O homem sabia o que esperar dos combatentes islâmicos. Há anos eles apareciam à sua porta e exigiam dinheiro ou gado -- eram os impostos que ele pagava para sobreviver. Mas de repente, em uma manhã de março, a ameaça na comunidade rural onde mora ganhou um novo rosto: homens brancos em uniformes militares, gritando em um idioma desconhecido.
“Eles estavam atirando nas pessoas. Pessoas que estavam em casa”, disse. “Corpos estavam caindo no chão em todos os lugares.”
Era o massacre na cidade de Moura, no centro de Mali, onde pelo menos 300 pessoas foram mortas segundo estimativas de organizações em defesa dos direitos humanos. Mas o homem e outros moradores da cidade acham que esse número pode ser muito maior.
Em todo o país, relatos semelhantes de violência surgem desde que centenas de mercenários russos se juntaram ao Exército de Mali no início deste ano para combater grupos aliados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico e recuperar território.
Os mercenários contratados fazem parte do Grupo Wagner, uma organização paramilitar que, segundo os Estados Unidos e aliados ocidentais, são uma subdivisão secreta do Kremlin. O grupo é constantemente acusado de crimes de guerra por atrocidades cometidas no Oriente Médio e na África.
De acordo com autoridades de inteligência e pesquisadores de segurança, os lucros obtidos por essa atuação são retornados para Moscou e ajudam a financiar o governo de Vladimir Putin, principalmente no momento em que a Rússia está isolada economicamente por causa da guerra na Ucrânia.
Na Líbia, oficiais de defesa dos EUA afirmam que agentes da Wagner plantaram explosivos em brinquedos infantis. Na República Centro-Africana, investigadores de direitos humanos receberam relatos de agressões e estupros contra adolescentes e crianças mulheres.
No Mali, onde rebeldes invadiram vastos territórios do país, testemunhas afirmaram ao Washington Post que os homens, que eles acreditam serem agentes russos, mataram dezenas de inocentes nos últimos meses sob o pretexto de restaurar a paz.
“Há muitos relatos de testemunhas oculares sobre a presença de soldados brancos falando uma língua desconhecida”, disse Héni Nsaibia, pesquisadora do Projeto de Dados de Eventos e Localização de Conflitos Armados (ACLED), que documenta eventos violentos em todo o mundo. O acúmulo de evidências visuais, acrescentou, “sugerem fortemente que são agentes militares russos privados e não forças russas convencionais”.
Segundo oficiais militares dos EUA, entre 800 e mil mercenários russos atuam no Mali neste momento em serviços que custam US$ 10 milhões por mês ao governo militar do país. Eles fazem a guarda do palácio presidencial e têm a tarefa de rastrear extremistas no campo, dizem as autoridades.
O número de malianos fugindo para a vizinha Mauritânia aumentou depois que os mercenários chegaram ao país. Os registros de refugiados em um abrigo da Agência da ONU para refugiados (ACNUR) montado perto da fronteira cresceram mais de quatro vezes. E grupos de direitos humanos que mapeiam as mortes de civis nas mãos das forças de segurança afirmam que as mortes dispararam.
A Wagner opera em sigilo. As atividades do grupo são mascaradas com uma rede crescente de empresas de fachada, muitas vezes distantes da papelada formal. Documentos e imagens checados pelo Post, alguns não relatados anteriormente, apontam para uma presença intensificada dos mercenários russos no Mali.
Imagens de satélite mostram a construção de uma base militar fora do aeroporto da capital, Bamako, que autoridades ocidentais dizem ser usada por agentes da Wagner. Registros de voo indicam jatos da Força Aérea da Rússia em viagens não divulgadas para a cidade. Vídeos de drones e fotos de vigilância capturadas pelas autoridades francesas e analisadas pelo Post mostram homens brancos uniformizados ao lado dos militares de Mali.
O governo do Mali informou que trabalha com instrutores militares russos, mas que não contratou o grupo Wagner. Entretanto, as próprias autoridades russas contradizem publicamente essa afirmação e dizem que os agentes contratados pelo Mali são “privados”. Especialistas afirmam que a linha entre um e outro é confusa, já que muitos agentes do grupo são militares veteranos da Rússia.
O Washington Post procurou o Kremlin para comentar sobre o assunto, mas não recebeu resposta. Em março, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, informou ao jornal que “não temos nada a ver com as atividades de empresas militares privadas no exterior”. O governo e o Exército do Mali não responderam mensagens e ligações.
“Nenhum lugar está seguro”
Desde que anexou a Crimeia em 2014, agravando as relações com o Ocidente, a Rússia busca construir alianças em outros lugares. Putin deu atenção especial às nações africanas, onde movimentos políticos de distanciamento de países colonizadores, como a França, ganhavam força. O Mali, uma nação de 21 milhões de habitantes, foi central nesse processo. O país esteve durante nove anos sob uma intervenção militar liderada por Paris para evitar o avanço de rebeldes, mas hoje dois terços do território são dominados por esses grupos.
Depois que o presidente francês Emmanuel Macron anunciou no ano passado que Paris planejava retirar milhares de soldados do Mali, Bamako se voltou para Moscou. As relações com a França entraram em colapso. Autoridades malianas expulsaram o embaixador francês e disseram a todas as tropas francesas que saíssem “sem demora”. Os brancos em uniformes militares descritos no início desta reportagem começaram a aparecer pouco depois, afirmam a testemunha que abriu esta reportagem.
A testemunha é um músico que mora na vila de Moura, outrora uma pacata comunidade de agricultores e pastores. A paz foi quebrada quando militantes da Al-Qaeda invadiram o país em 2012. Há sete anos, eles se estabeleceram em Moura e deram um ultimato aos moradores: nos apoiem, saiam sem nada ou morram. Muitos na cidade, que tem cerca de 100 mil habitantes, optaram por ficar e aderir as novas regras.
“Os jihadistas fizeram todo mundo se vestir como eles e deixar a barba crescer”, disse o músico. “Entre os homens, é difícil diferenciar. Você não é um jihadista, mas parece um jihadista.”
A insegurança no país estimulou ondas de tumultos no Mali e abriu espaço para oficiais do Exército derrubarem dois presidentes nos últimos dois anos. Os novos líderes militares prometeram trazer ajuda para acabar com o derramamento de sangue.
Imagens de satélite mostram que a construção da nova base militar perto do principal aeroporto do Mali começou em agosto, um mês antes da notícia de que os líderes estavam negociando com o grupo Wagner. Autoridades ocidentais afirmam sob anonimato que os mercenários dormem nos quartéis e administram um centro logístico.
Uso de mercenários em guerras
Pelo menos seis aeronaves militares russas aterrissaram este ano em Bamako. Três não foram anunciadas pelos militares do Mali, de acordo com dados de voo fornecidos pelo Flightradar24 e vídeos de celulares postados no Telegram. No caminho para o Mali, algumas pareceram fazer escalas na Síria e na Líbia, países onde o grupo Wagner opera.
Fotos de vigilância e vídeos de drones capturados no mês passado pelas Forças Armadas da França e compartilhados com o Washigton Post mostram o que oficiais militares descreveram como mercenários russos em uma base maliana antes ocupada por tropas francesas. A mancha de uma caveira branca, símbolo adotado pelo grupo paramilitar, é visível em um colete.
Massacre sem precedentes
A relação do Mali com Moscou provou ser popular em Bamako, em parte graças a uma sofisticada campanha de desinformação ligada ao Kremlin. Bandeiras e placas russas que celebram o grupo Wagner aparecem constantemente em comícios.
Mas fora da capital o entusiamos se transforma em medo. “Tenho pavor dos extremistas”, disse um vendedor de vacas e morador da cidade de Moura ao Washignton Post. “Tenho pavor do exército maliano e desses soldados brancos. Nenhum lugar é seguro.”
A ACLED estima que pelo menos 415 civis foram mortos entre janeiro e abril deste ano por soldados do Mali e mercenários russos. O número marca um aumento anual na quantidade de mortes atribuídas ao Estado. “Os russos estão tornando o Mali menos seguro”, disse um pesquisador de conflitos malinês, que falou sob condição de anonimato porque teve represália do governo. “Eles podem saquear e massacrar a população sem consequências.”
A equipe da ONU encarregada de investigar abusos de direitos humanos no Mali tenta desde fevereiro chegar a áreas onde surgiram relatos de execuções extrajudiciais, mas foi bloqueada repetidamente pelo governo. As forças de segurança detiveram brevemente investigadores da ONU que tentavam entrevistar testemunhas de Moura no final de abril. As testemunhas foram presas, segundo duas pessoas com conhecimento do incidente, que falaram sob condição de anonimato por temerem retaliação do governo.
O maior massacre foi em Moura, onde 300 pessoas foram mortas durante uma operação de quatro dias no final de março, segundo uma investigação da Human Rights Watch. “Eu documentei atrocidades cometidas por todos os lados no Mali por mais de uma década e, embora islamistas armados tenham massacrado centenas de pessoas, esta é a pior atrocidade já cometida”, disse Corinne Dufka, responsável pela investigação.
O Washigton Post entrevistou três homens de Moura que disseram ter testemunhado o massacre. Todos os três fugiram da cidade e se esconderam. Seus relatos retratam uma operação brutal que não deixou espaço para o processo legal.
Segundo contam, o massacre começou começou quando cinco helicópteros apareceram na manhã de 27 de março. Quatro deles pousaram em esquinas da cidade, e outro, equipado com artilharia, continuou no ar. Os moradores da cidade e grupos de rebelde começaram a correr imediatamente, à medida que os helicópteros atiravam em todos.
Cerca de 20% do comando era formado por militares brancos, segundo as testemunhas. Todos pareciam usar o mesmo uniforme, e um dos soldados malianos pareceu atuar como intérprete. Os brancos gritavam uns com os outros em uma língua estrangeira.
“Se ouço francês, sei que é francês”, disse o músico que testemunhou o massacre. Ele fala um dialeto local, mas assiste à televisão em francês, a língua oficial do Mali. “Eu não reconheci o idioma.”
Em seguida, as forças de segurança se espalharam por Moura, arrombando casas e retirando os homens. Eles deixaram as mulheres e as crianças.
O músico disse que tentou manter a calma e mostrar aos intrusos seus papéis para provar ser civil, e não dos grupos rebeldes. Ele conhecia homens que foram confundidos com extremistas e mortos ao longo dos anos. “Os jihadistas vivem entre nós”, disse. “Nós não temos escolha. Nesta aldeia, não há presença do governo. Não há lei. Os jihadistas sabiam disso. É fácil para eles controlarem.”
Um soldado maliano escaneou os documentos e disse para ele se sentar na calçada diante da sua casa. Ele viu alguns vizinhos serem amarrados e arrastados. Muitos ficaram do lado de fora, sob o sol quente, ao longo de quatro dias. Os militares confiscaram telefone e impediram que as cenas fossem documentadas, disse.
Depois, tiros e gritos foram ouvidos. Uma fumaça começou a subir, e o músico percebeu que corpos estavam sendo queimados. Uma das vítimas foi o seu irmão, um pastor de 46 anos. “Os corpos estavam irreconhecíveis”, disse ele. “Tudo o que tínhamos eram cinzas.”
As testemunhas disseram que ninguém sabe quantas pessoas foram mortas, mas estimam cerca de 600, o dobro do número da Human Rights Watch. Metade eram civis, disseram.
Antes de sair, os militares alertaram os moradores que não cooperassem com extremistas. Caso contrário, retornariam. O Ministério da Defesa do Mali anunciou mais tarde que os soldados mataram 203 “terroristas”. O alto escalão do Exército visitou Moura no dia 10 de abril e declarou que a cidade havia sido “libertada do poder dos terroristas”.
No entanto, Moura não existe mais, disseram as testemunhas. Uma vez que a cidade perdeu a atenção, os extremistas acusaram os moradores de trabalhar com os militares e ordenaram que eles saíssem. “Não há mais ninguém em Moura”, conta o músico.
Imagens de satélite tiradas no final de abril e durante todo o mês de maio parecem confirmar seu relato: Não há estruturas deixadas no leito do rio Moura e as figuras nas praças da cidade desapareceram.