As mudanças climáticas trazem riscos de segurança para os países, defende analista chileno


Segundo Juan Pablo Toro, é preciso compreender a ligação entre os temas climáticos e a soberania dos países, a fim de encontrar soluções para os problemas que já nos afetam e ainda estão por vir

Por Carolina Marins
Foto: Divulgação/Centro Soberania e Clima
Entrevista comJuan Pablo ToroJornalista, analista político e Diretor Executivo do AthenaLab

Enquanto são tratadas como um problema a chegar no futuro, as mudanças climáticas trazem desafios desde já à segurança e à defesa dos países, conforme aumentam as disputas por recursos naturais e crescem as ondas migratórias. Para o jornalista e analista político chileno Juan Pablo Toro, o desafio é se fazer compreender que os temas das mudanças climáticas e da soberania dos países caminham juntas e requerem abordagens urgentes.

“Todos sabem que as mudanças climáticas são um desafio existencial, mas não se tem tão claras quais são as repercussões em termos de segurança e defesa dos países”, afirma Toro em entrevista ao Estadão. O analista, que é Diretor Executivo do AthenaLab, está no Brasil esta semana para participar da “1ª Conferência Internacional sobre Soberania e Clima”, realizada pelo Centro Soberania e Clima nesta quarta e quinta-feira, 28 e 29 respectivamente.

Toro ressalta a necessidade de se olhar os temas climáticos também de uma perspectiva interna, já que grande parte das decisões de mitigação de danos são tomadas a nível nacional, ainda que as iniciativas sejam multilaterais. “A mudança climática vai nos obrigar a considerar novamente as operações em ambientes mais extremos para as Forças Armadas e também vai afetar a infraestrutura”, reflete.

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Vista aérea mostra fumaça subindo ao redor do rio Cuiabá, no Pantanal, em Poconé, estado de Mato Grosso, em 28 de agosto de 2020 Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Confira trechos da entrevista:

Em que ponto os temas de soberania e clima convergem?

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Quando se fala em soberania, temos que imaginar que é um conceito com abrangência nacional e quando o assunto é clima pensamos imediatamente num conceito de alcance global. Com isso podemos nos perguntar se são conceitos complementares ou excludentes. Onde se complementam? Na medida em que a resposta ao desafio global das mudanças climáticas tem de ser articulada a partir de Estados nacionais, que são soberanos. É possível tomar medidas individuais, regionais ou globais, existem diferentes mecanismos, mas quem é capaz de mobilizar recursos são basicamente os Estados nacionais. Então acredito que na mobilização de recursos do soberano para o global é onde essas duas categorias estão diretamente em contato e se conciliam.

E como as mudanças climáticas podem comprometer a segurança de um país?

Já é bastante conhecido que a mudança climática hoje é um catalisador de conflitos ou um multiplicador de conflitos e crises. Basicamente o que ela faz é exacerbar as fragilidades onde já existem. Então, em Estados que, por exemplo, são bastante débeis em matéria institucional ou que apresentam alguns problemas de coesão social, as mudanças climáticas podem gerar algum tipo de competição por recursos, acesso a diferentes fontes de água em alguns casos e isso pode levar a uma situação conflituosa se não houver capacidade para resolvê-la pacificamente.

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Há também a questão da migração, que também pode ser um fator de muito risco, se a migração se produz de forma desordenada e isso impacta de um Estado para outro Estado. Também é comum que muitos países compartilhem bacias hidrográficas. No caso do Chile compartilhamos uma bacia hidrográfica de norte a sul, e vocês também no Brasil. E em geral quando os recursos de água são geridos a partir da abundância, não há problema, mas quando eles são geridos a partir da escassez, os problemas começam a surgir. Nesse sentido isso pode se tornar uma ameaça, um risco, um desafio. O importante é que os Estados decidam como vão conceituá-lo.

Juan Pablo Toro, jornalista e analista político, Diretor Executivo do AthenaLab Foto: Divulgação/Centro Soberania e Clima

E como essa situação afeta especificamente a América Latina?

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Na América Latina, especificamente, a mudança climática se manifesta de maneiras diferentes, ou seja, há lugares onde ela se manifesta pela seca e em outras partes se manifesta pelas cheias ou chuvas repentinas, e em todas as partes com a subida do nível do mar. Por isso é difícil saber no fundo como atinge a região. Sabemos que atinge a todos, mas manifesta-se de forma diferente. Em segundo lugar, também devemos ver qual é a capacidade de resposta do Estado diante do desafio das mudanças climáticas. Por exemplo, eles podem estar altamente ameaçados pelas mudanças climáticas, mas têm uma grande capacidade de resposta do Estado, de modo que lhes permite adaptar e mitigar com mais eficiência, mas há Estados que talvez estejam menos expostos, mas não tem capacidade estatal para enfrentar e aí imagino os estados da América Central, e isso está pressionando os recursos agrícolas, os recursos pesqueiros de algumas cidades. Nós temos uma realidade em que 70% da América Latina é urbana e muitas de nossas cidades estão em crescimento ou nascimento e são muito desorganizadas, não houve planejamento urbano e certas mudanças climáticas manifestadas com eventos extremos podem causar perdas de vidas ou sérios e graves problemas à integridade e segurança dessas pessoas.

E neste contexto, de discutir o papel do clima na soberania e vice-versa, o que esperar da conferência do Centro Soberania e Clima?

É muito importante este evento porque todos sabem que a mudança climática é um desafio existencial, mas não se tem tão claras quais são as repercussões em termos de segurança e defesa e, nesse sentido, deve ser feita uma ligação entre esses dois fatores. Já dissemos que as mudanças climáticas são multiplicadoras de crise, e essa crise terá que ser enfrentada e em alguns casos as Forças Armadas serão usadas como instrumentos do poder do Estado. Já sabemos que nossas Forças Armadas por um lado são demandadas para operações de resposta humanitária e de desastres e por outro lado também sabemos que são grandes consumidoras de combustíveis fósseis. Imagine o combustível que é necessário mobilizar um navio como o Atlântico da Marinha do Brasil, é uma grande coisa. Então, como conciliar uma Força Armada que é poderosa, mas ao mesmo tempo amiga do clima e que faz parte da transição verde? Acho que esse é o desafio e que devem ser as questões que devemos focar na conferência porque a mudança climática vai nos obrigar a considerar novamente as operações em ambientes mais extremos para as Forças Armadas e também vai afetar a infraestrutura.

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A Otan em seu mais recente conceito estratégico diz com razão que a infraestrutura dos países aliados está em risco devido às mudanças climáticas e evidentemente a infraestrutura militar da América do Sul também está em risco devido a isso. E além disso também vamos ter que ver certos equipamentos, a preparação das tropas e claro o fato de nossas plataformas terão de ser reconvertidas ou transformadas em combustível menos poluente. Não faremos isso de um dia para o outro porque o equipamento militar já é adquirido para durar décadas, mas isso pode ser feito de forma gradual e progressiva, na medida do possível e sem enfraquecer as Forças Armadas. Então acho que há muitos desafios a serem enfrentados e acho que esta é uma conferência muito interessante e fico feliz que esteja sendo realizada exatamente no Brasil.

Uma mulher limpa a água de sua casa após um ciclone em Caraa, Rio Grande do Sul Foto: SILVIO AVILA / AFP

Mudando o foco, para falar agora da política chilena: depois da derrota que o governo sofreu no processo constituinte do ano passado e com a vitória dos conservadores na nova assembleia, como caminha este segundo projeto de Constituição para o Chile?

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Este processo constituinte parece estar sendo melhor aceito que o primeiro, tanto na forma como no conteúdo. Primeiro que houve uma comissão de especialistas que trabalhou numa minuta que foi entregue aos que foram eleitos para este segundo processo e é uma minuta bastante razoável, que resgata elementos da tradição constitucional chilena e acrescenta outros elementos novos. Mas respeitando certas fronteiras ou margens que se estabeleceram como os limites que este projeto tinha que ter, de modo que foi um projeto justo que hoje é bastante aceito e tem gerado boas expectativas.

Por outro lado, embora tenha uma composição onde predominam os setores mais conservadores na assembleia, tem havido um diálogo muito bom entre os partidos, a própria presidente disse que o objetivo é conseguir um bom projeto para o país.

E também há o fato de que a sociedade chilena está mais preocupada com a inflação, insegurança pública e outros tipos de assuntos, o que tirou um pouco da pressão e está permitindo que a assembleia trabalhe com mais calma e pensando mais no processo para o futuro e como podemos canalizar certas tarefas que temos pendentes há muito tempo tempo.

Pode falar mais desses outros assuntos que preocupa os chilenos?

A inflação tem sempre um componente global e tem componentes locais. No caso aqui houve muita ajuda econômica nos períodos mais duros da pandemia. Então foi um país que reagiu muito rápido e depois da pandemia houve muita injeção de dinheiro na economia e isso se manifestou na inflação. Agora ela está recuando muito lentamente, o Banco Central ainda mantém as taxas de câmbio, mas anunciou que futuramente a taxa de juros vai cair. Mas esse problema bateu no bolso das pessoas e obviamente causa insatisfação e principalmente porque o que mais aumenta o preço é a comida. Por outro lado, temos também a crise de segurança. O Chile era comparativamente um dos países mais seguros da região. Agora temos um aumento de 30% de homicídios no ano passado, o que vai ser insignificante numericamente, se você comparar com a realidade de outros países da região como Colômbia, México ou outros, mas aqui o salto percentual nos preocupa. Houve assassinatos de policiais. Para nós, cada vez que um policial é assassinado é um trauma para a sociedade chilena, o que é trágico e terrível, mas também é positivo no sentido de que a sociedade chilena não quer normalizar isso.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, visita uma casa danificada após fortes chuvas na região de O'Higgins, em 25 de junho de 2023 Foto: Palácio Presidencial via Reuters

E como isso repercute no governo de Gabriel Boric?

Obviamente tudo isso repercute na ideia de que o governo tem que assumir uma tarefa enorme e cujo precedente nesta matéria é complicado porque aqueles [do governo atual] que eram deputados durante o governo Piñera, bloquearam ou votaram contra muitos projetos de segurança que davam mais ferramentas para combater o crime organizado, e hoje eles, estando no governo, percebem que precisam dessas mesmas ferramentas para parar essa crise. Obviamente isso respinga. O governo teve que fazer mudanças de gabinete. E o presidente disse algo muito interessante que ‘não estamos mais para curvas de aprendizado’, com isso ele quis dizer que já colocamos as novas pessoas, as pessoas que não deram certo saíram, e é hora de dar complexidade aos desafios e vamos ter pessoas com experiência. E assim foi lida a mensagem, que já não há mais tempo para que as pessoas aprendam uma vez que estejam dentro do governo.

Mas o governo continua sendo perseguido por uma média de apoio de 30%, que é mais ou menos o tamanho da esquerda atualmente. A verdade é que já sofreu duas derrotas contundentes: uma na composição de uma assembleia e na rejeição do projeto anterior de Constituição, e também há reformas que não conseguiu aprovar, como a reforma tributária, então é um governo bastante complicado e que não tem um domínio absoluto.

Finalmente, depois dos episódios do Capitólio nos EUA e do 8 de Janeiro aqui no Brasil, a fragilidade das democracias se tornou uma preocupação. Como esta questão se manifesta no Chile atualmente?

Esse fenômeno de reversão democrática é um verdadeiro fenômeno global, e na América Latina não somos alheios a ele. Vi com muita preocupação o que aconteceu em Brasília e obviamente é um sinal de alarme para todos nós que estamos na região e valorizamos a democracia brasileira e a nossa própria democracia, que não foi fácil de conseguir.

Agora, a democracia à revelia não funciona, deve ser alimentada e cuidada. E também no Chile há fatores que causam preocupação, por exemplo, as pesquisas de confiança nas instituições sempre mostram que os partidos políticos e o Congresso estão nas últimas colocações da tabela, o que não é positivo e isso mostra uma crise profunda de representatividade. Isso às vezes se resolve com políticos que se reencontram com o povo, a criação de novos movimentos ou enfim uma mudança geracional, que é o que aconteceu aqui, mas não aconteceu no Brasil ao menos não no alto-escalão.

Mas também o fato de termos de alguma forma conduzido a crise, que desencadeou com o levante social, de forma institucional, encaminhando-o para um processo constitucional, mostra a convicção de que resolvemos os problemas políticos com mais política. Então há um sinal positivo. A democracia chilena mostra força ao tentar resolver seus problemas, conduzindo-a de certa forma política e institucional.

Enquanto são tratadas como um problema a chegar no futuro, as mudanças climáticas trazem desafios desde já à segurança e à defesa dos países, conforme aumentam as disputas por recursos naturais e crescem as ondas migratórias. Para o jornalista e analista político chileno Juan Pablo Toro, o desafio é se fazer compreender que os temas das mudanças climáticas e da soberania dos países caminham juntas e requerem abordagens urgentes.

“Todos sabem que as mudanças climáticas são um desafio existencial, mas não se tem tão claras quais são as repercussões em termos de segurança e defesa dos países”, afirma Toro em entrevista ao Estadão. O analista, que é Diretor Executivo do AthenaLab, está no Brasil esta semana para participar da “1ª Conferência Internacional sobre Soberania e Clima”, realizada pelo Centro Soberania e Clima nesta quarta e quinta-feira, 28 e 29 respectivamente.

Toro ressalta a necessidade de se olhar os temas climáticos também de uma perspectiva interna, já que grande parte das decisões de mitigação de danos são tomadas a nível nacional, ainda que as iniciativas sejam multilaterais. “A mudança climática vai nos obrigar a considerar novamente as operações em ambientes mais extremos para as Forças Armadas e também vai afetar a infraestrutura”, reflete.

Vista aérea mostra fumaça subindo ao redor do rio Cuiabá, no Pantanal, em Poconé, estado de Mato Grosso, em 28 de agosto de 2020 Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Confira trechos da entrevista:

Em que ponto os temas de soberania e clima convergem?

Quando se fala em soberania, temos que imaginar que é um conceito com abrangência nacional e quando o assunto é clima pensamos imediatamente num conceito de alcance global. Com isso podemos nos perguntar se são conceitos complementares ou excludentes. Onde se complementam? Na medida em que a resposta ao desafio global das mudanças climáticas tem de ser articulada a partir de Estados nacionais, que são soberanos. É possível tomar medidas individuais, regionais ou globais, existem diferentes mecanismos, mas quem é capaz de mobilizar recursos são basicamente os Estados nacionais. Então acredito que na mobilização de recursos do soberano para o global é onde essas duas categorias estão diretamente em contato e se conciliam.

E como as mudanças climáticas podem comprometer a segurança de um país?

Já é bastante conhecido que a mudança climática hoje é um catalisador de conflitos ou um multiplicador de conflitos e crises. Basicamente o que ela faz é exacerbar as fragilidades onde já existem. Então, em Estados que, por exemplo, são bastante débeis em matéria institucional ou que apresentam alguns problemas de coesão social, as mudanças climáticas podem gerar algum tipo de competição por recursos, acesso a diferentes fontes de água em alguns casos e isso pode levar a uma situação conflituosa se não houver capacidade para resolvê-la pacificamente.

Há também a questão da migração, que também pode ser um fator de muito risco, se a migração se produz de forma desordenada e isso impacta de um Estado para outro Estado. Também é comum que muitos países compartilhem bacias hidrográficas. No caso do Chile compartilhamos uma bacia hidrográfica de norte a sul, e vocês também no Brasil. E em geral quando os recursos de água são geridos a partir da abundância, não há problema, mas quando eles são geridos a partir da escassez, os problemas começam a surgir. Nesse sentido isso pode se tornar uma ameaça, um risco, um desafio. O importante é que os Estados decidam como vão conceituá-lo.

Juan Pablo Toro, jornalista e analista político, Diretor Executivo do AthenaLab Foto: Divulgação/Centro Soberania e Clima

E como essa situação afeta especificamente a América Latina?

Na América Latina, especificamente, a mudança climática se manifesta de maneiras diferentes, ou seja, há lugares onde ela se manifesta pela seca e em outras partes se manifesta pelas cheias ou chuvas repentinas, e em todas as partes com a subida do nível do mar. Por isso é difícil saber no fundo como atinge a região. Sabemos que atinge a todos, mas manifesta-se de forma diferente. Em segundo lugar, também devemos ver qual é a capacidade de resposta do Estado diante do desafio das mudanças climáticas. Por exemplo, eles podem estar altamente ameaçados pelas mudanças climáticas, mas têm uma grande capacidade de resposta do Estado, de modo que lhes permite adaptar e mitigar com mais eficiência, mas há Estados que talvez estejam menos expostos, mas não tem capacidade estatal para enfrentar e aí imagino os estados da América Central, e isso está pressionando os recursos agrícolas, os recursos pesqueiros de algumas cidades. Nós temos uma realidade em que 70% da América Latina é urbana e muitas de nossas cidades estão em crescimento ou nascimento e são muito desorganizadas, não houve planejamento urbano e certas mudanças climáticas manifestadas com eventos extremos podem causar perdas de vidas ou sérios e graves problemas à integridade e segurança dessas pessoas.

E neste contexto, de discutir o papel do clima na soberania e vice-versa, o que esperar da conferência do Centro Soberania e Clima?

É muito importante este evento porque todos sabem que a mudança climática é um desafio existencial, mas não se tem tão claras quais são as repercussões em termos de segurança e defesa e, nesse sentido, deve ser feita uma ligação entre esses dois fatores. Já dissemos que as mudanças climáticas são multiplicadoras de crise, e essa crise terá que ser enfrentada e em alguns casos as Forças Armadas serão usadas como instrumentos do poder do Estado. Já sabemos que nossas Forças Armadas por um lado são demandadas para operações de resposta humanitária e de desastres e por outro lado também sabemos que são grandes consumidoras de combustíveis fósseis. Imagine o combustível que é necessário mobilizar um navio como o Atlântico da Marinha do Brasil, é uma grande coisa. Então, como conciliar uma Força Armada que é poderosa, mas ao mesmo tempo amiga do clima e que faz parte da transição verde? Acho que esse é o desafio e que devem ser as questões que devemos focar na conferência porque a mudança climática vai nos obrigar a considerar novamente as operações em ambientes mais extremos para as Forças Armadas e também vai afetar a infraestrutura.

A Otan em seu mais recente conceito estratégico diz com razão que a infraestrutura dos países aliados está em risco devido às mudanças climáticas e evidentemente a infraestrutura militar da América do Sul também está em risco devido a isso. E além disso também vamos ter que ver certos equipamentos, a preparação das tropas e claro o fato de nossas plataformas terão de ser reconvertidas ou transformadas em combustível menos poluente. Não faremos isso de um dia para o outro porque o equipamento militar já é adquirido para durar décadas, mas isso pode ser feito de forma gradual e progressiva, na medida do possível e sem enfraquecer as Forças Armadas. Então acho que há muitos desafios a serem enfrentados e acho que esta é uma conferência muito interessante e fico feliz que esteja sendo realizada exatamente no Brasil.

Uma mulher limpa a água de sua casa após um ciclone em Caraa, Rio Grande do Sul Foto: SILVIO AVILA / AFP

Mudando o foco, para falar agora da política chilena: depois da derrota que o governo sofreu no processo constituinte do ano passado e com a vitória dos conservadores na nova assembleia, como caminha este segundo projeto de Constituição para o Chile?

Este processo constituinte parece estar sendo melhor aceito que o primeiro, tanto na forma como no conteúdo. Primeiro que houve uma comissão de especialistas que trabalhou numa minuta que foi entregue aos que foram eleitos para este segundo processo e é uma minuta bastante razoável, que resgata elementos da tradição constitucional chilena e acrescenta outros elementos novos. Mas respeitando certas fronteiras ou margens que se estabeleceram como os limites que este projeto tinha que ter, de modo que foi um projeto justo que hoje é bastante aceito e tem gerado boas expectativas.

Por outro lado, embora tenha uma composição onde predominam os setores mais conservadores na assembleia, tem havido um diálogo muito bom entre os partidos, a própria presidente disse que o objetivo é conseguir um bom projeto para o país.

E também há o fato de que a sociedade chilena está mais preocupada com a inflação, insegurança pública e outros tipos de assuntos, o que tirou um pouco da pressão e está permitindo que a assembleia trabalhe com mais calma e pensando mais no processo para o futuro e como podemos canalizar certas tarefas que temos pendentes há muito tempo tempo.

Pode falar mais desses outros assuntos que preocupa os chilenos?

A inflação tem sempre um componente global e tem componentes locais. No caso aqui houve muita ajuda econômica nos períodos mais duros da pandemia. Então foi um país que reagiu muito rápido e depois da pandemia houve muita injeção de dinheiro na economia e isso se manifestou na inflação. Agora ela está recuando muito lentamente, o Banco Central ainda mantém as taxas de câmbio, mas anunciou que futuramente a taxa de juros vai cair. Mas esse problema bateu no bolso das pessoas e obviamente causa insatisfação e principalmente porque o que mais aumenta o preço é a comida. Por outro lado, temos também a crise de segurança. O Chile era comparativamente um dos países mais seguros da região. Agora temos um aumento de 30% de homicídios no ano passado, o que vai ser insignificante numericamente, se você comparar com a realidade de outros países da região como Colômbia, México ou outros, mas aqui o salto percentual nos preocupa. Houve assassinatos de policiais. Para nós, cada vez que um policial é assassinado é um trauma para a sociedade chilena, o que é trágico e terrível, mas também é positivo no sentido de que a sociedade chilena não quer normalizar isso.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, visita uma casa danificada após fortes chuvas na região de O'Higgins, em 25 de junho de 2023 Foto: Palácio Presidencial via Reuters

E como isso repercute no governo de Gabriel Boric?

Obviamente tudo isso repercute na ideia de que o governo tem que assumir uma tarefa enorme e cujo precedente nesta matéria é complicado porque aqueles [do governo atual] que eram deputados durante o governo Piñera, bloquearam ou votaram contra muitos projetos de segurança que davam mais ferramentas para combater o crime organizado, e hoje eles, estando no governo, percebem que precisam dessas mesmas ferramentas para parar essa crise. Obviamente isso respinga. O governo teve que fazer mudanças de gabinete. E o presidente disse algo muito interessante que ‘não estamos mais para curvas de aprendizado’, com isso ele quis dizer que já colocamos as novas pessoas, as pessoas que não deram certo saíram, e é hora de dar complexidade aos desafios e vamos ter pessoas com experiência. E assim foi lida a mensagem, que já não há mais tempo para que as pessoas aprendam uma vez que estejam dentro do governo.

Mas o governo continua sendo perseguido por uma média de apoio de 30%, que é mais ou menos o tamanho da esquerda atualmente. A verdade é que já sofreu duas derrotas contundentes: uma na composição de uma assembleia e na rejeição do projeto anterior de Constituição, e também há reformas que não conseguiu aprovar, como a reforma tributária, então é um governo bastante complicado e que não tem um domínio absoluto.

Finalmente, depois dos episódios do Capitólio nos EUA e do 8 de Janeiro aqui no Brasil, a fragilidade das democracias se tornou uma preocupação. Como esta questão se manifesta no Chile atualmente?

Esse fenômeno de reversão democrática é um verdadeiro fenômeno global, e na América Latina não somos alheios a ele. Vi com muita preocupação o que aconteceu em Brasília e obviamente é um sinal de alarme para todos nós que estamos na região e valorizamos a democracia brasileira e a nossa própria democracia, que não foi fácil de conseguir.

Agora, a democracia à revelia não funciona, deve ser alimentada e cuidada. E também no Chile há fatores que causam preocupação, por exemplo, as pesquisas de confiança nas instituições sempre mostram que os partidos políticos e o Congresso estão nas últimas colocações da tabela, o que não é positivo e isso mostra uma crise profunda de representatividade. Isso às vezes se resolve com políticos que se reencontram com o povo, a criação de novos movimentos ou enfim uma mudança geracional, que é o que aconteceu aqui, mas não aconteceu no Brasil ao menos não no alto-escalão.

Mas também o fato de termos de alguma forma conduzido a crise, que desencadeou com o levante social, de forma institucional, encaminhando-o para um processo constitucional, mostra a convicção de que resolvemos os problemas políticos com mais política. Então há um sinal positivo. A democracia chilena mostra força ao tentar resolver seus problemas, conduzindo-a de certa forma política e institucional.

Enquanto são tratadas como um problema a chegar no futuro, as mudanças climáticas trazem desafios desde já à segurança e à defesa dos países, conforme aumentam as disputas por recursos naturais e crescem as ondas migratórias. Para o jornalista e analista político chileno Juan Pablo Toro, o desafio é se fazer compreender que os temas das mudanças climáticas e da soberania dos países caminham juntas e requerem abordagens urgentes.

“Todos sabem que as mudanças climáticas são um desafio existencial, mas não se tem tão claras quais são as repercussões em termos de segurança e defesa dos países”, afirma Toro em entrevista ao Estadão. O analista, que é Diretor Executivo do AthenaLab, está no Brasil esta semana para participar da “1ª Conferência Internacional sobre Soberania e Clima”, realizada pelo Centro Soberania e Clima nesta quarta e quinta-feira, 28 e 29 respectivamente.

Toro ressalta a necessidade de se olhar os temas climáticos também de uma perspectiva interna, já que grande parte das decisões de mitigação de danos são tomadas a nível nacional, ainda que as iniciativas sejam multilaterais. “A mudança climática vai nos obrigar a considerar novamente as operações em ambientes mais extremos para as Forças Armadas e também vai afetar a infraestrutura”, reflete.

Vista aérea mostra fumaça subindo ao redor do rio Cuiabá, no Pantanal, em Poconé, estado de Mato Grosso, em 28 de agosto de 2020 Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Confira trechos da entrevista:

Em que ponto os temas de soberania e clima convergem?

Quando se fala em soberania, temos que imaginar que é um conceito com abrangência nacional e quando o assunto é clima pensamos imediatamente num conceito de alcance global. Com isso podemos nos perguntar se são conceitos complementares ou excludentes. Onde se complementam? Na medida em que a resposta ao desafio global das mudanças climáticas tem de ser articulada a partir de Estados nacionais, que são soberanos. É possível tomar medidas individuais, regionais ou globais, existem diferentes mecanismos, mas quem é capaz de mobilizar recursos são basicamente os Estados nacionais. Então acredito que na mobilização de recursos do soberano para o global é onde essas duas categorias estão diretamente em contato e se conciliam.

E como as mudanças climáticas podem comprometer a segurança de um país?

Já é bastante conhecido que a mudança climática hoje é um catalisador de conflitos ou um multiplicador de conflitos e crises. Basicamente o que ela faz é exacerbar as fragilidades onde já existem. Então, em Estados que, por exemplo, são bastante débeis em matéria institucional ou que apresentam alguns problemas de coesão social, as mudanças climáticas podem gerar algum tipo de competição por recursos, acesso a diferentes fontes de água em alguns casos e isso pode levar a uma situação conflituosa se não houver capacidade para resolvê-la pacificamente.

Há também a questão da migração, que também pode ser um fator de muito risco, se a migração se produz de forma desordenada e isso impacta de um Estado para outro Estado. Também é comum que muitos países compartilhem bacias hidrográficas. No caso do Chile compartilhamos uma bacia hidrográfica de norte a sul, e vocês também no Brasil. E em geral quando os recursos de água são geridos a partir da abundância, não há problema, mas quando eles são geridos a partir da escassez, os problemas começam a surgir. Nesse sentido isso pode se tornar uma ameaça, um risco, um desafio. O importante é que os Estados decidam como vão conceituá-lo.

Juan Pablo Toro, jornalista e analista político, Diretor Executivo do AthenaLab Foto: Divulgação/Centro Soberania e Clima

E como essa situação afeta especificamente a América Latina?

Na América Latina, especificamente, a mudança climática se manifesta de maneiras diferentes, ou seja, há lugares onde ela se manifesta pela seca e em outras partes se manifesta pelas cheias ou chuvas repentinas, e em todas as partes com a subida do nível do mar. Por isso é difícil saber no fundo como atinge a região. Sabemos que atinge a todos, mas manifesta-se de forma diferente. Em segundo lugar, também devemos ver qual é a capacidade de resposta do Estado diante do desafio das mudanças climáticas. Por exemplo, eles podem estar altamente ameaçados pelas mudanças climáticas, mas têm uma grande capacidade de resposta do Estado, de modo que lhes permite adaptar e mitigar com mais eficiência, mas há Estados que talvez estejam menos expostos, mas não tem capacidade estatal para enfrentar e aí imagino os estados da América Central, e isso está pressionando os recursos agrícolas, os recursos pesqueiros de algumas cidades. Nós temos uma realidade em que 70% da América Latina é urbana e muitas de nossas cidades estão em crescimento ou nascimento e são muito desorganizadas, não houve planejamento urbano e certas mudanças climáticas manifestadas com eventos extremos podem causar perdas de vidas ou sérios e graves problemas à integridade e segurança dessas pessoas.

E neste contexto, de discutir o papel do clima na soberania e vice-versa, o que esperar da conferência do Centro Soberania e Clima?

É muito importante este evento porque todos sabem que a mudança climática é um desafio existencial, mas não se tem tão claras quais são as repercussões em termos de segurança e defesa e, nesse sentido, deve ser feita uma ligação entre esses dois fatores. Já dissemos que as mudanças climáticas são multiplicadoras de crise, e essa crise terá que ser enfrentada e em alguns casos as Forças Armadas serão usadas como instrumentos do poder do Estado. Já sabemos que nossas Forças Armadas por um lado são demandadas para operações de resposta humanitária e de desastres e por outro lado também sabemos que são grandes consumidoras de combustíveis fósseis. Imagine o combustível que é necessário mobilizar um navio como o Atlântico da Marinha do Brasil, é uma grande coisa. Então, como conciliar uma Força Armada que é poderosa, mas ao mesmo tempo amiga do clima e que faz parte da transição verde? Acho que esse é o desafio e que devem ser as questões que devemos focar na conferência porque a mudança climática vai nos obrigar a considerar novamente as operações em ambientes mais extremos para as Forças Armadas e também vai afetar a infraestrutura.

A Otan em seu mais recente conceito estratégico diz com razão que a infraestrutura dos países aliados está em risco devido às mudanças climáticas e evidentemente a infraestrutura militar da América do Sul também está em risco devido a isso. E além disso também vamos ter que ver certos equipamentos, a preparação das tropas e claro o fato de nossas plataformas terão de ser reconvertidas ou transformadas em combustível menos poluente. Não faremos isso de um dia para o outro porque o equipamento militar já é adquirido para durar décadas, mas isso pode ser feito de forma gradual e progressiva, na medida do possível e sem enfraquecer as Forças Armadas. Então acho que há muitos desafios a serem enfrentados e acho que esta é uma conferência muito interessante e fico feliz que esteja sendo realizada exatamente no Brasil.

Uma mulher limpa a água de sua casa após um ciclone em Caraa, Rio Grande do Sul Foto: SILVIO AVILA / AFP

Mudando o foco, para falar agora da política chilena: depois da derrota que o governo sofreu no processo constituinte do ano passado e com a vitória dos conservadores na nova assembleia, como caminha este segundo projeto de Constituição para o Chile?

Este processo constituinte parece estar sendo melhor aceito que o primeiro, tanto na forma como no conteúdo. Primeiro que houve uma comissão de especialistas que trabalhou numa minuta que foi entregue aos que foram eleitos para este segundo processo e é uma minuta bastante razoável, que resgata elementos da tradição constitucional chilena e acrescenta outros elementos novos. Mas respeitando certas fronteiras ou margens que se estabeleceram como os limites que este projeto tinha que ter, de modo que foi um projeto justo que hoje é bastante aceito e tem gerado boas expectativas.

Por outro lado, embora tenha uma composição onde predominam os setores mais conservadores na assembleia, tem havido um diálogo muito bom entre os partidos, a própria presidente disse que o objetivo é conseguir um bom projeto para o país.

E também há o fato de que a sociedade chilena está mais preocupada com a inflação, insegurança pública e outros tipos de assuntos, o que tirou um pouco da pressão e está permitindo que a assembleia trabalhe com mais calma e pensando mais no processo para o futuro e como podemos canalizar certas tarefas que temos pendentes há muito tempo tempo.

Pode falar mais desses outros assuntos que preocupa os chilenos?

A inflação tem sempre um componente global e tem componentes locais. No caso aqui houve muita ajuda econômica nos períodos mais duros da pandemia. Então foi um país que reagiu muito rápido e depois da pandemia houve muita injeção de dinheiro na economia e isso se manifestou na inflação. Agora ela está recuando muito lentamente, o Banco Central ainda mantém as taxas de câmbio, mas anunciou que futuramente a taxa de juros vai cair. Mas esse problema bateu no bolso das pessoas e obviamente causa insatisfação e principalmente porque o que mais aumenta o preço é a comida. Por outro lado, temos também a crise de segurança. O Chile era comparativamente um dos países mais seguros da região. Agora temos um aumento de 30% de homicídios no ano passado, o que vai ser insignificante numericamente, se você comparar com a realidade de outros países da região como Colômbia, México ou outros, mas aqui o salto percentual nos preocupa. Houve assassinatos de policiais. Para nós, cada vez que um policial é assassinado é um trauma para a sociedade chilena, o que é trágico e terrível, mas também é positivo no sentido de que a sociedade chilena não quer normalizar isso.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, visita uma casa danificada após fortes chuvas na região de O'Higgins, em 25 de junho de 2023 Foto: Palácio Presidencial via Reuters

E como isso repercute no governo de Gabriel Boric?

Obviamente tudo isso repercute na ideia de que o governo tem que assumir uma tarefa enorme e cujo precedente nesta matéria é complicado porque aqueles [do governo atual] que eram deputados durante o governo Piñera, bloquearam ou votaram contra muitos projetos de segurança que davam mais ferramentas para combater o crime organizado, e hoje eles, estando no governo, percebem que precisam dessas mesmas ferramentas para parar essa crise. Obviamente isso respinga. O governo teve que fazer mudanças de gabinete. E o presidente disse algo muito interessante que ‘não estamos mais para curvas de aprendizado’, com isso ele quis dizer que já colocamos as novas pessoas, as pessoas que não deram certo saíram, e é hora de dar complexidade aos desafios e vamos ter pessoas com experiência. E assim foi lida a mensagem, que já não há mais tempo para que as pessoas aprendam uma vez que estejam dentro do governo.

Mas o governo continua sendo perseguido por uma média de apoio de 30%, que é mais ou menos o tamanho da esquerda atualmente. A verdade é que já sofreu duas derrotas contundentes: uma na composição de uma assembleia e na rejeição do projeto anterior de Constituição, e também há reformas que não conseguiu aprovar, como a reforma tributária, então é um governo bastante complicado e que não tem um domínio absoluto.

Finalmente, depois dos episódios do Capitólio nos EUA e do 8 de Janeiro aqui no Brasil, a fragilidade das democracias se tornou uma preocupação. Como esta questão se manifesta no Chile atualmente?

Esse fenômeno de reversão democrática é um verdadeiro fenômeno global, e na América Latina não somos alheios a ele. Vi com muita preocupação o que aconteceu em Brasília e obviamente é um sinal de alarme para todos nós que estamos na região e valorizamos a democracia brasileira e a nossa própria democracia, que não foi fácil de conseguir.

Agora, a democracia à revelia não funciona, deve ser alimentada e cuidada. E também no Chile há fatores que causam preocupação, por exemplo, as pesquisas de confiança nas instituições sempre mostram que os partidos políticos e o Congresso estão nas últimas colocações da tabela, o que não é positivo e isso mostra uma crise profunda de representatividade. Isso às vezes se resolve com políticos que se reencontram com o povo, a criação de novos movimentos ou enfim uma mudança geracional, que é o que aconteceu aqui, mas não aconteceu no Brasil ao menos não no alto-escalão.

Mas também o fato de termos de alguma forma conduzido a crise, que desencadeou com o levante social, de forma institucional, encaminhando-o para um processo constitucional, mostra a convicção de que resolvemos os problemas políticos com mais política. Então há um sinal positivo. A democracia chilena mostra força ao tentar resolver seus problemas, conduzindo-a de certa forma política e institucional.

Entrevista por Carolina Marins

Jornalista formada pela ECA-USP. Repórter da editoria de Internacional, com interesse em América Latina. Já fiz coberturas in loco na Argentina, em Israel e na Ucrânia

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