O governo de Taiwan emitiu um alerta durante a semana: o mundo deve estar atento à eleição na ilha. A disputa marcada para o próximo sábado, 13, tem sido pautada pela crescente pressão de Pequim a Taipé e promete ser acirrada. É que, na prática, ao votar para presidente, os taiwaneses estarão decidindo também como pretendem lidar com a China. E o resultado tem potencial para acirrar a tensão.
O pleito será o primeiro do intenso calendário com 40 eleições em 2024 - e uma das mais importantes já que o próximo presidente de Taiwan estará no centro da rivalidade entre as grandes potências globais. A disputa opõe o partido do governo, que fortaleceu laços com os Estados Unidos diante da ameaça chinesa, à oposição que defende uma boa relação com a Pequim como garantia de segurança para ilha.
Os exercícios militares de intimidação da China se tornaram parte da rotina no Estreio de Taiwan, a faixa marítima de 177 quilômetros de largura que separa o continente da ilha. Os caças chineses tem avançado sobra a fronteira não oficial com maior frequência nos últimos meses e chegaram a bater a um patamar recorde no ano passado. Em um único dia de setembro, 103 aeronaves voaram perto do espaço aéreo de Taiwan. Uma frota com navios de guerra, incluindo o Shandong, o segundo porta-aviões lançado por Pequim, soma-se à pressão militar no entorno taiwanês.
O Partido Comunista Chinês nunca governou o Estado insular de cerca de 20 milhões de habitantes, mas reivindica Taiwan como parte do seu território. Um entrave que remonta a Guerra Civil na China. Derrotadas na batalha interna, as tropas do Partido Nacionalista (o Kuomintang, que até hoje é uma das principais forças políticas locais) fugiram para a ilha e formaram um governo, em 1949. Ou seja, quatro anos depois que o território foi tomado de um Japão abalado pela derrota na 2ª Guerra.
Ameaça de “reunificação”
Em meio à tensão crescente, a inteligência americana alerta que a China estaria se preparando para invadir Taiwan até 2027, caso não consiga dominar a ilha por meios pacíficos. Xi Jinping negou esse cronograma em encontro com Joe Biden no ano passado. Em seu discurso de Ano Novo, no entanto, insistiu na “reunificação”.
“Todos os chineses de ambos os lados do Estreito de Taiwan devem estar vinculados a um senso comum de propósito e compartilhar a glória do rejuvenescimento da nação chinesa”, disse Xi Jinping ao afirmar que ilha “certamente seria reunificada”.
Os Estados Unidos monitoram essa ameaça e tem vendido bilhões de dólares em equipamentos militares para Taiwan. No mês passado, Taipé agradeceu a Casa Branca, por mais uma venda, no valor US$ 300 milhões - a 12ª desde que Biden assumiu a presidência e a 4ª só em 2023.
Apoio esse que não está limitado a permitir que a defesa taiwanesa compre armas americanas. Em agosto, os EUA anunciaram um apoio militar direto de US$ 80 milhões por meio do programa de Financiamento Militar Estrangeiro do Departamento de Estado, algo inédito. Isso porque, até então, esses recursos pagos pelos contribuintes só eram destinados a países reconhecidos pelas Nações Unidas. Não é o caso da ilha com a qual Washington mantém uma política ambígua: reconhece Pequim, mas vende armas para Taipé nos termos da Lei de Relações com Taiwan.
Mais sobre a tensão envolvendo Taiwan, China e EUA
Uma guerra contra a China não seria parecido com nada que os americanos já enfrentaram; leia artigo
Como a agressividade chinesa aumenta o risco de guerra no Estreito de Taiwan
Como a China poderia sufocar Taiwan com um bloqueio naval
Como Taiwan desenvolve drones de última geração em meio a temor de uma guerra com a China
Divergência sobre como lidar com a China
Essa conturbada relação pautou a reta final da campanha com troca de acusações entre os protagonistas da disputa. Depois de comandar um regime militar por décadas, o Kuomintang (KTG) foi substituído pelo Partido Democrático Progressista (DPP da sigla em inglês), que está no poder desde 2016 e busca um novo mandato com o atual vice-presidente, Lai Ching-te.
O KGT alega que há risco de conflito em caso de continuidade do DPP e define a eleição como uma escolha entre “a guerra e a paz”. A estratégia explora o passado do governista Lai Ching-te, que já se descreveu como “trabalhador pragmático pela independência de Taiwan”. Depois, no entanto, moderou o tom e adotou um discurso parecido com o da atual presidente, Tsai Ing-wen, de que a ilha já seria um país independente e, portanto, não precisaria se declarar como tal.
“Na verdade, Taiwan já é soberana e independente”, disse Lai Ching-te na mesma linha da aliada. “Se não fosse soberana e independente, como teria eleição presidencial? Logo, não há necessidade de Taiwan declarar independência de novo”, acrescentou.
Os governistas dizem ainda que o KTM é pró-China e que a escolha seria entre a “democracia e o autoritarismo”, não entre a “guerra e a paz”, como afirma o outro lado. A promessa de continuidade, pelo menos até aqui, parece mais convincente para os eleitores taiwaneses e Lai Ching-te é líder em intenções de voto com uma diferença pode variar de três a 11 pontos percentuais a depender da pesquisa.
Logo em seguida, vem Hou Yu-ih, do Kuomintang, que propõe um “meio termo” na relação com Pequim. Ele afirma que é contra a independência da ilha e também se opõe à unificação com a China sob a política de “um país, dois sistemas” - que vigora em Hong Kong, a ex-colônia britânica devolvida ao controle chinês em 1997. Esse “meio termo” seria a busca por “democracia e liberdade” na ilha que, junto com o continente, formaria uma única nação chinesa na visão do partido.
Essa a defesa mais clara do status quo que a China busca manter, afirma o analista Pedro Steenhagen, da escola de Relações Internacionais da Universidade Fudan, Xangai, ao apontar Yu-ih como “candidato preferido de Pequim”.
A divergência entre os dois maiores partidos da ilha é perceptível não só no discurso, mas também na agenda das suas lideranças. No ano passado, a presidente Tsai Ing-wen (DPP) esteve nos EUA, onde foi recebida pelo então presidente da Câmara, o republicano Kevin McCarthy. Do outro lado, Ma Ying-jeou (KTM) se tornou o primeiro ex-presidente de Taiwan a visitar a China desde 1949.
A terceira via
Além dos grupos dominantes na política local, este ano, há também uma força que se apresenta como alternativa e aparece em terceiro lugar nas pesquisas. É o carismático ex-prefeito de Taipé, Ko Wen-je, que concorre com o Partido Popular de Taiwan (TPP em inglês), criado por ele mesmo. A candidatura atraiu os mais jovens, mas a tentativa de se lançar como outsider esbarra na participação de Wen-je em governos anteriores tanto do DPP como do KMT.
No que diz respeito à China, ele afirma que há um risco a ser administrado, mas que Pequim “não deseja realmente atacar Taiwan, já que os seus próprios problemas internos são bastante graves”. Ao invés de um ataque, diz ele, Pequim espera “dominar Taiwan através de meios económicos”. A partir dessa visão, o político defende que é preciso aumentar o custo de um eventual conflito para Pequim, contudo, mantendo o diálogo.
“Devemos deixar claro ao governo chinês que o ponto principal é que Taiwan deve manter o seu atual sistema político e modo de vida democrático e livre”, disse ele em debate. Essa posição mais paciente com Pequim o aproxima do segundo colocado nas pesquisas Hou Yu-ih. Eles até cogitaram se aliar para unir forças contra o partido do governo, mas não houve consenso, e a oposição chega às urnas dividida.
Denúncias de interferência
A eleição na ilha tem sido marcada também pelas denúncias de interferência. Durante a semana, o ministro das Relações Exteriores de Taiwan, Joseph Wu, disse que monitora e tenta conter um suposto esforço da China. Uma análise sobre a investida, disse ele, será divulgada logo após a votação para servir de alerta a outros países
“Se a China tiver sucesso na definição do resultado da votação em Taiwan, aplicará as mesmas tácticas a outras democracias para promover a sua ordem internacional”, disse Wu ao alertar que o mundo deve estar atento ao pleito do próximo sábado.
O analista Pedro Steenhagen aponta quatro possíveis caminhos de interferência de Pequim na ilha. “Primeiro, a China pode aplicar sanções econômicas para impactar diretamente na vida do eleitor e demonstrar que as boas relações seriam positivas enquanto um relacionamento conturbado traria problemas”, introduz. Em segundo e terceiro lugar, cita as campanhas de desinformação e a interação com lideranças locais (principalmente do KTM) para implementar estratégias que sejam favoráveis. E, claro, a pressão militar também pode ser um fator decisivo. “As operações militares tem um impacto na percepção social acerca de uma potencial escalada das tensões”, conclui.
A pressão militar e econômica também foram apontadas pelo governo de Taiwan como evidências da suposta interferência. Um esforço que, nas palavras do ministro Joseph Wu, a China sequer tenta disfarçar.
“O regime chinês não escondeu o propósito da sua coerção militar e manipulação comercial. A mensagem é clara: os eleitores de Taiwan devem rejeitar a chapa do Partido Democrático Progressista de Lai Ching-te e Hsiao Bi-khim (candidato a vice), ou então”, disse o ministro na The Economist. “A franqueza da linguagem mostra que o governo de Pequim não tem medo de ser visto como um participante nas eleições nacionais de Taiwan”, acrescentou.
Do outro lado, o departamento chinês para relações com Taiwan disse que as eleições são uma questão “puramente interna da China”. E alegou que o DPP tenta classificar qualquer interação entre os dois lados do Estreito como interferência, reportou o jornal local Taipei Times. E as críticas não se limitam ao atual governo da ilha. No mês passado, Pequim apontou também para os EUA ao dizer que “não tolera interferência estrangeira” em Taiwan.
Problemas internos de Taiwan
“Ao contrário do que parece quando olhamos de fora, nem tudo gira em torno do triângulo Taipé, Pequim e Washington”, lembra Pedro Steenhagen. Os eleitores de Taiwan ainda tem questões domésticas, como a desaceleração da economia local, a dificuldade para inserir os mais jovens no mercado de trabalho e o envelhecimento da população. Tudo isso também estará em jogo no próximo sábado. E Pequim “está ciente desse contexto”, afirma.
Há pouco mais de um ano, o DPP amargou nas eleições regionais uma das maiores derrotas desde que foi fundado em 1986: ganhou do KTM em apenas cinco entre 22 principais cidades e condados, notou à época a revista local CommonWealth Magazine.
A China espera que isso se repita agora, aponta Steenhagen, mesmo que o resultado das urnas confirme o favoritismo de Lai Ching-te. “Pequim conta que a população taiwanesa imponha uma nova derrota ao DPP pelo menos no âmbito legislativo, dando sequência às derrotas regionais de 2023″, avalia. “Se o partido perder maioria (no legislativo) a oposição poderá restringir determinadas reformas e ações governamentais, impactando até mesmo aspectos da relação com os Estados Unidos, como a compra e venda de armas”, conclui.