Muitas razões me fizeram ficar profundamente desapontado com o fato de o dono do Washington Post, Jeff Bezos, ter optado por derrubar o editorial do jornal apoiando a candidatura de Kamala Harris à presidência. A principal é Bezos amar a ciência. E esta eleição coincide com um dos maiores pontos de inflexão na história da humanidade: o nascimento da inteligência artificial geral, ou IAG, que deve emergir nos próximos quatro anos e exigirá que o nosso próximo presidente reúna uma coalizão global para governar com produtividade, segurança e compatibilidade os computadores que logo logo terão mentes próprias e superiores às nossas.
Donald Trump — que não se preocupou nem sequer em nomear um conselheiro para ciência nos primeiros 18 meses de seu mandato — é inadequado para reunir qualquer aliança global desse tipo. Seu governo apressou a criação de uma vacina para a covid-19 com uma mão e então propagou dúvidas sobre seu uso com a outra ao se deparar com uma reação antivacina entre os conservadores.
Hoje, a prioridade de Trump não é capitalizar sobre as tremendas oportunidades que decorrerão de os Estados Unidos liderarem o uso da IAG, nem construir uma aliança global para governá-la, é impor tarifas mais altas sobre os nossos aliados para bloquear suas exportações de carros, brinquedos e outros produtos para os EUA. A única tecnologia que parece interessar Trump profundamente é o Truth Social, sua versão do X. De fato, desde que se descreveu como um “gênio muito estável”, Trump provavelmente duvida que é possível haver uma inteligência maior que a dele, mesmo que artificial.
Kamala Harris, dada sua experiência em segurança pública, suas conexões no Vale do Silício e seu trabalho já realizado sobre IA nos últimos quatro anos, está à altura deste desafio — e esta é uma das principais razões que me fazem apoiar sua candidatura à presidência.
Dito isto, uma das coisas mais estranhas da eleição presidencial de 2024 é o pleito coincidir com — mas em grande medida ignorar — esse florescimento da inteligência artificial geral polimática, que vai mudar essencialmente tudo.
Isso por que a inteligência artificial polimática não é mais inteligente que os humanos em uma só área. Ela dominará simultaneamente todo o conhecimento de física, química, biologia, ciência dos materiais, matemática, medicina, astronomia, Shakespeare, história da arte e uma série de outros campos melhor do que qualquer humano jamais conseguiria e será capaz de perceber padrões transversais em todos esses campos de maneiras que nenhum humano jamais conseguiria — portanto poderá tanto fazer perguntas quanto dar respostas que nenhum humano jamais conseguiria.
Mas as implicações para a educação, o emprego, a inovação, a assistência médica, a abundância econômica e o superempoderamento de indivíduos que a IA trará não figura nos debates presidenciais e vice-presidenciais, nem em nenhum evento político sobre o qual eu ando lendo. É como se o automóvel tivesse acabado de ser inventado e os repórteres e candidatos preferissem continuar discutindo o futuro dos cavalos.
Estou escrevendo um livro que aborda em parte esse assunto e me beneficiei de meus tutoriais com Craig Mundie, um ex-diretor de pesquisa e estratégia da Microsoft que ainda aconselha a empresa. Em breve ele publicará um livro relacionado a problemas e oportunidades a médio prazo da IAG escrito juntamente com o ex-CEO do Google Eric Schmidt e Henry Kissinger, que morreu no ano passado e trabalhou na obra até o fim da vida.
O livro é intitulado “Genesis: Artificial Intelligence, Hope, and the Human Spirit” (Gênesis: Inteligência artificial, esperança e o espírito humano). O livro invoca a descrição bíblica sobre a origem da humanidade porque os autores creem que o momento que vivemos com a IA é um ponto de inflexão igualmente fundamental para a nossa espécie.
Eu concordo. Nós nos tornamos uma espécie divina de duas maneiras: somos a primeira geração a criar intencionalmente um computador com mais inteligência do que Deus nos deu; e somos a primeira geração a mudar o clima não intencionalmente com nossas próprias mãos.
O problema é que nos tornamos divinos sem nenhum acordo entre nós a respeito dos Dez Mandamentos — um sistema de valores compartilhados que deveria orientar o uso dos nossos poderes recém-encontrados. Precisamos consertar isso rapidamente. E não haverá ninguém mais bem posicionado para estar à frente desse desafio do que o próximo presidente dos EUA, por várias razões.
Para começar, segundo me apontou Mundie em entrevista, a fabricação dos hardwares e softwares que possibilitam a inteligência artificial é liderada por empresas americanas, mas avança mais rapidamente do que o antecipado originalmente.
“É bastante concebível alcançarmos a inteligência artificial geral polimática nos próximos três a cinco anos”, disse Mundie (que é um dos diretores do Planet Word, o museu fundado por minha mulher), “portanto, também é provável que o nosso próximo presidente e certamente o seguinte terão de lidar com as mudanças sociais fundamentais que decorrerão”.
Muitas dessas mudanças deverão ser incríveis, começando pela abundância que criaremos em um amplo espectro, entre avanços na medicina, na produtividade agrícola e em um caminho mais rápido para a energia de fusão. (Nota: os engenheiros por trás do AlphaFold, a maravilhosa tecnologia com IA de dobramento de proteína do DeepMind, do Google, acabam de ser laureados com o Prêmio Nobel de Química.) Inovações, projetos e manufaturas em qualquer campo ficarão mais inteligentes, mais baratos e mais rápidos — tudo ao mesmo tempo. Nós estamos diante de uma nova Renascença. E não apenas para países ricos.
Imaginem o agricultor analfabeto na Índia que será capaz de conversar com o smartphone e receber aconselhamentos de nível internacional, não apenas na língua de seu país, mas no dialeto que ele fala, sobre quais sementes plantar, quando iniciar as safras, com que quantidade precisa de água e quanto fertilizante — atualizados e alimentados a cada segundo pela experiência de todos os outros agricultores de sua região, de seu país e do mundo que cultivam aquele mesmo vegetal. Ou imaginem como cada médico, cirurgião, enfermeiro, arquiteto, engenheiro, operário de linha de produção, estudante, gerente, soldado, policial e professor terão um “agente de IA” melhorando sua produtividade.
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Infelizmente, porém, temos de imaginar também o advento de criminosos muito mais empoderados buscando cometer crimes cibernéticos ou ditadores buscando desenvolver suas próprias armas biológicas e disseminar campanhas de desinformação.
E isso só abrange a maneira que os humanos usarão essas novas ferramentas de IA. Há também o desafio de garantir que as máquinas superinteligentes permaneçam alinhadas com valores e interesses humanos quando usarem seus poderes para avançar por conta própria.
Conforme escreveram Kissinger, Schmidt e Mundie em seu livro: “Máquinas capazes de definir seus próprios objetivos não são algo distante. Se quisermos ter alguma esperança de estar à altura dos riscos envolvidos” — ou seja, garantir que as contribuições das máquinas ocorram exclusivamente em simbiose com o avanço humano — “nós devemos responder e agir no cronograma mais breve que pudermos conceber”.
Mas nós não poderemos depender de humanos para supervisionar as máquinas, afirmou Mundie em nossa entrevista, “porque as máquinas ficarão mais inteligentes do que nós”. Em vez disso, “fundamentos morais e éticos alinhados com valores humanos têm de ser inseridos no DNA de todas as máquinas inteligentes”. Isso requererá novos entendimentos entre a comunidade internacional a respeito desses valores básicos e sobre como monitorá-los e fazê-los valer.
Em suma, explicam os autores, nós estamos diante de dois enormes “problemas de alinhamento” iminentes: “o alinhamento técnico das intenções e dos valores humanos com as ações da IAG; e o alinhamento diplomático dos humanos entre si” — para agirmos conjuntamente para alcançar esses objetivos. O empenho tem de ser global. Nós não podemos operar nossos sistemas de IA em acordo com os Dez Mandamentos enquanto a Rússia funciona sob os valores criminosos de Putin.
A boa notícia é que o governo Biden-Harris deu um bom primeiro passo nesse sentido. Na quinta-feira passada, o presidente Joe Biden assinou o primeiro memorando de segurança nacional sobre inteligência artificial detalhando as “salvaguardas” que o Pentágono, as agências de inteligência e outras instituições de segurança nacional têm de instalar para garantir que, quando for empregada em decisões, desde o uso de armas nucleares até a emissão de asilo a imigrantes, a inteligência artificial reflita nossos melhores valores.
Há também neste momento um forte movimento bipartidário no Congresso — liderado pelo líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, pelo senador democrata Martin Heinrich, do Novo México e por republicanos como Mike Rounds, da Dakota do Sul, e Todd Young, de Indiana — pela organização, inicialmente, de uma série de “fóruns de compreensão” sobre as maneiras que a IA funciona e posteriormente a redação de leis em parceria com empresas, sindicatos e entidades da sociedade civil. A ideia é abordar a revolução da IA — na vanguarda — de maneiras que o Congresso não conseguiu fazer com a revolução da internet e das redes sociais. É também uma maneira de garantir que a União Europeia e a China não escrevam as regras sem nós. Há também vários projetos de lei bipartidários tramitando com objetivo de garantir investimentos em pesquisa e desenvolvimento e treinamento de trabalhadores para que a revolução da IAG não deixe sem emprego metade da força de trabalho.
Mas novamente: nós temos de ser muito cuidadosos para que essa legislação também não sufoque o potencial da IA para o bem, porque nós não podemos nos dar ao luxo — literalmente — de não aproveitar este momento por uma outra razão, que o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair expôs no inteligente novo livro que acaba de publicar, intitulado “On Leadership: Lessons for the 21st Century” (Sobre liderança: Lições para o século 21).
Blair escreveu: “A realidade diante de todas as nações desenvolvidas é que os serviços que os cidadãos esperam” — de assistência de saúde a educação, transporte, Justiça criminal e energia verde — estão agora ultrapassando em muito a oferta possível. “A antiga resposta foi gastar mais, tributar mais. Mas hoje nós estamos no limite da aceitação pública de taxar e gastar como resposta.” E “as expectativas não mudaram”. A única forma de os governos poderem prestar os mesmos serviços, ou serviços melhores, com as mesmas receitas fiscais, ou receitas menores, é impulsionando a tecnologia — particularmente a IA.
Ainda que tenhamos perdido a chance de entabular esse debate nesta campanha eleitoral, cinco coisas ainda serão verdade em relação à IAG no dia seguinte à votação: a inteligência artificial geral polimática nos apresenta oportunidades enormes, inimagináveis, para fazer as pessoas viverem mais, com mais saúde e mais abundância; assim como riscos enormes, impossíveis de ser antecipados. Então nós precisamos encontrar maneiras confiáveis globalmente para controlar esses riscos da IAG ao mesmo tempo avançando incessantemente para aproveitar oportunidades e colher benefícios. E isso ocorre mais rápido do que vocês pensam.
Tudo isso para dizer que, se elegermos um presidente na próxima semana que não está à altura de lidar com os cinco pontos desse desafio, as máquinas já serão bem mais inteligentes que nós. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO