BUENOS AIRES — O fenômeno Javier Milei deixou todos confusos. Partidos políticos, establishments empresariais e intelectuais e outros poderosos setores ainda lutam para categorizar o presidente da Argentina.
A principal preocupação dos investidores, locais e estrangeiros, é se suas ambiciosas reformas para colocar a Argentina na direção da economia de mercado podem avançar. Milei começou com poucos aliados no Congresso e em outras partes e agora tem ainda menos, em razão de sua pirotecnia verbal. As chances de Milei avançar com seu programa parecem estar diminuindo, mas um estreito caminho para o sucesso continua aberto.
Todos sabem que a principal missão de Milei a curto prazo é baixar a inflação, atualmente registrando um índice anual de 276%. Para cumprir esse objetivo, seu programa econômico está avançando, mas alguns de seus pontos-chave — a reforma trabalhista e a desregulação da economia, entre outros — estão em dúvida porque Milei usou um decreto presidencial para colocá-los em prática.
Esforços para transformá-lo em lei já foram rejeitados no Senado, e partes do pacote foram derrubadas pela Justiça. Seu futuro depende da Câmara dos Deputados, onde seu partido, A Liberdade Avança, tem poucos representantes.
Milei está resguardando suas apostas: se a Câmara dos Deputados rejeitar o pacote, prometeu continuar seus esforços por meio de vários decretos lidando separadamente com cada assunto.
Apesar do ruído político e da queda nos padrões de vida — Milei sempre afirmou que, infelizmente, isso era necessário no curto prazo — a popularidade do presidente tem se mostrado resiliente.
Uma pesquisa publicada esta semana colocou a aprovação ao desempenho de seu governo em 47,7% e sua desaprovação em 47,6%. Tratou-se da confirmação de uma Argentina dividida ao meio, mas também com mais consenso do que poderia se esperar: Milei segue o político mais popular no país por uma bela margem.
Um presidente com o pé no acelerador
No contínuo esforço para compreender sua filosofia e seu futuro, Milei traçou algumas comparações com Donald Trump — mas ao contrário do ex-presidente americano (e atual candidato), Milei não tem um partido poderoso o sustentando no qual obter apoio e não parece compartilhar da verve protecionista de Trump.
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Ambos estão unidos em sua tentativa de comunicar-se diretamente com setores da sociedade, evitando intermediários tradicionais; não respeitam instituições; e enfatizam o confronto em vez do diálogo.
O governo Biden provavelmente não gostou da opção de Milei de falar em uma conferência conservadora em Washington no dia seguinte à visita do secretário de Estado Antony Blinken à Argentina. Mas com poucos amigos na região, Washington não pode se queixar muito a respeito do presidente argentino mais alinhado com o Ocidente desde Carlos Menem, que ocupou o poder entre 1989 e 1999.
Durante sua campanha, Milei fez uma promessa básica de derrotar a inflação por meio de uma dolarização. A inflação começou a cair lentamente — de um índice mensal de 25% em dezembro aos ainda recordistas mundiais 13% em fevereiro — conforme Milei mantém a hiperinflação controlada neste momento e o governo alcança um superávit fiscal em janeiro e fevereiro com base numa forte redução nos pagamentos de pensão e na suspensão quase total das obras públicas.
“Liquidação” é o termo mais comum para se referir à queda nos lucros reais que acompanhou esses desdobramentos. A inflação alta registrada na última etapa do governo anterior (211% em 2023) e a forte desvalorização dos salários nesses três meses aumentaram a pobreza de 40% a 47% em um ano, de acordo com números preliminares.
Vários especialistas alertaram que esse modelo de ajuste fiscal não é sustentável e esperam que a Argentina apresente um plano de estabilização, como no período da conversibilidade dos anos 90. Mas por enquanto Milei só definiu as diretrizes muito amplas de um plano aplicado pelo ministro das Finanças, Luis Caputo, que tem mais experiência em mercados financeiros do que em macroeconomia. A estratégia de Caputo causou espanto: ele acrescentou um pedido aos executivos para que baixem os preços ao programa de ajuste fiscal e monetário, uma ideia que lembra a retórica do kirchnerismo, mas com modos mais polidos.
E Caputo, como seus antecessores, conseguiu brecar em certa medida a inflação em parte por meio de um atraso na taxa de câmbio: a taxa de câmbio oficial desvaloriza apenas 2% ao mês, bem atrás do índice de preços.
Como Milei alcançará uma redução mais agressiva na inflação permanece incerto. É mais fácil baixar o nível de preços de 25% para 13% ao mês do que colocá-lo em um só dígito, mais próximo da média regional.
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Dolarização pode não ser a resposta. Ciente das complicações que se seguiram à dolarização em El Salvador, Panamá e Equador, Milei parece contente em apoiar um modelo misto de competição monetária entre um dólar forte e um peso fraco.
Isso ocorre em parte porque sua visão anterior de dolarização não conseguiu apoio das instituições financeiras de Washington, que normalmente promovem flutuações em regimes de câmbio. O FMI tem sido categórico privadamente e em público: não há atalhos para alcançar a estabilidade, e a Argentina precisa seguir o exemplo de outros países, alcançar estabilidade fiscal e ter um banco central independente.
A ideia de dolarização também não convenceu Wall Street, onde investidores ainda parecem céticos após a desilusão que sofreram com o fracasso do governo de Mauricio Macri (2015-19) em produzir as reformas desejadas.
Ciente dessas dúvidas, Milei acelera fundo sempre que pode, com decretos e leis sobre impostos, pensões e desregulação econômica. Mas até aqui essas iniciativas encontraram oposição no Congresso repetidamente. Sua relação com a própria vice-presidente, Victoria Villarruel, também não é muito boa, em linha com uma longa tradição argentina de brigas entre presidentes e seus vices.
Oposição desarticulada
Milei tenta transformar fraqueza política em força denunciando publicamente a “casta”, a classe política e o movimento sindicalista tradicional, por não querer ajudar as pessoas. O curioso é que, pelo menos nestes primeiros meses de governo, a sociedade tem sido favorável a esse slogan mesmo nos setores medianos e mais baixos punidos pela herança do kirchnerismo e, acima de tudo, pela “liquidação” brutal da renda desde que Milei assumiu a presidência.
Seus aliados mais estáveis são os legisladores do partido Proposta Republicana (PRO), fundado por Macri em 2005. Mas até eles estão confusos pelas idas e vindas do presidente e lamentam silenciosamente, assim como o Departamento do Tesouro dos EUA e o FMI, porque não sabem como ajudar o presidente.
Apesar de tudo, Milei está com a bola no chão em razão do caos entre o peronismo, cuja líder, Cristina Kirchner, está recolhida e parece preocupada principalmente com seus numerosos processos judiciais. O ex-ministro da Economia Sergio Massa, segundo relatos, entrou no setor privado, e o ex-presidente Alberto Fernández dificilmente conseguiria desempenhar um papel central agora, já que mal o fez quando ocupou o poder.
O restante do arco político não está em condições melhores. O partido mais antigo do país, a União Cívica Radical, está dividido entre os que querem se unir à proposta direitista de Milei de modernização e os que acreditam que já perderam sua identidade por ter ocupado um papel similar nos anos Macri.
A estratégia de Milei depende de outras forças políticas permanecerem desacreditadas e do país não explodir, mas seu governo tem tido dificuldades para se distinguir para além da retórica libertária de seu líder. Analistas perguntam como ele pode ser bem-sucedido se não segue nenhuma das regras tradicionais para o sucesso político — mas também esses mesmos analistas não foram capazes de antecipar seu triunfo eleitoral de 2023.
Milei espera ganhar jogando com as cartas certas — diminuir significativamente a inflação este ano, até um índice anual de dois dígitos em 2025, sem ter de aumentar muito o desemprego em razão da abertura da economia. Se ele conseguir, será porque a Argentina está acostumada a viradas de 180 graus em temas políticos, econômicos e ideológicos a cada quatro anos, sempre que elege seu presidente.
E ele também tem uma chance porque a Argentina vive de ilusões. O ex-presidente Raúl Alfonsín conseguiu representar a alegria do retorno à democracia nos anos 80, após a sanguinária ditadura militar; Carlos Menem trouxe a estabilidade econômica nos anos 90, após a hiperinflação; e Néstor Kirchner foi capaz de superar o vácuo de poder após a implosão de 2001.
Nesse jogo de ilusões, Milei aposta em ser o homem que, com slogans simples, conquistará uma sociedade atingida pela inflação e desiludida por ter perdido os benefícios de sua belle époque que geraram tanta admiração em outras partes do mundo um século atrás. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL