguma maneira de parar a guerra. Ele se apresenta como um pacificador, e essa pacificação por Trump os coloca juntos, o que significa que Putin poderá ocupar pelo menos a maior parte ou talvez toda a Ucrânia, e dezenas de milhões de pessoas ficarão sob ocupação e enfrentarão sofrimento enorme. Provavelmente ambos se veem como grandes líderes que podem simplesmente dividir o mundo. A visão de Putin não inclui nações como a Europa, nem mesmo a Alemanha. Acredito que, na verdade, ele considera que países como o Brasil, por exemplo, são apenas uma ferramenta. Ele nunca pensa que há grandes potências na região e nunca considerou um país da América do Sul algo sério. Ele acha que o mundo é simples, e digo isso com base nos seus intermináveis discursos históricos: há os Estados Unidos com certeza, há a China, que também é grande, e há a Rússia, que precisa ser a primeira grande potência do mundo. E depois, em algum momento, eles podem dividir o mundo como desejarem, e o futuro seria como o grande impacto histórico do governo de Putin. Ele vê a si mesmo como um novo Peter The Great, como conhecemos da história russa do início do século XVIII.

Falando de uma Rússia após Putin, porque isso em algum momento vai acontecer, Putin já tem mais de 70 anos e não vejo ele construindo nomes para sucedê-lo. Como imaginar uma Rússia depois de Putin?

Essa ditadura não consegue produzir novos líderes e, na verdade, Navalni foi o único líder que emergiu por conta própria. Esse tipo de ditadura sempre tenta encontrar pessoas mais discretas e menos inteligentes ao redor do ditador, porque ele precisa governá-las sem confiar demais, mas também sem ter muito medo delas. Se as pessoas em seu círculo são muito inteligentes, isso é perigoso para o ditador. Então, ele não tem ninguém. Podemos imaginar que há uma transferência de poder dentro do círculo de Putin para alguém como um “Putin menor”. O problema é que isso não é uma questão sobre pessoas individuais. É uma questão sobre o destino do país e da sociedade. Além disso, acredito que Putin já quase destruiu a Rússia no sentido de que tipo de futuro a Rússia pode encontrar. Quando a guerra acabar, a economia russa certamente entrará em colapso, porque eles investiram praticamente tudo, recursos humanos, tecnologias e indústria, tudo foi investido no militarismo. Já vimos como foi no final da União Soviética quando uma sociedade muito militarizada entrou em colapso porque as pessoas simplesmente perderam o trabalho, milhões e milhões de pessoas, e foi um enorme drama para elas. Será muito difícil para a Rússia voltar a ter algum respeito dos vizinhos, porque até mesmo países neutros, como a Finlândia, por exemplo, agora fazem parte da Otan. A população russa não é tão jovem, a idade média dos russos é de cerca de 40 anos agora. Então, não vejo um futuro claro após Putin, não porque há apenas um presidente que amamos, de jeito nenhum, mas porque ele provavelmente destruirá a Rússia até sua morte. Isso é o que eu vejo. Mas também tenho esperança nesses jovens que estão tentando resistir a isso, porque temos uma geração jovem brilhante, educada, pelo menos milhares e milhares dessas pessoas, e elas são cheias de empatia e têm uma inteligência realmente alta. Acredito que talvez por causa dessas pessoas, meus ex-alunos em Moscou, talvez tenhamos alguma chance de superar isso.

Entrevista por Carolina Marins

Jornalista formada pela ECA-USP. Repórter da editoria de Internacional, com interesse em América Latina. Já fiz coberturas in loco na Argentina, em Israel e na Ucrânia

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