Carregando livros e diplomas, centenas de milhares de argentinos foram para as ruas de Buenos Aires na terça-feira, 23, protestar contra os cortes de verbas para as universidades públicas, na maior manifestação contra o presidente libertário Javier Milei desde o início de seu governo.
Na capital argentina, a manifestação se concentrou nas 13 quadras que separam o Congresso da Casa Rosada, sede do Executivo, com estudantes, professores, sindicatos e partidos políticos. A Universidade de Buenos Aires (UBA) estimou em 800 mil pessoas, e o governo calculou 150 mil.
O jornal La Nación, por análises fotográficas, estima em 430 mil manifestantes no final da tarde — quase o dobro dos participantes no velório de Diego Maradona, que aconteceu durante as restrições da pandemia.
Também foram registradas manifestações em cidades do interior, como Córdoba, sede da prestigiada universidade de mesmo nome. Lá, cerca de 30 mil pessoas participaram, entre membros da sociedade civil, as forças políticas provinciais e os sindicatos, exigindo o fim dos cortes para a Universidade de Córdoba e lançaram reivindicações semelhantes às ouvidas na capital.
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Membros das 57 universidades nacionais públicas saíram em passeata “em defesa do ensino universitário público gratuito”. Frases como “Por que você tem tanto medo da educação pública?” e “a universidade vai se defender!” apareciam entre cartazes e bandeiras.
“Estamos tentando mostrar ao governo que não pode tirar nosso direito à educação”, disse Santiago Ciraolo, um estudante de comunicação social de 32 anos que protestava. “Tudo está em jogo aqui.”
O público na manifestação deu o tom do aumento de tensões em parte da sociedade argentina com a “motosserra” de Milei. No seu esforço para atingir o déficit zero, o presidente argentino está cortando custos em todo o país — fechando ministérios, retirando financiamento de centros culturais, despedindo funcionários públicos e cortando subsídios.
Na segunda-feira, 22, Milei anunciou o primeiro superávit fiscal trimestral da Argentina desde 2008 e prometendo ao público que a dor compensaria. “Estamos tornando possível o impossível, mesmo com a maioria dos políticos, dos sindicatos, dos meios de comunicação social e da maioria dos atores econômicos contra nós”, disse ele em um discurso televisionado. “Não esperem a saída por meio do gasto público”, declarou.
É neste cenário que instituições de ensino como a UBA alertam que, sem um plano de resgate, podem fechar nos próximos meses. As universidades declararam emergência orçamentária depois que o governo decidiu estender a este ano o mesmo orçamento recebido em 2023, apesar da inflação em 12 meses, que atingiu quase 290% em março.
O cenário é um choque para os argentinos, que consideram a educação universitária gratuita e de qualidade um direito. A UBA, por exemplo, tem uma orgulhosa tradição intelectual, tendo produzido cinco ganhadores do Prêmio Nobel e 17 presidentes.
Cerca de 2,2 milhões de pessoas estudam no sistema universitário público argentino, escolhido por 80% dos estudantes em comparação com as instituições privadas, em um país onde quase metade dos 47 milhões de habitantes vive na pobreza.
“Tive acesso a um futuro, a oportunidades através desta universidade que, de outra forma, a minha família e muitas outras pessoas do nosso nível de rendimento nunca poderiam pagar”, disse Alex Vargas, um estudante de economia de 24 anos. “Quando você dá um passo atrás, você vê como isso é importante para a nossa sociedade.”
Prédios sem luz e professores abaixo da linha da pobreza
No geral, a Argentina investe 4,6% do seu Produto Interno Bruto (PIB) na educação. As universidades públicas também são gratuitas para estudantes internacionais, atraindo estudantes de toda a América Latina, entre eles o Brasil. Os críticos do sistema querem que os estudantes estrangeiros paguem taxas.
Milei descreveu as universidades como bastiões do socialismo, onde os professores doutrinam os seus alunos, e tentou descartar a crise orçamentaria universitária como política de sempre. “A dissonância cognitiva que a lavagem cerebral gera na educação pública é tremenda”, disse ele.
O presidente também questionou a transparência do uso dos fundos e a qualidade do ensino, ao sugerir que as universidades públicas “são usadas para negócios obscuros e doutrinação”, conforme escreveu no X no fim de semana.
O governo disse na noite de segunda-feira, 22, que estava enviando cerca de US$ 24,5 milhões (R$ 126 milhões) para cobrir custos de manutenção em universidades públicas e outros US$ 12 milhões (R$ 61,8 milhões) para manter os hospitais universitários em funcionamento. “A discussão está resolvida”, disse o porta-voz presidencial Manuel Adorni.
As autoridades universitárias discordaram, dizendo que a transferência prometida — que ainda não receberam — cobre uma fração do que necessitam. Para a UBA, isso significa um corte anual de 61%. As despesas de funcionamento também excluem os salários do corpo docente, que representam 90% do orçamento universitário.
“Das quatro categorias de professores, três caíram abaixo da linha da pobreza”, disse o reitor da Universidade Nacional de San Luis, Víctor Moriñigo, ao relatar uma escala salarial docente cujo piso é de 100 mil pesos (R$ 587) por mês.
Na UBA, os corredores ficaram escuros, os elevadores pararam e o ar condicionado ficou sem funcionar em alguns prédios na semana passada. Os professores ministraram palestras para 200 pessoas sem microfones ou projetores porque a universidade pública não conseguia pagar a conta de luz.
Desde julho do ano passado, quando o ano fiscal começou, o Estado forneceu à Universidade de Buenos Aires apenas 8,9% do seu orçamento total. A universidade alertou na semana passada que poderia fechar em breve. “No ritmo em que nos estão dando dinheiro, só poderemos funcionar por dois a três meses”, advertiu o reitor da UBA, Ricardo Gelpi.
O protesto, realizado horas depois de Milei ter declarado vitória econômica no seu palácio presidencial, tinha uma enorme faixa pendurada no centro de Buenos Aires, apresentando uma escolha: Milei ou educação pública? /AFP, EFE e Associated Press.