CARACAS, Venezuela — Quando 11 mil soldados e policiais tomaram a penitenciária venezuelana de Tocorón, este mês, eles se depararam com um campo de beisebol profissional, piscinas, equipamentos de lazer infantil e até um pequeno zoológico com macacos e flamingos. Descobriram túneis de concreto que conectam o presídio com o exterior — da mesma maneira que a cadeia que serviu de lar ao líder do Cartel de Sinaloa, Joaquín “El Chapo” Guzmán. E encontraram também 200 mulheres e crianças vivendo por lá.
Só não acharam o detento mais famoso de Tocorón: Héctor “El Niño” Guerrero.
Guerrero, de 39 anos, lidera a organização criminosa Trem de Aragua, que nasceu na prisão e se espalhou por toda a América Latina juntamente com os venezuelanos em migração, suas principais vítimas.
Agora, autoridades não apenas da Venezuela, mas também da Colômbia, do Equador, do Peru e do Chile, estão caçando o fugitivo. A Interpol emitiu um alerta de Difusão Vermelha para sua captura. E críticos questionam como sua gangue conseguiu transformar uma penitenciária em um resort luxuoso.
A caça transcontinental sublinha o medo provocado pelo Trem de Aragua, que aterroriza venezuelanos que fugiram do governo do presidente Nicolás Maduro com extorsões, sequestros, tráfico humano e assassinatos.
A polícia do Peru alertou que “este perigoso criminoso pode ter entrado no território peruano” e poderia estar planejando crimes para manter a “supremacia” de sua firma de extorsão no país. O governo peruano anunciou uma recompensa de aproximadamente US$ 132 mil por informações que ajudem a localizar ou prender Guerrero no Peru.
Pelo menos 400 policiais foram acionados para reforçar a segurança na fronteira peruana com o Equador. Autoridades chilenas afirmaram que também estão reforçando a vigilância nas fronteiras.
O analista equatoriano Renato Rivera, que estuda o crime organizado, afirmou que a caça por Guerrero “revela quão vulneráveis e permeáveis as fronteiras terrestres dos nossos países são”.
O governo venezuelano ordenou na semana passada que a Operação de Libertação Cacique Guaicaipuro — que homenageia um chefe indígena lendário do século 16 que organizou a resistência contra a conquista espanhola e é celebrado pelo Estado socialista fundado por Hugo Chávez — a retomar o controle da penitenciária.
O ministro do Interior da Venezuela, Remigio Ceballos, gabou-se afirmando que a operação de 20 de setembro prendeu 88 pessoas associadas ao Trem de Aragua. As autoridades venezuelanas afirmaram que a ação resultou também na apreensão de granadas, lançadores de foguetes e munições. Falando a repórteres na prisão, Ceballos disse que impingiu um golpe decisivo contra a gangue. “Nós desmantelamos completamente o dito ‘Trem de Aragua’”, afirmou ele.
Mas Maduro afirmou que várias autoridades e carcereiros também foram presos por supostamente ajudar detentos, incluindo Guerrero, a escapar.
Humberto Prado, diretor do Observatório Venezuelano de Prisões, afirmou que tomar controle da penitenciária não significa que o governo desmantelou a gangue. Prado disse que a operação provavelmente foi negociada entre as forças do governo e Guerrero. “Isso não passa de um show para nos dizer que eles controlaram o edifício novamente”, afirmou Prado. Ceballos rejeitou essa afirmação.
Prado notou inconsistência entre as informações do governo e a pesquisa independente do observatório. O Ministério do Interior anunciou que 1,6 mil presos de Tocorón estavam sendo transferidos para outras instalações. O observatório estimava que a penitenciária abrigava mais de 3 mil detentos. “Onde está o restante?”, questionou Prado. “Correndo e escapando por um longo tempo agora.”
O Trem de Aragua — que designa a cidade onde Tocorón se localiza — foi formado uma década atrás por detentos que ordenavam sequestros e assassinatos de dentro do presídio. Em 2017, conforme os venezuelanos começavam a fugir da crescente crise econômica, política e humanitária — em um êxodo que hoje ultrapassa 7 milhões de venezuelanos — a gangue procurava novos mercados, fora do país.
“Eles seguiram a rota da migração, identificando exploração sexual de mulheres e tráfico humano como novas maneiras de fazer dinheiro”, afirmou Ronna Rísquez, autora de “O Trem de Aragua: a gangue que revolucionou o crime organizado na América Latina”.
A organização ampliou seu alcance subcontratando grupos criminosos menores fora da prisão e recrutando ex-detentos recém-libertados, afirmou Rísquez. Em seu livro, publicado este ano, ela estima que a gangue tem mais de 5 mil integrantes e ganha milhões anualmente de um rapidamente diversificado “portfólio de crimes” — lucros que voltaram para a prisão de Tocorón.
O Trem de Aragua é acusado de explorar redes de prostituição no Peru, traficar jovens mulheres para o Chile e desmembrar corpos na Colômbia.
Analistas da região discordam a respeito do verdadeiro poder e influência do grupo e ponderam que gangues menores, sem relação com o Trem de Aragua, estão usando seu nome em algumas cidades para impingir medo.
“Eu acho que o Trem de Aragua é uma ameaça tanto real quanto exagerada”, afirmou Elizabeth Dickinson, analista sênior do International Crisis Group na Colômbia.
Pessoas ligadas ao grupo têm tentado tomar mercados lucrativos de tráfico humano e narcotráfico, afirmou ela, mas ainda não se estabeleceram como uma presença criminosa fixa.
Tem havido uma tendência de outras organizações criminosas de capitalizar sobre a xenofobia contra migrantes venezuelanos e colocar no Trem de Aragua a culpa por seus próprios crimes, “como uma maneira de se esconder nas sombras”, disse Dickinson.
Ao contrário de um grupo armado típico, afirmou ela, o Trem de Aragua atua mais como uma organização criminosa que age clandestinamente para realizar tarefas específicas. “Não é uma ameaça sobrepujante”, disse Dickinson, “pelo menos não neste momento”.
Mesmo assim, as autoridades estão preocupadas. Analistas militares de inteligência da Colômbia, por exemplo, afirmam que a organização está presente em seis cidades do país, incluindo Bogotá, a capital. Em um relatório circulado internamente este ano, analistas notaram a presença do grupo no Brasil, no Peru, no Equador e em Trinidad e Tobago — países que receberam grandes números de migrantes venezuelanos nos anos recentes.
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Os analistas atribuíram o crescimento do grupo a uma série de ações e fracassos das autoridades venezuelanas. Na prisão de Tocorón, segundo observou o instituto de análise de violência InSight Crime, Guerrero ascendeu na hierarquia e se tornou um “pran”, o criminoso que controla a cadeia no sistema criado pela ex-ministra do Sistema Penitenciário Iris Varela. O sistema do “pranato” concede o controle das prisões aos detentos contanto que eles mantenham a ordem e reduzam a violência.
Jeremy McDermott, codiretor do InSight Crime, sugeriu que a operação das autoridades venezuelanas pode ter sido uma tentativa do governo de pôr fim ao pranato.
Autoridades do Chile afirmaram não ter nenhum motivo para acreditar que Guerrero entrou em seu país, mas planejavam reforçar a segurança nas fronteiras.
O legislador chileno Álvaro Carter, que participa da Comissão de Defesa Nacional, afirmou que há aproximadamente um ano o Trem de Aragua tem sido ligado a crimes no Chile jamais vistos no país relativamente tranquilo.
Carter afirmou que se preocupa em razão das extensas fronteiras chilenas e da ausência de dados biométricos fornecidos pelo governo venezuelano para ajudar a rastrear os registros criminais das pessoas. “Nós sentimos que o Chile está diante de um grande problema”, afirmou ele. “O medo não é apenas desse criminoso entrar, mas também de que outros entrem no futuro.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO